Notas de FHE

I

O INÍCIO DA FILOSOFIA
NA GRÉCIA






01.

Sócrates é o filósofo que marca uma das grandes linhas divisórias na história da Filosofia Grega. Um dos motivos para tanto, dentre outros, é que somente dos filósofos que viveram depois de Sócrates chegaram até nós obras completas. Apesar de conhecermos numerosos filósofos antes de Sócrates, não restam deles senão notícias ou fragmentos de suas obras que só nos chegaram porque foram citados ou copiados em obras de filósofos posteriores. Por este motivo todos os primeiros filósofos gregos são chamados genericamente pelo nome de filósofos pré- socráticos.

02.

Como Sócrates faleceu por volta do ano 400 AC, e o primeiro filósofo grego conhecido Tales de Mileto, o qual viveu por volta do ano 600 AC, estes duzentos anos são conhecidos também como o período da filosofia pré- socrática.

03.

Mas mesmo entre os pré-socráticos há ainda outras linhas divisórias. Uma das mais nítidas é a marcada por um dos mais importante pré-socráticos, Parmênides de Eléia. Estas notas se referem ao caráter da filosofia pré- socrática apenas antes do aparecimento da obra de Parmênides, embora Anaxágoras, abaixo citado, lhe seja contemporâneo.

04.

O primeiro filósofo grego, conforme dizíamos, foi Tales de Mileto. Tanto ele como os demais primeiros filósofos gregos são apresentados pelos livros texto modernos de Filosofia como pessoas dedicadas ao problema de determinar qual é o princípio material de que é constituída a natureza. No caso de Tales, citam-se as seguintes palavras de Aristóteles como se referindo ao que seria a sua doutrina fundamental:

"Tales diz que o princípio é a água,
pelo que ele sustentava que a própria terra
está fundada sobre a água.
Para afirmar isso ele se apoiava
no fato de que via
que o alimento de todas as coisas
é úmido e inclusive
que o que é quente nasce e vive no úmido.
Ora, aquilo de que tudo se engendra
é o princípio de tudo.
Por isso Tales aderiu a tais conjecturas,
e ainda mais porque as sementes
de todas as coisas
possuem uma natureza úmida
e a água nas coisas úmidas
é o princípio de sua natureza".

05.

Contemporâneo de Tales foi Anaximandro. Ele escreveu uma obra intitulada "Sobre a Natureza", da qual, como os restantes pré-socráticos, apenas sobraram fragmentos citados em outros livros de filósofos posteriores. Segundo ele, o princípio da natureza não era a água, nem o ar, nem nenhum outro elemento particular, mas o infinito, algo em que todas as coisas têm origem e em que todas as coisas se dissolvem quando termina o ciclo estabelecido para elas por uma lei necessária. Este princípio infinito seria por si mesmo indestrutível.

Anaximandro dizia também que a Terra é um cilindro que se encontra equilibrado no meio do mundo sem que nada o sustente porque, encontrando-se a igual distância entre todas as partes, não poderia ser movido por nenhuma delas.

06.

O primeiro a ter introduzido a Filosofia na cidade de Atenas foi Anaxágoras, por volta de 450 AC, depois, portanto, das guerras médicas e no auge do poder ateniense. Também ele escreveu um livro intitulado "Sobre a Natureza", que se perdeu. Neste livro ele afirmava que não havia um princípio único constituindo a natureza, mas muitos, e estes sob a forma de partículas invisíveis a que ele chamava de sementes. As sementes não nascem nem morrem, mas combinam-se entre si de formas diversas e com isto dão origem às diversas substâncias. Em todas as coisas há sementes de todas as coisas, e a natureza de cada uma é determinada pelas sementes que prevalecem. Originariamente estas sementes estavam todas misturadas desordenadamente; uma inteligência, de natureza totalmente diversa, por não ser constituída de sementes, teria introduzido então nelas o movimento e a ordem.

Anaxágoras é o primeiro filósofo registrado pela história a ter afirmado a existência de um princípio inteligente como causa da ordem do mundo. Aristóteles disse que ele

"afirmava que existe
uma mente na natureza,
assim como existe nos seres vivos,
e esta mente é a causa da beleza
e da ordem do Universo".

07.

Considera-se freqüentemente nos livros textos modernos que a diferença entre os primeiros filósofos gregos e outros textos aparentemente semelhantes de outras partes do mundo da época consistiria principalmente em que enquanto os demais, ao discorrerem sobre a natureza nada mais faziam do que reportar um mito ou uma lenda, os filósofos gregos, ao contrário, mesmo quando apresentavam uma teoria aparentemente ingênua, esta não era porém mais um mito para eles, mas uma tentativa de explicar ou pelo menos de buscar uma verdade que pudesse ser compreendida e justificada racionalmente. Esta atitude não existiria entre os demais povos da época. Tal interpretação, porém, não é inteiramente satisfatória, e é fácil de apreender- se nela uma transferência um pouco simplista do ideal contemporâneo da pesquisa científica para os filósofos pré-socráticos. De fato, para entender o que deu origem ao movimento filosófico é preciso fazer um esforço proposital para nos reportarmos a um mundo e a um pensamento muito diferente do que aquele ao que estamos habituados nos dias de hoje.

08.

A interpretação da filosofia pré-socrática que comentamos no item anterior também é resultado de uma análise por parte de alguns autores modernos que leva muito mais em conta os pequenos testemunhos do que sobrou da doutrina dos filósofos pré-socráticos, desconsiderando outros testemunhos, poucos também, mas que igualmente nos chegaram, sobre o gênero de vida que eles levavam e os seus traços pessoais.

09.

Os filósofos gregos posteriores apresentaram os primeiros pré-socráticos como pessoas desprendidas das preocupações materiais do dia a dia e dedicados apaixonadamente à contemplação da natureza.

Sobre Tales de Mileto corria na antiguidade uma anedota transcrita nas obras de Platão e de Aristóteles de que ele, caminhando pelo campo e absorto na contemplação do céu prendeu o pé em uma armadilha para animais, provocando as gargalhadas de uma velhinha natural; da Trácia que o estava seguindo, que lhe lançou ao rosto o seu costume de contemplar as estrelas sem ver onde os pés pisavam.

10.

Quanto a Anaxágoras, o que introduziu a Filosofia em Atenas, também é apresentado pela tradição como um homem estranho a qualquer atividade prática. Para poder se ocupar a contemplar a natureza, entregou toda a sua fortuna de presente aos seus parentes. Interrogado sobre o objetivo de sua vida, respondeu que vivia para contemplar o Sol, a Lua e o céu. Aos que lhe reprovaram a falta de interesse pela sua pátria, respondeu que a sua pátria, ao contrário, lhe importava muitíssimo, apontando com o dedo para o céu.

11.

Pitágoras, ao que parece, tendo sido primeiramente discípulo de Anaximandro de Mileto, conterrâneo e contemporâneo de Tales, e tendo depois passado mais de duas décadas estudando entre os sábios do Egito e depois mais uma década e pouco entre os sábios da Pérsia, quando voltou para a sua pátria e lhe perguntaram o que era ser filósofo, respondeu com a seguinte comparação:

"A sociedade humana assemelha-se
à grande assembléia dos gregos
por ocasião dos Jogos Olímpicos.
Aí alguns aparecem com a intenção
de alcançar vitórias e louros,
outros procuram vender suas mercadorias,
e outros cuidam de comprar as coisas
de que precisam.
Há, entretanto, uma categoria de pessoas",

diz Pitágoras,

"justamente as mais distintas
e de máximo engenho,
que não buscam aplausos nem vantagens,
mas que comparecem aos jogos
como expectadores
e examinam cuidadosamente as coisas
que se passam.
Pois isso mesmo",

continua Pitágoras,

"é o que ocorre na vida.
Uns se apegam exclusivamente à glória,
outros ao dinheiro.
Há, porém, um punhado de pessoas
espalhado pelo mundo
que se desapegam de tudo
para observarem curiosamente
a natureza.
Estes são os filósofos,
e assim como a atitude mais distinta
nos Jogos Olímpicos
é a do puro espectador,
assim na vida a contemplação
e o estudo da natureza
sobrepujam os outros tipos de atividade.
O filósofo é o espectador da natureza,
o homem que examina curiosamente
como as coisas se passam".

12.

Aparentemente esta atitude é tão estranha e inesperada para o homem de hoje que a sua primeira reação será provavelmente a de considerar tais pessoas como excêntricas, quando não loucas. Entretanto, uma série de outros testemunhos de filósofos e historiadores que viveram na antiguidade posteriormente aos pré-socráticos deveriam desfazer esta primeira impressão e forçar o homem de hoje a tentar buscar uma interpretação mais profunda para esta atitude dos filósofos.

13.

De Tales, sabe-se que era capaz de calcular e prever os eclipses solares. Ele deixou demonstrados alguns teoremas de Geometria que são estudados até hoje. De Tales de Mileto assim afirmou Aristóteles em seu tratado de Política:

"Atribui-se a Tales de Mileto,
por sua grande sabedoria,
uma especulação lucrativa
que, aliás,
nada tem de extraordinário.
Reprovava-se a sua pobreza,
dizendo-se-lhe que a Filosofia
para nada serve
se é para ficar pobre.
Aborrecendo-se Tales com estes comentários,
ele previu,
por seus conhecimentos de Astronomia,
que iria haver uma extraordinária
colheita de azeitonas.
Estava-se, porém, ainda no inverno.
Procurou Tales o dinheiro necessário
e arrendou todas as prensas de óleo
de Mileto e de Quio
por um preço irrisório,
pelo fato de ser inverno
e de não ter concorrentes.
Quando veio a colheita
as prensas foram procuradas de repente
por uma multidão de interessados.
Alugou então Tales as prensas
pelo preço que ele quis e,
realizando assim grandes lucros,
mostrou que é fácil aos filósofos
enriquecerem quando querem,
embora não seja este o fim de seus estudos.
E assim é que se diz que Tales
provou a sua habilidade".

O mesmo Tales é citado pelos historiadores antigos como grande amigo de Sólon, o grande reformador de Atenas, o que mostra que, apesar de sua pobreza, não era tido por qualquer um. O primeiro encontro havido entre Sólon e Tales é narrado por Plutarco ao biografar a história de Sólon no seu livro "As Vidas dos Homens Ilustres". Sólon vinha de Atenas e, ouvindo a fama de Tales, passando por Mileto, quis fazer-lhe uma visita pessoal. Diz então Plutarco:

"Na visita a Tales, em Mileto,
Sólon estranhou seu completo desinteresse
pelo matrimônio e pela procriação.

Tales ficou calado no momento;
deixou passar alguns dias
e arranjou um estrangeiro
que se dissesse recém chegado
de uma viagem de dez dias a Atenas.

Sólon perguntou-lhe
quais as novidades de lá.
O homem,
instruído sobre o que responder,
disse:

`Nada, senão o enterro de um moço,
acompanhado pela cidade toda.
Era, segundo diziam,
o filho de um homem ilustre,
o mais distinto dos cidadãos
por suas virtudes.
Este não se achava presente;
constava que estava de viagem
havia muito tempo'.

`Que homem desventurado',
exclamou Sólon.
`Como se chamava?'

`Ouvi o nome",
respondeu o homem,
"mas só me lembro
que se comentava muito
sobre sua sabedoria e eqüidade'.

Assim, cada resposta ia levando
Sólon ao medo.
Por fim, todo conturbado,
declarou o seu nome ao estranho
e perguntou se não diziam
ser o morto filho de Sólon.

O homem respondeu que sim.

Então Sólon começou a dar murros
na cabeça,
e a fazer e dizer tudo o mais
que nestes transes se costuma.

Tales, porém,
tomou-o pelo braço, rindo,
e disse:

`Aí está, Sólon,
o que me afasta do casamento
e da procriação;
são estas coisas que transtornam
até um homem inabalável como tu.
Vamos, não te desalentes com esta notícia,
pois ela é falsa'".

14.

Quanto a Anaxágoras, aquele que introduziu a Filosofia em Atenas e apontava para o céu para indicar a sua pátria, o mesmo Plutarco atribui a este filósofo toda a formação do caráter de Péricles, o homem mais importante de toda a história grega depois de Alexandre o Grande, o qual último, ademais, também ele viria a ser educado por outro filósofo, nada menos do que o próprio Aristóteles.

O testemunho de Plutarco sobre Anaxágoras é bastante eloqüente. Encontra-se na "Vida dos Homens Ilustres", quando biografa a vida de Péricles. Diz Plutarco que

"quem, todavia, mais estreitamente
se ligou a Péricles,
formando-o de sentimentos altivos,
superiores à sedução da demagogia,
quem, em suma,
o elevou às alturas
e ergueu a dignidade de seu caráter
foi Anaxágoras de Clazômenas;
a estes os seus contemporâneos
o apelidaram de `A Mente',
ou por lhe admirarem o saber imenso
no ramo das Ciências da Natureza,
manifestamente excepcional,
ou por ter sido o primeiro a atribuir
o princípio da ordem universal
não ao acaso,
nem ao destino,
mas a uma Mente pura e sem mescla que,
em meio à mistura geral,
reúne à parte as substâncias homeômeras.

Votando a este homem
uma desmedida admiração
e forrado da chamada
ciência dos corpos celestes
e de altas especulações,
Péricles, aparentemente,
não só mantinha uns sentimentos altivos,
uma linguagem elevada,
muito longe do mau gosto vulgar,
mas também um semblante composto
que nunca o riso desmanchava,
um andar pausado,
um aprumo nas vestes,
que emoção nenhuma perturbava nos discursos,
bem como uma impostação de voz imperturbável,
e todos os mais traços desses
que impressionavam a toda a gente.

Certa vez, por exemplo,
insultado e destratado na praça
por um indivíduo desclassificado
e sem educação,
suportou-o calado o dia inteiro,
enquanto cuidava de seus negócios urgentes.
À tarde voltou para casa,
sem alterar-se,
enquanto o homem o seguia de perto
enxovalhando-o com toda a sorte de palavrões.
Quando estava para entrar,
como já caía a noite,
mandou um de seus servos
tomar uma lanterna e escoltar o homem
até entregá-lo em casa.

Mas nem só estes proveitos
colheu Péricles
no convívio de Anaxágoras.
Também superou quanta superstição
produz o terror dos fenômenos celestes
naqueles que, por ignorância,
se deixam transtornar e confundir
pelos assuntos divinos.
O estudo da natureza remove esta ignorância
e em lugar da superstição timorata e inflamada
cria uma piedade confiante,
de boas esperanças".

15.

E, no que diz respeito a Pitágoras, a história afirma que, depois de ter completado sua formação primeiramente com Anaximandro, depois no Egito e na Pérsia, nas cidades da Magna Grécia onde ele ou os seus primeiros discípulos abriam uma escola de Filosofia, as populações locais suplicavam aos seus governantes que aceitassem os filósofos pitagóricos como conselheiros permanentes, o que estes costumavam fazer, sob a orientação da própria escola, sem daí procurarem vantagens financeiras.

16.

Estas informações são suficientes para deixar entrever que o principal objetivo dos primeiros filósofos de viverem para contemplar a natureza não pode ser ingenuamente classificado como uma simples extravagância. Ao contrário, é preciso que seja mais seriamente analisado e interpretado, o que será feito, colocada esta introdução, posteriormente neste livro.

17.

A interpretação correta do que se entendia por uma vida dedicada à contemplação da natureza é passo decisivo também para o correto entendimento da obra de Parmênides. este homem, de fato, operou um salto gigantesco no conceito de Filosofia dos primeiros pré-socráticos, o qual não poderá ser compreendido se não for possível compreender primeiramente com uma certa profundidade o verdadeiro significado da atitude dos primeiros filósofos que o precederam.

São Paulo, 31 de março de 1989