Notas de FHE

VII

ZENÃO X SÓCRATES



01.

Conforme tínhamos falado, Anaxágoras foi o primeiro filósofo grego a viver em Atenas. Depois de uma estadia de 30 anos nesta cidade, foi condenado por ter afirmado que o Sol era apenas uma massa de metal incandescente e que a Lua era feita de terra. Pouco depois desta condenação, Parmênides, então ainda na Itália, resolveu dirigir-se juntamente com seu discípulo Zenão à mesma Atenas para ali expor sua doutrina.

02.

A doutrina de Parmênides, dentre outras coisas, baseava- se na premissa de que o ser e o pensar são o mesmo, e que por conseqüência dentro da realidade só poderia existir um único ser eterno, indivisível e imutável.

03.

Ora, esta doutrina é muito mais radical do que as afirmações de Anaxágoras sobre o Sol e a Lua. Nas notas anteriores vimos como, mesmo depois de passados cinqüenta anos desde o julgamento de Anaxágoras, a polêmica por ele causada tornou a emergir no julgamento de Sócrates como uma coisa ainda viva na lembrança dos atenienses. E, no entanto, talvez ainda não se tivessem passado cinco anos da data da fuga ou talvez da morte de Anaxágoras por este motivo quando Parmênides e um seu discípulo, Zenão de Eléia, entraram em Atenas para ali ensinarem suas doutrinas. Não sabemos se foi por coragem ou por desconhecimento dos fatos lá ocorridos, ou talvez por um pouco de ambos.

04.

Conforme dissemos, Parmênides entrou em Atenas acompanhado por seu discípulo Zenão. Segundo Platão, nesta época Parmênides tinha sessenta e cinco anos e Zenão quarenta anos de idade.

05.

Embora Zenão de Eléia fosse discípulo de Parmênides e ensinasse a mesma doutrina que o seu mestre, havia uma distância imensa entre ambos como filósofos.

06.

A primeira diferença entre Zenão e Parmênides, embora ambos ensinem a mesma doutrina, estava no grau de generalidade e abstração com que ambos a apresentavam.

Parmênides, para chegar às conclusões a que chegou, utilizou-se de um raciocínio bastante abstrato, isto é, um raciocínio em que se utilizou de noções bastante gerais, tais como as de ser e não ser, unidade e pluralidade, e outras semelhantes.

Zenão, ao tentar confirmar as doutrinas de seu mestre, utilizou-se de outros argumentos menos abstratos e gerais.

Antes, pois, que tentemos expor alguma coisa sobre Zenão de Eléia, vejamos o que significa generalidade e abstração, e em que sentido o raciocínio de Parmênides é geral e abstrato.

07.

Uma noção é chamada geral quando ela pode ser dita de muitos objetos individuais em particular. Quanto mais geral é uma noção, tanto a um maior número de objetos ela pode ser aplicada.

Por exemplo, José Albuquerque da Silva só pode ser dito de um único homem em particular, e de mais nenhum. Já a noção "homem" pode ser dita tanto de José, como de João ou de Joaquim, e ainda de outros. A noção de homem é, portanto, mais geral do que José Albuquerque da Silva.

A noção "ser humano" é ainda mais geral, porque pode ser aplicada tanto a José, como a João, como também a todos os homens e não só aos homens, como também às mulheres. Ser humano é, assim, alguma coisa de mais geral do que homem.

A noção de "mamífero" é mais geral do que homem, porque tanto pode ser aplicada aos homens, e ao José da Silva em particular, como também a muitos outros animais como os macacos, as baleias, os cachorros e os gatos.

"Animal" é mais geral ainda, porque se aplica também não só aos homens e aos mamíferos em geral, mas também às aves, aos répteis, aos peixes e aos insetos.

"Ser vivo" é um termo ainda mais geral do que animal, pois predica-se tanto dos animais quanto das plantas e dos microorganismos.

"Ser corporal" possui uma generalidade ainda maior, porque se aplica tanto aos seres vivos como aos seres inanimados, desde que tenham natureza material.

Mas por mais geral que possa ser o conceito de ser corporal, mesmo este não se aplica, pelo menos necessariamente, a todos os seres, porque, por exemplo, na hipótese de ser possível a existência de alguma realidade independente da matéria, esta não seria mais um ser corporal. Supondo que existisse uma realidade independente da matéria, ela não seria um ser corporal, mas seria algum tipo de ser. Neste sentido o conceito de ser é o conceito mais geral possível, porque se aplica necessariamente a qualquer objeto, independentemente de sua natureza. Qualquer coisa, seja o que for, terá que ser, pelo menos, ser.

Quando Parmênides, pois, escreveu seu poema, baseou-se nos conceitos mais gerais possíveis.

08.

Falamos no ítem anterior o que é generalidade. Agora falta dizer o que é abstração. Generalidade não é a mesma coisa que abstração, embora quanto mais geral seja um conceito, mais abstrato também ele será.

A palavra abstrato vem de abstrair, que significa tirar, remover, trazer de dentro. Fazer uma abstração significa, assim, considerar um aspecto de alguma realidade desprezando outros, trazer à luz certas características de alguma coisa fazendo abstração das demais.

Como exemplo de abstração podemos considerar uma simples realidade de nosso trabalho. No nosso trabalho diário nossos chefes não se interessam e não se ocupam com nossas vidas particulares. Estas não interessam à empresa; somos remunerados não pelo que valemos como seres humanos, mas pelo que valemos como profissionais; a empresa vê a nós, seres humanos, apenas como profissionais. Qualquer outra realidade que em nós esteja presente, a empresa é cega para ela. Ela faz abstração do ser humano que há em nós, e só considera o profissional. Este é, assim, um exemplo de abstração, prático e elementar.

Mas no exemplo que demos anteriormente, em que de José Albuquerque da Silva passamos para homem, mamífero, animal, ser vivo, ser corporal e finalmente, ser, demos um exemplo não só de crescente generalidade, como também de crescente abstração.

Porque quando dizemos José da Silva, queremos dizer este indivíduo em particular. Quando dizermos "homem", porém, já estamos fazendo abstração de tudo quanto José da Silva tinha de especial que o diferencia de outros homens. Quando dizemos mamífero, estamos fazendo abstração de tudo quanto diferencia José da Silva não somente dos outros homens, mas também dos cachorros, das baleias e dos gatos. Quando dizemos "animal", estamos fazendo abstração de tudo quanto diferencia José da Silva não só dos cachorros e das baleias, mas também dos insetos, dos peixes e das aves. Ao dizermos animal, ficamos apenas com as características de José da Silva que são comuns a todos os animais: a capacidade de reagir ao mundo exterior, a capacidade de se locomover, de se alimentar, de crescer, de reproduzir-se, e outras. Estas características são comuns de fato ao José da Silva e aos cachorros, às baleias, aos insetos, aos peixes, às aves e a todos os animais.

Mas quando chegamos ao topo da escada, e dizemos "ser", estamos abstraindo de José da Silva todas as características que ele não tem em comum com todos os outros seres, sejam eles quais forem. Já abstraímos tudo, exceto aquilo que existe de mais profundo em cada coisa, esta coisa tão misteriosa e intrigante que é o ser.

O ser é, assim, não só o conceito mais geral possível, mas também o mais abstrato de todos.

09.

Desta maneira, quando constatamos que todo o raciocínio desenvolvido no poema de Parmênides trata apenas com conceitos tais como ser e não ser, unidade e pluralidade, podemos perceber em que sentido deve ser dito que o seu raciocínio envolve um alto grau de generalidade e abstração.

10.

Uma das características dos conceitos que tem pequeno grau de generalidade e abstração é o fato deles poderem ser mais facilmente simbolizados por algo que possa ser visto com os olhos, ouvido ou apalpado.

Quando dizemos José da Silva, podemos lembrar o retrato que vimos dele, com todos os seus traços individualizantes.

Quando dizemos "homem", podemos lembrar de uma figura humana qualquer, que simbolizará a idéia de homem. Esta figura humana de que nos lembramos que pensamos no conceito de homem não é a idéia de homem. A definição que traduz o conteúdo da idéia de homem é "animal racional". Esta idéia não pode ser pintada, desenhada ou fotografada, vista nem tocada. O que pode ser tocado, visto, desenhado, pintado ou fotografado é o homem individualmente considerado. Este homem individualmente considerado pode ser lembrado pela nossa imaginação como uma ajuda para compreender o conceito abstrato de homem, como se fosse um símbolo da idéia abstrata de homem, mas é importante perceber que ambos não são a mesma coisa.

11.

O problema é que à medida em que o grau de abstração vai aumentado fica mais difícil encontrar símbolos sensíveis para ajudar o pensamento que discorre sobre os conceitos abstratos. É fácil encontrar uma imagem que, quando lembrada, nos ajude a compreender tudo o que queremos dizer quando dizemos "ser humano". Mas não é mais tão fácil encontrar uma imagem adequada para o conceito de ser vivo, e muito menos para o puro conceito de ser.

Qualquer um seria capaz de desenhar no papel uma casa, um automóvel ou um homem. Mas ninguém seria capaz de desenhar num papel o ser ou o não ser.

12.

Assim, quando Parmênides utilizou-se propositalmente de conceitos que envolvem um grau de abstração muito alto, referindo-se a entidades que não podem sequer ser simbolizadas por um desenho ou uma fotografia, que não podem ser apalpadas, ouvidas nem vistas com os olhos, mas apenas com a pura inteligência, acabou transportando o seu pensamento para a esfera do que posteriormente com Aristóteles passaria a ser denominado de Metafísica. Nisto reside uma parte do mérito de Parmênides na História da Filosofia. Aristóteles, conforme dissemos, reconheceu esta caraterística do raciocínio de Parmênides e encontrou o erro que ele havia cometido ao analisar seu raciocínio de dentro deste campo, e nisto Aristóteles ele foi, conforme veremos, singularmente ajudado pela educação que havia recebido de Platão.

13.

É neste fato que também reside uma segunda diferença entre Parmênides e seu discípulo Zenão. Zenão, assim como outros discípulos de Parmênides, não percebeu que o raciocínio do mestre se desenvolvia no âmbito metafísico. Ou se o percebeu, não tratou do assunto neste plano. Em vez de se elevar também ele ao plano metafísico, percebendo que os ouvintes do mestre não o entendiam, fêz uma tentativa de trazer suas idéias para o plano dos exemplos concretos, para o plano das coisas que podem ser tocadas e vistas não apenas com a mente, mas também com os cinco sentidos.

14.

Foi assim que Zenão de Eléia desenvolveu uma série de argumentos para mostrar que a doutrina de Parmênides era correta, argumentos que pudessem ser mais facilmente entendidos pelas pessoas em geral.

Os argumentos de Zenão são muitos e, segundo Platão, constituíam originalmente pelo menos um livro inteiro. Os que chegaram até nós mal preenchem duas ou três páginas impressas, e mesmo destes vamos desenvolver aqui apenas dois.

São argumentos muito menos profundos do que os de Parmênides e que terão para nós um valor mais histórico do que propriamente filosófico.

15.

Segundo Parmênides não havia muitos seres, mas apenas um único ser. Este ser seria eterno e imutável; por conseqüência, além de não existir a multiplicidade dos seres, não existiria também o movimento.

Em concordância com isto Zenão desenvolverá duas séries de argumentos. A primeira série visa provar por absurdo a impossibilidade da multiplicidade dos seres.

A segunda série visa provar também por absurdo a impossibilidade de existir o movimento.

De cada uma destas séries veremos apenas um exemplo.

16.

Um dos argumentos de Zenão de Eléia contra a multiplicidade dos seres é o seguinte.

Se existem muitos seres, o seu número terá que ser finito ou infinito, porque nada pode ser ao mesmo tempo finito e infinito.

Ora, a quantidade de seres existentes terá que ser finita em seu número, porque os seres que existem não podem ser nem mais nem menos do que o número que são.

Porém, ao mesmo tempo, o número de coisas existentes tem que ser infinito, porque a existência de cada coisa a que denominamos uma unidade e que contamos como sendo um ser individual é, na realidade, não um, mas um número infinito de seres, porque cada uma das coisas existentes pode ser dividida em duas, e cada uma destas duas em outras duas e assim por diante, até o infinito.

Daqui se conclui que, se não admitimos que existe um único ser indivisível, mas admitimos a existência de uma pluralidade de seres como nossa vista quer que seja, seremos obrigados a afirmar que o número de entes que existem no universo é ao mesmo tempo finito e infinito. O que é impossível. Portanto, a multiplicidade dos seres não existe.

17.

Dos argumentos de Zenão de Eléia contra a existência do movimento, o seguinte é um dos melhores.

Supondo que o movimento que nós vemos existisse realmente, devemos analisá-lo mais de perto.

Consideremos o movimento de uma flecha lançada contra um alvo. A cada instante do movimento a flecha só pode estar em um único lugar do espaço, porque nada pode estar, no mesmo instante, em dois lugares ao mesmo tempo. Portanto, isto significa que a cada instante do movimento a flecha tem que estar parada em um único lugar.

Ora, se em cada instante do movimento a flecha está parada, ela estará parada em todos os instantes do movimento e, portanto, não pode existir este movimento.

Se os ouvintes quiserem admitir que o movimento existe, terão que admitir que em pelo menos algum instante do movimento a flecha estará se movendo.

Porém, se é assim, neste instante, então, a flecha terá que estar em dois lugares ao mesmo tempo.

E daí o que é que se conclui? Ou admitimos que o movimento é uma ilusão ou então teremos que admitir que uma flecha pode estar em dois lugares diferentes ao mesmo tempo.

Ora, a segunda destas alternativas é, obviamente, impossível. Portanto, o movimento não existe.

18.

Com argumentos deste tipo, portanto, Parmênides e Zenão se dirigiram para Atenas, e se hospedaram na casa de um certo Pitodoro, do lado externo dos muros da cidade.

Poucos dias depois eles receberam a visita de Sócrates, ainda muito moço, que desejava ouvi-los e aprender com eles. O encontro foi narrado para as gerações futuras por Platão, em um diálogo que ele intitulou com o nome de "Parmênides". Platão nesta época ainda não tinha nascido, mas afirma ter podido reconstituir o encontro porque Pitodoro, ouvindo o diálogo travado entre Sócrates, Parmênides e Zenão ficou tão impressionado com ele que o reteve de quase de cor e o repetiu diversas vezes a muitas pessoas. Uma das pessoas que ouviram a narrativa de Pitodoro não só uma, mas diversas vezes, foi um tal de Antífon, o qual, ao que parece, foi quem o narrou a Platão que finalmente o reproduziu por escrito em seu diálogo, depois da morte de Sócrates, preservando- o para a posteridade.

19.

Parmênides tinha sessenta e cinco anos quando chegou em Atenas, de cabelos brancos mas muito bem disposto. Zenão tinha quarenta anos, alto e de aparência alinhada.

Quando Sócrates, juntamente com outras pessoas, chegou à casa de Pitodoro, Parmênides havia saído, e só estava em casa Zenão.

20.

Zenão leu então em voz alta, na ausência de Parmênides, todo o seu livro contendo uma coleção de argumentos do tipo que descrevemos acima. Ao chegar perto do fim do livro, alguém bateu à porta. Era o próprio Parmênides, que sentou-se e ouviu o restante da leitura do livro e o diálogo que daí se travou entre Zenão e Sócrates.

21.

Chegando ao fim da leitura do livro de Zenão, Sócrates pediu que Zenão repetisse o início do primeiro argumento do livro. Terminada a leitura desta passagem, Sócrates disse que naquele argumento estava contida a essência do livro inteiro. Vejamos então, com alguma adaptação, como se desenrolou o diálogo travado em seguida entre ambos.

22.

O argumento que Sócrates tinha pedido para que Zenão repetisse era o argumento contra a multiplicidade que nós citamos acima, ou então algum outro bastante semelhante a ele.

"O que você quer dizer com isto, Zenão?"

disse Sócrates.

"Você está dizendo
que se existe a multiplicidade dos seres,
cada ser é, ao mesmo tempo,
um só e muitos, e isto é impossível.
Porque nada pode ser ao mesmo tempo
uma coisa e o seu oposto.
Não é isto?"

Zenão concordou.

"Além disso",

continua Sócrates,

"em todo o seu livro
você não tem outro propósito
senão provar a inexistência
da multiplicidade dos seres.
Existem tantas provas da inexistência
da multiplicidade dos seres
quantos argumentos
que você nele redigiu.
É isto ou eu não entendi?"

Zenão também concordou que Sócrates havia entendido corretamente.

"Além disso,
o que você ensina no seu livro
é a mesma coisa que Parmênides.
Parmênides diz que tudo é um só e o demonstra;
enquanto você diz
que não existe a multiplicidade e,
para prová-lo,
oferece uma superabundante evidência.
Vocês dois não são dois filósofos.
Você, Zenão,
é o alter ego de Parmênides.
Estranha arte esta para nós, atenienses".

Zenão também concordou, embora ressalvasse que não havia segundas intenções quando procedia deste modo. Zenão explicou haver escrito seu livro em sua juventude para proteger os argumento de Parmênides contra os que ridicularizavam o mestre, e ele mesmo ficou algum tempo na dúvida se conviria torná-lo público ou não. Alguém, entretanto, acabou roubando uma cópia do livro e a vendeu. A partir daí ele percebeu que não lhe restava mais escolha possível sobre se deveria ou não divulgá-lo.

23.

O diálogo prosseguia desta forma quando Sócrates passou a dar a Zenão uma resposta que posteriormente a história da Filosofia demonstrou estar no caminho certo.

"O problema de seu argumento",

continuou Sócrates,

"é que não há nada de estranho
em que cada ser seja
ao mesmo tempo
um e muitos.

Só a pura idéia abstrata da unidade
é que é perfeitamente una.
Os demais seres participam
desta unidade perfeita.
Isto é, eles possuem uma parte
da perfeição da unidade
que a idéia da unidade possui por inteiro.
Se eles possuem apenas uma parte
da perfeição que está contida
na idéia da unidade,
é porque eles não são perfeitamente unos:
cada ser tem que ser,
desta maneira,
um sob certos aspectos
e muitos sob outros aspectos.

Agora, eu ficaria admirado
e realmente perplexo
se você pudesse me provar
não que os seres,
que apenas participam da idéia da unidade,
são ao mesmo tempo um e muitos,
mas que a própria idéia da unidade
possui ao mesmo tempo
unidade e multiplicidade,
ou que a própria idéia da multiplicidade
possui ao mesmo tempo multiplicidade e unidade.

Se você puder me provar
que o absolutamente um são muitos,
e que o absolutamente múltiplo é um,
isto me espantaria.

Eu ficaria deveras surpreso em ouvir
que as próprias idéias de cada coisa
possuem qualidades opostas,
mas não se uma pessoa quiser me provar
que eu, Sócrates,
sou ao mesmo tempo um e muitos.

Porque eu, Sócrates, de fato,
sob certos aspectos sou muitos,
pois tenho dois braços, e não um,
e tenho cabeça, tronco e membros,
e órgãos diversos
e partes diferentes do corpo
que são muitas.
Portanto, eu não posso negar
que eu participo da idéia de multiplicidade.
Mas só a idéia da multiplicidade
é totalmente múltipla sem unidade alguma;
desta perfeição da multiplicidade que ela tem,
eu tenho apenas uma participação.

Mas, por outro lado,
eu também sou um,
porque aqui estão sete pessoas
e eu sou apenas uma.
Portanto, eu também não posso negar
que eu participo também da unidade perfeita
que há na idéia de unidade.
Mas só a idéia da unidade é totalmente una
sem multiplicidade alguma.
Os objetos visíveis possuem apenas
uma parte desta unidade
que só se realiza perfeitamente
na idéia da unidade.
Só na idéia da unidade
temos uma unidade pura,
completa, total,
sem mistura com multiplicidade alguma.

Assim, quando uma pessoa mostra
que tais coisas como a madeira,
as pedras, e outras,
sendo muitas, são também uma só,
eu admito que ela está mostrando
a coexistência do uno e do múltiplo,
mas ela não está mostrando
que esta multiplicidade é a unidade
e a unidade é a multiplicidade.
Isto apenas está mostrando
que estes seres participam
imperfeitamente da verdadeira unidade
e da verdadeira multiplicidade,
e ela não está com isto mostrando um paradoxo,
mas uma verdade evidente.

Eu novamente lhe repito, Zenão,
que eu ficaria perplexo
se você pudesse me mostrar
que alguém conseguiu encontrar
nas próprias idéias da unidade e multiplicidade,
nestas idéias que são apreendidas pela mente,
estas mesmas características
que você diz encontrar nos objetos visíveis".

24.

Até aqui veio Sócrates. É importante que o aluno de Filosofia e História da Educação reflita várias vezes sobre esta resposta. Nela encontra-se, em gérmen, muita coisa do que a Filosofia veio a trazer à luz posteriormente e que veremos a seguir.

25.

Enquanto Sócrates falava, Pitodoro, o homem que tinha hospedado Parmênides e Zenão, que não havia de imediato percebido o alcancs das palavras de Sócrates, pensava que seus hóspedes filósofos não estavam gostando da discussão com Sócrates e que Sócrates não deveria passar de mais um dos muitos chatos que poderiam haver resolvido aparecer na casa dele para aborrecer os seus hóspedes.

"Mas eles estavam lhe dando
a mais firme atenção",

testemunha Platão ao narrar o diálogo,

"e freqüentemente se entreolhavam
um ao outro
com uma expressão de admiração".

Quando Sócrates terminou, foi a vez de Parmênides tomar a palavra e expressar o que pensava:

"Sócrates",

disse Parmênides,

"eu admiro
a vocação da tua inteligência
para a filosofia.

Eu gostaria de saber depois
se esta distinção entre as idéias em si mesmas
e as coisas que participam delas
é algo de teu próprio.

Porém agora vejo que és muito jovem,
e virá um tempo,
se eu não estou enganado,
em que a filosofia tomará conta
mais firmemente de ti,
e então não desprezarás
até mesmo as menores coisas.
Mas na idade que tens
estás possuído de uma inclinação muito grande
para dar ouvido às opiniões dos homens".

26.

O diálogo continua assim com Parmênides interrogando a Sócrates com perguntas para muitas das quais Sócrates não tinha resposta. Depois Parmênides dá uma aula a Sócrates sobre o modo segundo o qual se deve conduzir o raciocínio, o qual, se em vez de escrito fosse reproduzido como uma peça de teatro, deveria durar pelo menos umas quatro horas.

27.

Tal foi a recepção que Parmênides teve por parte de Sócrates. Foi uma recepção muito diferente daquela que ele teve por parte do povo em geral, sobre a qual trataremos nas notas que virão a seguir. Ao contrário dos demais homens em geral, Sócrates fez aquilo que Parmênides esperava que alguém tivesse feito: em vez de rir dos seus argumentos, como acontece ainda hoje em dia com os alunos de filosofia que ouvem a Parmênides pela primeira vez, procurou compreendê-los no mesmo plano em que eles se situam.

28.

Como se explica que Sócrates tivesse dado esta resposta e que nós, tendo já ouvido a Parmênides, tivéssemos uma reação tão diferente?

É ingênuo pensar que isto se deve ao fato de Sócrates ter sido uma pessoa muito inteligente, mais talvez do que nós. Sua resposta não é tanto fruto de uma inteligência superior, mas sim da seriedade com que aquele homem se empenhava, não naquele instante, mas ao longo de sua vida, pela compreensão da verdade. É a seriedade daquele que, tendo percebido o espetáculo do mundo à sua volta, tem verdadeiramente presente diante de si que não é possível que a inteligência humana tenha sido feita para afogar-se nas ocupações banais pela sobrevivência.

É justamente isto que nós nunca levamos a sério.

São Paulo, 4 de setembro de 1989.