Hugo de São Vitor

TRATADO SOBRE
A ARCA DE NOÉ

PRÓLOGO



Certa vez estava eu sentado em uma reunião junto com meus irmãos, eles me perguntando e eu respondendo. Muito se falou. No entanto, tudo convergiu para este ponto: estávamos todos admiradíssimos da imensa instabilidade e inquietação do coração humano. A partir daí começamos a suspirar. Pediam-me insistentemente, com grande desejo, que pudesse expor-lhes qual seria a causa pela qual se produz tanta desordem de pensamentos no coração do homem. Em seguida, se existisse alguma arte ou trabalho por cujo exercício fosse possível dar remédio a tão grande mal.

Em suma, mostraram-se dispostos a ser ensinados sobre este assunto, mesmo que isto lhes custasse o maior de todos os trabalhos. Nós, na medida em que o pudéssemos fazer pela inspiração divina, desejando satisfazer à caridade dos irmãos em ambas estas coisas, conduzidos tanto pela autoridade [das Escrituras] como pela razão, passamos a dedicar-nos a investigar o ponto central de ambas as questões.

Sei que, quando apresentei a colação, algumas coisas agradaram de modo especial aos irmãos. Quis, por isso, redigir tudo em um estilo muitíssimo cuidadoso, não porque julgue que eu seja digno de o escrever, mas porque reconheço, com alegria, que de alguma forma ali havia algo até então inaudito.

Vamos portanto mostrar, em primeiro lugar, de onde se origina tanta mutabilidade no coração do homem, para em seguida examinar como a mente humana pode ser reconduzida a uma paz estável, e apontar como ela poderá conservar-se nesta mesma estabilidade.

Não duvido que isto seja trabalho próprio da graça divina. Isto pertence não tanto à indústria humana quanto ao favor divino, e o possuímos pela inspiração do Espírito Santo.

Sei, todavia, que Deus deseja cooperar conosco e nos concede gratuitamente os dons de sua piedade, de tal modo que também aos ingratos lhes subtrai com freqüência o que lhes havia concedido. Mais ainda, por isso mesmo, não é inútil conhecer o tamanho de nossa enfermidade e o modo de sua reparação, pois quem não conhece quanta graça lhe foi concedida, não entenderá quantas graças deverá dar a quem as tenha concedido.

No início o homem foi criado para que, se não pecasse, sempre permanecesse pela contemplação na presença da face do Criador e isto de tal maneira que, vendo-O sempre, sempre O amasse e, sempre amando-O, sempre a Ele estivesse unido e, sempre a Ele unido, sendo Ele imortal, possuísse também em si mesmo a vida sem fim.

Este, portanto, era o único e verdadeiro bem do homem, o pleno e perfeito conhecimento de seu Criador. Pleno, a saber, segundo aquela plenitude que havia recebido ao ser criado, não segundo aquela que, após ter obedecido, haveria de receber. Mas o homem foi foi expulso da face de Deus porque, devido ao pecado, ferido pela cegueira da ignorância, perdeu a intimidade da contemplação daquela luz. Com isto a sua mente deslizou mais prufundamente aos desejos terrenos, com o que mais e mais passou a esquecer-se da doçura do que é supremo, cujo gosto já havia perdido. Tornou-se, deste modo, um ser errante e prófugo sobre a terra. Tornou-se errante pela desordem da concupiscência, e prófugo pela sua consciência pecadora. Sua voz corretamente acrescentou:

"Todo aquele que me encontrar, haverá de me matar".

Gen. 4, 14

A mente, deste modo, abandonada pelo auxílio divino, é vencida ao ser assaltada por qualquer tentação.

O coração humano que, preso no amor divino, antes permanecia estável e, amando a um só, permanecia em sua unidade, passou a derramar-se pelos desejos terrenos e como que se dividiu em tantas coisas quantas são as que cobiçou.

Aconteceu assim que a mente, que não soube amar o verdadeiro bem, nunca poderá tornar-se estável porque não encontra o fim do seu desejo nas coisas que abraça enquanto seu desejo permanece naquilo que não pode obter e em que não pode repousar.

Daqui se origina aquele movimento sem estabilidade, aquele trabalho sem repouso, aquela viagem sem destino. De onde que nosso coração sempre estará inquieto até que comece a unir-se a Ele, onde se regozijará por nada faltar ao seu desejo e confiará que o que ama sempre haverá de permanecer.

Eis que mostramos a enfermidade do coração flutuante, do coração instável, do coração inquieto. E também a causa da enfermidade, a saber, o amor do mundo.

E o remédio da enfermidade, o amor de Deus, ao qual será necessário acrescentar a quarta coisa, como se obtém o remédio, isto é, como podemos alcançar o amor de Deus, sem o que saber todo o resto de pouco ou nada ajudará.