28.

Conclusão.

Expusemos, até aqui, o que é a virtude da fé e como, através dela, se alcança a graça do Espírito Santo. É necessário, para concluir, expor ainda de que modo é possível para o homem fazer uma auto verificação para saber se ele está verdadeiramente sendo movido pela fé animada pela caridade de que fala São Paulo ou se, apesar de parecer-lhe o contrário, não estará se enganando a si mesmo.

Diz Jesus que a árvore se conhece pelos seus frutos:

"Não pode uma árvore boa
dar maus frutos,
nem uma árvore má
dar bons frutos",

diz Jesus. E conclui:

"Vós as conhecereis
pelos seus frutos".

Mt. 7, 18-20

Assim também, embora do ponto de vista especulativo seja mais fácil o homem julgar a respeito da natureza da fé considerando-a em si mesmo, quando se passa ao terreno da prática será mais fácil julgar a respeito desta virtude através do exame de seus frutos. Vamos, por isto, enumerar alguns frutos visíveis da fé animada pela caridade, através dos quais o homem pode conhecer mais facilmente e sem engano se ele está sendo verdadeiramente conduzido por esta virtude sem a qual, segundo São Paulo, não se alcança a justificação.

Para discernir quais são estes frutos, devemos considerar que a caridade é aquele amor intenso por Deus que nos foi preceituado pelas Escrituras e que não pode ser cumprido sem a sua graça; através da caridade amamos a Deus mais do que a tudo, somos aceitos em sua amizade e convidados a renunciar a todos os nossos baixos objetivos para partirmos em sua busca, tal como aconteceu com o filho pródigo quando se dispôs a voltar para a casa do pai. A caridade quer tanto a Deus que, uma vez percebido qual é o caminho pelo qual o homem pode se aproximar de Deus, não tolera mais adiamentos e não quer mais senão dedicar-se o quão inteiramente possível a percorrer este caminho, que não é curto.

Ora, o homem não pode aproximar-se de Deus senão pelo crescimento na graça do Espírito Santo e a vida da fé é o meio para se crescer nesta graça. Supõe-se sempre, seria quase desnecessário repeti-lo, que ao dizer isto estamos nos referindo à fé animada pela caridade:

"A fé católica,
daqueles que vivem catolicamente,
imitando a vida de Cristo",

diz Hugo de S. Vitor,

"é a fé que opera pela caridade.

Aqueles que possuem esta fé
não apenas crêem,
mas também amam".

In Primam ad Corinthios
Quaestio 116

A fé, portanto, será animada pela caridade se a caridade se une à fé e se utiliza dela para aproximar-se cada vez mais intensamente daquele a quem se ama, pelo crescimento da graça e do amor. Este crescimento supõe, paralelamente, uma afinidade sempre crescente pelas coisas que mais se assemelham à natureza divina e um conseqüente afastamento sempre mais pronunciado daquelas que se opõem a estas. Pode- se concluir daqui ser sinal da fé movida pela caridade se, através dela, se produzem no homem frutos que demonstram ter ele rompido com aquele modo de agir próprio dos animais e estar se revestindo daquela participação da natureza divina que é a vida da graça.

Neste sentido, os primeiros frutos da fé animada pela caridade, conforme descritos pelas Sagradas Escrituras, são a crucificação das obras da carne:

"Os que são segundo a carne",

diz São Paulo,

"gostam das coisas
que são da carne.
Mas os que são segundo o espírito,
gostam das coisas
que são do espírito".

Rom. 8, 5

E também:

"Aqueles que vivem pelo espírito,
fazem morrer as obras da carne".

Rom. 8, 13

O significado destas sentenças de São Paulo são bastante evidentes. A expressão "vivem pelo espírito" designa aqueles que, através da fé, são conduzidos pela graça do Espírito Santo. São Paulo quer dizer, portanto, que os justos que vivem da fé vivem para as coisas do espírito e as obras da carne são por eles crucificadas:

"Sabei-o bem",

diz São Paulo na Epístola aos Efésios,

ninguém que proceda diversamente
"terá herança no Reino de Cristo
e de Deus".

Ef. 5, 5

"Mortificai, pois,
os vossos membros terrenos:

a fornicação,
a impureza,
a lascívia,
os desejos maus
e a avareza,
que é uma idolatria,

pelas quais coisas vem a ira de
Deus sobre os que não crêem".

Col. 3, 5

Deve-se notar, ademais, nas expressões de que São Paulo se utiliza, que o Apóstolo não ensina que pela graça do Espírito Santo as obras da carne se desfazem por si mesmas. Ao contrário, após dizer que o Espírito de Deus infunde na alma do cristão o gosto pelas coisas do espírito (Rom. 8, 5), o Apóstolo exorta ao cristão, e não ao Espírito Santo, que faça morrer as obras da carne (Rom. 8, 13), que mortifique os seus membros terrenos (Col. 3, 5), e que crucifique a própria carne com os seus vícios e concupiscências (Gal. 5, 24). Todas estas expressões supõem um verdadeiro empenho daquele que é movido pelo Espírito de Deus. Sem a graça do Espírito Santo este empenho seria inútil e não produziria os frutos esperados; nosso esforço seria uma batalha perdida por antecipação para a qual provavelmente sequer teríamos motivação. É pela graça do Espírito Santo, que nos vem através da vida da fé, que nos é dada a inclinação e a força para vencer as obras da carne. Isto é o que é ensinado claramente em diversas passagens das epístolas de São Paulo; será em vão, porém, que procuraremos algum lugar de suas cartas onde o Apóstolo afirme que o Espírito Santo dispensa o empenho e até mesmo o heroísmo por parte daquele que o recebe para cumprir os mandamentos divinos, e foi justamente por assim o terem erroneamente entendido muitos dos primeiros cristãos que São Tiago chamou- lhes a atenção neste sentido:

"Que aproveitará, irmãos meus,
se alguém diz que tem fé
e não tem obras?
Porventura poderá salvá-lo tal fé?
A fé, se não tiver obras,
é morta em si mesma.
Queres saber, ó homem vão,
como a fé sem obras é morta?
Abraão, nosso pai,
não foi justificado pelas obras,
oferecendo seu filho Isaac sobre o altar?
Tu vês que a fé cooperava
com as suas obras
e que a fé foi consumada
por meio das obras.
E cumpriu-se a Escritura que diz:

`Abraão creu em Deus
e isso lhe foi imputado como justiça,
e foi chamado amigo de Deus'.

Vedes, pois,
que o homem é justificado
pelas obras,
e não pela fé somente?

Assim como o corpo sem espírito é morto,
assim também a fé sem obras é morta".

Tg. 2, 14-26

Ao contrário do que poderá parecer num primeiro exame aos leitores que não viveram naquela época, esta passagem de São Tiago não foi escrita para contradizer os ensinamentos de São Paulo, mas para contradizer aqueles que supunham terem lido em suas cartas aquilo que São Paulo jamais escreveu. Quem é conduzido pelo Espírito Santo, diz ainda São Paulo, não terá dificuldades em distinguir quais são as obras da carne que os justos crucificam:

"As obras da carne são manifestas",

diz São Paulo,

"são (elas)

a idolatria,
a fornicação,
a impureza,
a luxúria,
os malefícios,
as inimizades,
as contendas,
as rivalidades,
as iras,
as rixas,
as discórdias,
as seitas,
as invejas,
os homicídios,
a embriaguez,
as glutonerias
e outras coisas semelhantes,

sobre as quais vos previno,
que os que as praticam
não possuirão o Reino de Deus".

Gal. 5, 19-21

De todas estas passagens se conclui que se alguém examina a si próprio e à própria conduta e observa que não está disposto a crucificar em si mesmo todas estas coisas mas antes, ao contrário, as cultiva e as pratica voluntariamente, está longe da fé de que falam as Escrituras. Em vez disso, ele está profundamente mergulhado na ignorância do bem e no desejo do mal, precisamente o oposto do que deveria ser a fé animada pela caridade. Se este homem pensa que vive da fé está se enganando a si próprio e, quaisquer que sejam os motivos que possa ter para supor o contrário, a fé que ele imagina possuir não passa de uma ilusão. São Paulo é neste sentido muito claro:

"Os que são de Cristo
crucificaram a própria carne
com os seus vícios
e as suas concupiscências".

Gal. 5, 24

Diz ele também:

"Os que estão na carne,
não podem agradar a Deus.
Vós , porém,
não estais na carne,
mas segundo o Espírito,
se é que o Espírito de Deus
habita em vós.
Mas, se alguém não tem
o Espírito de Deus,
este não é dEle".

Rom. 8, 8-9

Não há modo de se interpretar diversamente o significado destas passagens. O que elas nos querem dizer é algo tão claro que não deixa margem a dúvidas.

Fica assentado, pois, que os primeiros frutos da fé no homem são a crucificação dos vícios e dos desejos da carne, e que o homem que não vive da fé não somente os pratica para a sua própria morte espiritual como também é escravo dos mesmos e tem a sua mente controlada por eles, ainda que não o queira ou o possa admitir. Quando o homem, porém, através da graça que vem pela vivência da fé, passa a opor-se lucida e deliberadamente a estas coisas e a imperar sobre elas, seu espírito se torna livre para poder funcionar em outro plano de ação que até então ele desconhecia.

É o que ocorre ao poder-se colocar, em segundo lugar, como fruto da vida da fé, a abundante misericórdia para com o próximo.

Indiretamente, a causa desta misericórdia provém da fé, na medida em que a misericórdia é o resultado do abandono daquele modo de vida em que a inteligência se põe a trabalhar para satisfazer às obras da carne e se torna, em uma completa inversão de papéis, apenas um instrumento para a obtenção dos fins ditados pelas paixões dos sentidos. Estes fins são sempre egoístas, pois as paixões, no que depende apenas delas próprias, não são capazes de compreender a existência do outro e se buscam sempre a si próprias. A apreensão do outro enquanto tal é algo que cabe não aos sentidos, mas à inteligência. A subordinação do conjunto da atividade da inteligência aos fins egoístas ditados pelos sentidos cega, com isto, o entendimento para a percepção do outro e habitua o homem a apreender os seus problemas pessoais de um modo desproporcional com a realidade. Quando, com o auxílio da graça, este mesmo homem passa a crucificar as obras da carne, o que ocorre não é a aniquilação das paixões, mas a subordinação de suas atividades à inteligência iluminada pela fé e à vontade inclinada pela caridade. As relações entre as faculdades da alma, isto é, os sentidos, a inteligência e a vontade, se reordenam segundo as suas verdadeiras naturezas e surge então, naturalmente, pela libertação das faculdades mais nobres da alma, a presença do outro no horizonte da inteligência.

Mais diretamente, a presença do outro é conseqüência também da própria fé, pelo fato da fé ser a primeira manifestação da graça naquele longo caminho que se dirige à verdade que Jesus prometeu como prêmio àqueles que seguissem os seus preceitos. Se isto é verdade, então o caminho da fé deve necessariamente ser o caminho de uma lucidez sempre crescente. Ora, qual é o homem lúcido que não vê outros homens passando necessidades, muitas, maiores e mais merecedoras de auxílio e de ocupação do que qualquer problema pessoal próprio? Se não os vê, é porque é cego; e se é cego, não é possível que sua alma esteja sendo conduzida pela luz da fé. Aqueles, porém, que compreenderam a desproporção entre as necessidades dos que precisam de auxílio e a pequenez dos seus problemas são como que obrigados por este entendimento a não poder mais viver para aquilo que antes constituía a trama de suas vidas quando ainda viviam dos sentidos. Passam a ser obrigados a viver da misericórdia, não porque gostem dela ou porque têm prazer em praticar certas obras de beneficiência, mas porque, gostem ou não gostem, estão caminhando para a verdade e não podem senão ser coerentes com ela. Diz, de fato, o livro de Provérbios:

"Aquele que crê no Senhor
ama a misericórdia;
a misericórdia e a verdade
são as que nos adquirem os bens".

Pr. 14, 21-22

A misericórdia procede, portanto, indiretamente da crucificação das paixões da carne, que já é um primeiro fruto da fé, e da própria fé. Procede também, indiretamente, da virtude da caridade, na medida em que a caridade não deixa o coração inclinar-se ao mal, removendo com isso um dos principais obstáculos à iluminação da inteligência pela fé. A misericórdia, porém, procede também da caridade de um segundo modo mais elevado e de que trataremos mais adiante, originando-se diretamente desta virtude de um modo que lhe é característico ao se manifestar, em um de seus modos mais maduros, sob a forma do ensino.

Pode-se mencionar como fruto da fé animada pela caridade, em terceiro lugar, o amor pela própria fé. Isto acontece porque se alguém ama a Deus, é de se supor que ame também às coisas que mais se parecem com Deus. Ora, este é o caso da fé. O exercício pleno da fé animada pela caridade é, nesta vida, uma imagem da visão beatífica do céu. De fato, diz Tomás de Aquino, "a vida eterna nada mais é do que conhecer a Deus; ora, este conhecimento de Deus se inicia em nós pela fé". É evidente, pois, que aqueles que são movidos pela caridade, pela qual amamos a Deus acima de tudo, não podem deixar de amar também a fé como aquela dentre as coisas criadas que mais se assemelham ao próprio paraíso. Estas pessoas amam, por conseqüência, também à oração, através da qual se adquire a fé. Uma profunda afinidade para com a fé e a oração significa, portanto, afinidade pelo paraíso, e os que vivem assim, embora estejam na terra, já podem ser ditos cidadãos do céu.

Pode-se mencionar, em quarto lugar, como fruto da fé, o próprio objetivo dela:

"O fim do preceito" da fé,

diz São Paulo,

"é a caridade,
nascida de um coração puro".

I Tim. 1, 5

Vivem a caridade aqueles que amam a Deus acima de tudo, por ser Deus o bem absoluto e nos oferecer a sua amizade, coisas que são propostas ao homem, de modo especial a segunda, através da fé.

Uma conseqüência desta afirmação é que a caridade ama também a Deus por ser o único e verdadeiro bem do homem, de onde se conclui que aqueles que não se amam a si mesmos buscando a Deus para si como um bem acima de qualquer outro bem, todos os demais bens só sendo buscados na medida em que possam servir como instrumentos para alcançar este bem que é o único e verdadeiro, estes já não amam a Deus pela caridade, pois a caridade é isto e mais do que isto. Nem se pode dizer também que são movidos pela fé de que fala continuamente São Paulo, pois a caridade é precisamente o fim desta fé.

Que, porém, o homem deve amar a si mesmo, as próprias Escrituras o atestam quando dizem que o homem deve amar o próximo como a si mesmo (Mc. 12, 31). Jesus não poderia fazer uma comparação como esta se ele não admitisse, tacitamente, que cada homem tem obrigação, por disposição divina, de se amar a si próprio. Isto é claro e evidente; outra, porém, é a questão de se saber de que modo o homem deve proceder para cumprir o mandamento de amar a si mesmo. Onde, pergunta Hugo de São Vitor na Questão 307 do Comentário aos Romanos, em que lugar das Escrituras

"foi dado ao homem
o preceito ou o ensinamento
sobre como se deveria
amar a si mesmo?"

É ele mesmo que nos responde:

"Quando o homem é ensinado
como deve amar a Deus,
nisto mesmo está sendo ensinado
como deverá amar a si mesmo.
Pois amar a si mesmo
significa amar o próprio bem".

Quem não quer o próprio bem,
na realidade se odeia a si mesmo.

"Qual é, porém,
o bem do homem,
senão Deus?
Quem, portanto,
ama a Deus,
ama a si mesmo
e quanto mais amar a Deus,
tanto mais amará a si mesmo".

É conseqüência, pois, da vida da fé e da caridade que o homem busque a Deus também como seu verdadeiro e único bem. Disto, porém, resulta ainda um quinto fruto da fé, através da caridade.

Pode-se colocar, de fato, em quinto lugar, também como fruto da fé, e mais propriamente da caridade que surge da fé, o exercício do ensino. Pois as Escrituras nos preceituam que o homem deve

"amar o próximo
como a si mesmo".

Mc. 12, 31

Hugo de São Vitor nos ensina que, segundo alguns, a expressão "amar o próximo como a si mesmo" designa

"não a quantidade,
mas a semelhança;
isto é, assim como o homem
só se ama verdadeiramente
quando se ama
para que possa possuir a Deus,
assim também deve dar-se à obra
para que faça o quanto puder
para que os outros também o possuam".

Comentário a Romanos
Quaestio 308

Destas palavras se depreende que não é possível amar ao próximo segundo o preceito cristão se não se ama primeiro a Deus, se não se o busca como o verdadeiro bem para si e se não se cumpre o último dos preceitos dados por Jesus de ensinar.

Estes cinco frutos aqui enumerados como sendo os sinais pelos quais o homem pode saber se vive a vida da fé pela qual se alcança a justificação são as primeiras atitudes básicas da conduta do homem cujo coração está sendo convidado ao bem e cuja inteligência foi iluminada pela graça. São, em grandes linhas, aquilo a que denominamos de Moral Cristã. Chama-se, de fato, Moral ou Ética à ciência que estuda a conduta e os costumes corretos da vida, e Moral Cristã ou Teologia Moral à ciência que estuda a conduta e os costumes corretos de uma vida conduzida de acordo com a razão iluminada pela graça, um assunto de que trataremos mais longamente mais adiante nestas aulas.

Antes, porém, de falarmos sobre a moral cristã, tentaremos, no próximo livro, na medida do possível, devido à grande dificuldade do assunto, tratar sobre o mistério de Cristo e explicar porque no Novo Testamento, na maioria das vezes em que se fala da fé, os apóstolos se referem de modo especial à fé em Cristo em vez de tomá-la num sentido mais genérico, como o faz o décimo primeiro capítulo da Epístola aos Hebreus.