27.

Por que alguns não crêem?

O tema deste livro foi a fé, como meio de se alcançar a graça do Espírito Santo. Não se pode concluir este assunto, porém, sem examinar mais cuidadosamente a questão sobre o motivo por que há pessoas que não crêem.

De tudo quanto dissemos, poderia-se concluir que, se há pessoas que não crêem, o motivo é a falta de oração. De fato, se elas orassem a Deus pedindo a fé, receberiam a fé e creriam; como, porém, não oram, não crêem. Não crendo, segundo ensina Jesus, já estão condenados, porque não podem se aproximar da luz de Deus. E suas próprias obras os condenarão, pois sem a luz da graça lhes será impossível cumprir os mandamentos divinos. Se estas pessoas orassem, porém, obteriam facilmente a fé, passariam a caminhar da fé para a fé, viveriam da fé e se tornariam santos, conforme diz São Paulo em Romanos 1, 17. Parece poder concluir-se, portanto, que se as pessoas não têm fé é porque não oram.

E isto, de fato, é verdade. O problema, porém, é que para a eficácia da oração requer-se, além da sinceridade, a própria fé. Não é possível, portanto, alcançar a fé através da oração se já não tivermos alguma fé. É pela fé que alcançamos, através da oração, uma fé ainda maior, sendo por isto que na Epístola aos Romanos São Paulo diz que

"a justiça se manifesta
naquele que crê",

Rom. 1, 17

logo em seguida acrescentando

"que caminha
da fé para a fé",

sentença que já tínhamos citado anteriormente mas que somente agora estamos em condições de interpretar. Pois para obter a fé, é preciso já possuí-la; para alcançar uma fé mais plena, que é fruto de uma maior plenitude de graça, é preciso obter esta graça, a qual não se obtém senão através da fé que é uma das condições da oração. Caminhando assim, da fé para a fé, chega-se àquela vivência desta virtude que faz São Paulo dizer: "o justo vive da fé". Mas se o homem não tiver fé nenhuma, não poderá alcançá-la, pois ela mesma é uma das condições colocadas para se poder obtê-la. Ademais, a fé é causada no homem pela graça: ela é, conforme vimos, a primeira manifestação da graça no homem. Deduz-se, portanto, que para o homem alcançar a fé necessita da graça. Bastaria uma simples oração para obtê-la, mas até uma coisa tão simples como esta é absolutamente impossível sem o auxílio da graça.

Para que o homem creia, portanto, é preciso que ele seja inicialmente movido a tanto pela graça. Sem a graça divina, o homem não pode fazer absolutamente nada a este respeito. Não há absolutamente nada que o homem possa fazer para obter a graça sem o auxílio da própria graça. Sem este primeiro impulso da graça, sobre o qual o homem não tem controle algum, ele não pode fazer nada para salvar-se, não quererá fazê-lo e provavelmente sequer entenderá que deve fazê-lo.

Há diversas passagens do Evangelho de São João onde o próprio Jesus examina pessoalmente esta problemática questão. No quinto capítulo deste Evangelho, Jesus diz aos judeus:

"Eu não recebo a glória dos homens,
mas sei que não tendes em vós
o amor de Deus.
Em vim em nome de meu Pai,
e vós não me recebeis;
se vier outro em seu próprio nome,
recebe-lo-eis.
Como podeis crer,
vós que recebeis a glória
uns dos outros,
e não buscais a glória
que vem só de Deus?"

Jo. 5, 41-44

Nesta passagem Jesus diz aos judeus que ele entende perfeitamente que os judeus não creiam nele, pois não podem crer porque não buscam a glória que vem só de Deus. Se buscassem a glória que vem só de Deus, insinua Jesus, assim que Jesus se lhes apresentasse, eles creriam. O problema, porém, é que não é possível buscar sinceramente a glória que vem só de Deus se o homem não for movido pela graça do Espírito Santo. De onde que se deduz que, segundo Jesus, os judeus não criam nele, e não podiam crer, mesmo vendo os milagres e ouvindo a pregação de alguém da estatura de Jesus, porque não eram movidos pela graça.

No capítulo seguinte do Evangelho de São João, novamente Jesus se coloca a mesma questão. Ele diz a outros judeus:

"Ninguém pode vir a mim
se o Pai que me enviou
não o atrair.
Está escrito nos profetas:

`E serão todos
ensinados por Deus'.

Portanto, todo aquele que ouve
e aprende do Pai,
vem a mim".

Jo. 6, 44-45

Jesus diz nesta passagem que ninguém pode vir até ele se o Pai que o enviou não o atrair. O que significa, para Jesus, a expressão "vir até ele"? No Evangelho de São João encontramos escrito:

"Jesus lhes disse:
Eu sou o pão da vida,
o que vem a mim
não terá jamais fome,
e o que crê em mim
não terá jamais sede",

Jo. 6, 35

de cujas palavras deduz-se que, para Jesus, vir até ele e crer nele são a mesma coisa. Quando Jesus diz, portanto, que ninguém poderia vir até ele sem que o Pai que o havia enviado o atraísse, queria dizer que ninguém poderia crer nele se a tanto não fosse movido pela graça divina, ainda que o tivesse conhecido pessoalmente, tivesse visto os seus milagres e ouvido os seus ensinamentos.

Mais um capítulo adiante, no mesmo Evangelho de São João, encontramos novamente Jesus fazendo idênticas considerações:

"A minha doutrina",

diz Jesus,

"não é minha,
mas daquele que me enviou.
Se alguém quiser fazer a vontade dele,
reconhecerá se a minha doutrina
vem de Deus ou se falo de mim mesmo".

Jo. 7, 16-17

Nesta outra passagem, Jesus diz que os homens reconhecerão se a sua doutrina vem ou não de Deus, isto é, crerão ou não na sua pessoa e no que Ele nos ensina, se quiserem fazer a vontade daquele que o enviou. Ora, na Primeira Epístola aos Tessalonicenses São Paulo diz:

"Esta é a vontade de Deus:
a vossa santificação".

I Tes. 4, 3

Jesus, portanto, quis dizer na passagem acima que, se alguém está buscando verdadeiramente a santificação, reconhecerá imediatamente se o que ele ensina vem ou não de Deus, isto é, crerá nele. Segundo Jesus, portanto, qualquer pessoa que verdadeiramente esteja em busca da santificação, ao lhe serem explicados quais são os seus ensinamentos, reconhecerá imediatamente, sem sombra de dúvida, que tais ensinamentos procedem de Deus e crerá nele. Porém, novamente, não é possível alguém estar verdadeiramente em busca da santificação sem estar sendo movido pela graça. Deduzimos, assim, outra vez, que sem a graça não é possível discernir a diferença entre os ensinamentos de Jesus e outros ensinamentos humanos e, sem isto, é impossível crer nele.

Podemos então dar uma resposta à pergunta sobre o motivo por que alguns crêem e outros não. Alguns crêem e outros não porque uns oram e outros não; mas até para orar e pedir a fé é necessário já possuir alguma fé e que a graça mova o homem. Tudo depende, portanto, em última instância, da graça divina. Se Deus não concede a graça, o homem nada poderá fazer e sequer o quererá fazer. Se Deus conceder a graça, a inteligência do homem se abre e sua vontade se sentirá atraída para pedí-la. Se o homem não contar, porém, com o auxílio da graça, nada poderá fazer para obtê-la.

Temos nas narrativas dos Evangelhos um claro exemplo de como isto acontece na história dos dois ladrões crucificados ao lado de Jesus:

"Junto com Jesus,
crucificaram dois ladrões,
um à direita e outro à esquerda.
Ora, um dos ladrões crucificados
o insultava, dizendo:

`Tu não és o Messias?
Salva-te a ti mesmo e a nós'.

Mas o outro o repreendia e dizia:

`Não temes sequer a Deus,
tu que padeces a mesma condenação?
Para nós, isto é justo;
estamos recebendo o que merecemos
pelos nossos atos;
este, porém,
não fêz nada de mal'.

E acrescentou:

`Jesus,
lembra-te de mim
quando vieres no teu reino'.

Jesus então lhe respondeu:

`Em verdade eu te digo:
hoje estarás comigo no paraíso'".

Mc. 15, 27
Lc. 23, 39-43

Nesta narrativa pode-se perceber nitidamente, nos dois ladrões, algo mais do que apenas a diferença entre bondade e maldade. O mérito do bom ladrão não foi apenas o de ter sido humilde e haver reconhecido as suas faltas, nem na conduta do mau ladrão observamos apenas uma manifestação de orgulho e revolta ao não querer reconhecer a diferença entre suas culpas e a inocência de Jesus. Se examinarmos o texto acima com mais cuidado, verificaremos que o bom ladrão se dirige a Jesus como a um rei, e a um rei poderoso, capaz de conceder dons preciosíssimos como o paraíso, maiores do que os que o próprio Imperador de Roma poderia conceder, o qual na época era o mais poderoso de todos os homens. Aparentemente, porém, não havia nada em Jesus que pudesse indicar estar ele revestido de tão extraordinária realeza: ele estava sendo crucificado como um simples marginal e desde que havia sido preso nenhum soldado nem nenhum súdito se havia apresentado para lutar por ele. Não havia nada, também, que pudesse indicar que houvesse nele poder algum; ao contrário, ele parecia mostrar-se impotente até para descer da cruz em que estava pregado. Não havia também nada que indicasse que ele pudesse fazer qualquer coisa por quem quer que fosse: dali a poucos instantes tudo parecia sugerir que Jesus seria um homem morto, nada mais do que um cadáver. A morte de Jesus era tão iminente que já era praticamente um fato consumado; Jesus era, do ponto de vista humano, praticamente falando, nada mais do que um cadáver de um homem inteiramente abandonado. E, no entanto, este bom ladrão estava vendo nEle algo que nenhum olho humano poderia ver: dirigiu-se a Ele, com toda a naturalidade, como se o faz a um Rei, prestes a sentar-se em um trono infinitamente mais poderoso que o do Império Romano, o mais poderoso dos tronos já aparecido na história humana até aquela época, e pediu-lhe com toda a humildade que se lembrasse dele quando assim o fizesse. Não havia nada que o bom ladrão soubesse de Jesus que o outro ladrão também não o soubesse, mas o segundo não conseguia ver em Jesus nada do que o primeiro via. O primeiro, porém, o fazia com toda a naturalidade, e confiava, contra toda a evidência dos olhos da carne, que seria ouvido por Jesus. Era a graça que movia a sua alma, elevando suas faculdades para a apreensão de uma realidade sobrenatural, tornando evidente para ele o que para o outro não passava de uma loucura. Através da graça, alcançou a fé e, conforme Jesus havia ensinado tantas vezes quando em vida, a sua fé o salvou: naquele mesmo dia ele entrou com Jesus no paraíso. Seu colega, infelizmente, inteiramente privado da luz da graça, não conseguiu perceber nada disso e, no que depende apenas do relato escrito que nos ficou, não pode ter alcançado a mesma sorte.

De tudo isto, portanto, deduz-se que se alguns crêem é porque são movidos a tanto pela graça enquanto que outros não crêem porque não podem contar com o auxílio da graça, sem a qual não há luz para crer. Fica, porém, a pergunta a respeito do motivo pelo qual Deus concede a graça a alguns enquanto a outros não, como ocorreu com o bom e o mau ladrão. Haveria algum critério para isto ou a escolha é arbitrária?

No Evangelho de São João há uma outra passagem que parece, pelo menos ao primeiro exame, sugerir que a escolha não é arbitrária:

"Quem crê",

diz Jesus,

"não é condenado,
mas quem não crê
já está condenado.
E a condenação está nisto:
a luz veio ao mundo
e os homens amaram mais as trevas
do que a luz,
porque as suas obras eram más.
Porque todo aquele que faz o mal
aborrece a luz,
e não se chega para a luz,
a fim de que não sejam reprovadas as suas obras;
mas aqueles que procedem segundo a verdade,
chegam-se para a luz,
a fim de que suas obras sejam manifestas
como feitas segundo Deus".

Jo. 3, 18-21

Aqui Jesus afirma primeiro que a luz veio ao mundo, isto é, Ele próprio com a graça que, através dEle, Deus concede aos homens. Ao dizer que a luz veio ao mundo, Jesus parece não excluir ninguém; o mundo significa, no comum entendimento das pessoas, a totalidade dos homens. Desta passagem, portanto, parece deduzir-se que Deus não priva deliberadamente a ninguém da graça; antes, a coloca ao acesso de todos, do mundo todo, isto é, de todos os homens. Quem faz a seleção de quem receberá ou não a graça a todos oferecida, parece dizer Jesus, são as próprias pessoas, segundo o seu agir. Há os que fazem o mal e estes aborrecem a luz por uma certa conaturalidade; eles próprios, pelas obras más que fazem, não se aproximam da luz da graça porque por uma certa conaturalidade assim não o querem. Há outros que não fazem o mal, mas que procedem conforme a verdade; estes, pelo motivo oposto, tem uma certa conaturalidade para com a luz da graça e facilmente se aproximam dela, sendo como que inclinados a fazê-lo. Este parece, portanto, ser o motivo pelo qual alguns são movidos pela graça e outros não. Deus, na realidade, a deseja conceder a todos e ela está, de fato, ao acesso de todos, mas cada um, segundo uma inclinação resultante de suas próprias obras, tende a se aproximar ou a se afastar dela. A distribuição da graça entre os homens, portanto, não é fruto de uma arbitrariedade divina, e deve ter havido razões justíssimas, embora nós não as conheçamos, pelas quais o bom ladrão percebeu com tanta facilidade a realeza de Jesus nas mesmas condições em que o mau ladrão não conseguia ver absolutamente nada.

Este raciocínio, porém, se analisado mais cuidadosamente, embora explique suficientemente como a distribuição da graça entre os homens não é feita de modo arbitrário por parte de Deus, não fornece, entretanto, uma explicação última a respeito do motivo por que alguns são movidos pela graça e outros não. De fato, ela novamente supõe que para aproximar-se da graça é preciso ser movido pela graça, enquanto que aqueles que não são movidos por ela não podem alcançá-la por suas próprias forças. Que isto seja assim, pode ser visto examinando novamente as palavras de Jesus.

Jesus diz, na passagem citada, que a luz veio ao mundo e, ao dizer isto, quis dizer que veio para todos, indistintamente. Os homens, porém, não eram iguais no mundo; alguns praticavam o mal e por isso aborreciam a luz e não se aproximavam dela; outros, porém, havia que procediam conforme a verdade e se achegavam à mesma. Entretanto, para que se possa proceder conforme a verdade, é necessário já ser movido a tanto pela graça. De onde se conclui que se havia alguns que procediam conforme a verdade e se aproximavam da graça era porque já eram movidos por ela. Novamente é a própria graça que é a razão última da própria graça. Há sempre uma primeira graça que foi recebida, só a partir da qual é possível achegar-se a ela, e sem a qual nenhuma outra é possível.

Para explicar a razão desta primeira graça poderia-se levantar uma hipótese fundamentada no fato de que a distinção elementar entre o bem e o mal pode ser feita no homem apenas através da razão, sem necessidade da graça, algo que não pode ser negado sem negar à inteligência humana os atributos próprios de sua natureza. A razão sendo suficiente para fazer estas distinções, pode-se concluir daqui que também as escolhas mais elementares entre o bem e o mal possam ser feitas pelo homem sem o auxílio da graça. Deste modo, de acordo com as suas escolhas voluntárias, o homem poderia adquirir uma afinidade para com a graça e aproximar- se ou não dela. Parece ademais apoiar esta hipótese um texto da Epístola aos Romanos, em que São Paulo diz que os pagãos, mesmo sem a Revelação, através da observação da natureza, podem entender suficientemente das coisas divinas o que lhes é necessário para glorificarem a Deus:

"De fato",

diz São Paulo,

"depois da criação do mundo,
as coisas invisíveis de Deus,
como o seu poder eterno
e a sua divindade,
podem ser compreendidas pelos homens
através das coisas criadas,
tornando-se, deste modo, visíveis,
e o que se pode conhecer de Deus
é lhes manifesto,
pois Deus lhos manifestou".

Rom. 1, 20-19

Este raciocínio contém, efetivamente, muitos elementos de verdade. É certo que o homem pode, apenas pela razão, sem necessidade da graça, fazer distinções elementares entre o bem e o mal e pode, também, durante algum tempo, segui-las pelo agir. Mas, ainda que sem o auxílio da graça ele pudesse perseverar indefinidamente na escolha daquilo que ele assim reconhecesse ser o bem, isto não poderia conduzí-lo à luz da graça, pois esta supõe uma elevação das faculdades da alma que tornam seus atos conaturais a uma realidade acima da natureza humana, o que não pode ser obtido por nenhuma repetição de nenhum ato de ordem simplesmente natural. Só pode ser feito pela própria graça. Para aproximar-se da graça, portanto, é sempre preciso a própria graça. Quando Jesus diz que aqueles que procedem conforme a verdade se aproximam da luz, ele está se referindo àqueles que procedem já movidos pela luz da graça divina. Desta luz da graça não estão dispensados nem mesmo os pagãos que sem culpa nunca tenham ouvido falar de Cristo e da Revelação, conforme observa Hugo de São Vítor na Questão 40 do Comentário à Epístola aos Romanos, em que trata da passagem acima citada de São Paulo:

"A razão natural pode alguma coisa no homem
sem a ajuda da graça?",

pergunta Hugo de São Vítor.

"Alguns dizem",

continua ele,

"que a razão natural pode muita coisa
só com as próprias forças,
como é evidente pelos escritos
dos filósofos gregos,
que só se utilizando da razão
alcançaram a compreensão de muitas coisas
não apenas no que diz respeito
à verdade sobre as criaturas,
como também sobre Deus.
Eles compreenderam, de fato,
que Deus existe,
que é único,
e até mesmo alcançaram algo
acerca de sua trindade.

Não parece, porém,
que tenha sido possível haverem chegado
a estas coisas
sem o auxílio da graça.

É por isso que o Apóstolo,
quando diz, na Epístola aos Romanos,

`o que se pode conhecer de Deus
é-lhes manifesto',

acrescenta, logo em seguida:

`pois Deus lhos manifestou'".

A salvação e a santificação do homem, portanto, estão na inteira dependência da graça. Para iniciar a caminhada até Deus, que principia pela fé, será sempre preciso um mínimo de graça e, se o homem não puder dispor deste mínimo, não poderá fazer nada, por si só, para obtê-lo.

Resta apenas saber se há algum motivo pelo qual este mínimo necessário para que o homem inicie a caminhada até Deus é negado a algumas pessoas ou se se trata de uma escolha arbitrária de Deus. Para responder a esta questão podemos reformulá-la, como faz Hugo de São Vítor no Comentário à Epístola aos Romanos, e perguntar se Deus, ao conceder e negar a uns e outros este mínimo de graça não estará Ele próprio se tornando responsável pelos pecados que serão cometidos pelos que não a tiverem recebido. A pergunta tem sentido pois se sem esta graça os homens se afastam de Deus, certamente não poderão deixar de cair em pecado e a causa destes pecados terá sido o próprio Deus que lhes negou a graça sem cujo auxílio o homem não pode deixar de pecar.

"Diz o Apóstolo",

comenta Hugo de São Vítor,

"que Deus

`entregou os gentios
aos desejos de seu coração,
às paixões imundas
e aos sentidos depravados'.

Rom. 1, 24; 1, 28

Há muitas outras passagens nas Escrituras
que se assemelham a esta.
Diz, de fato, o livro de Êxodo:

`Endurecerei o coração
de Faraó';

Ex. 7, 3

e também, na Epístola aos Romanos:

`Deus tem misericórdia de quem quer
e endurece a quem quer'.

Rom. 9, 18

Destas e de outras passagens
parece poder deduzir-se
que muitos males são realizados
pela própria operação divina.
Poderiam reunir-se muitas delas
e mostrar que nelas se manifesta
que Deus opera no coração dos homens,
inclinando pela sua misericórdia
os bons ao bem
e inclinando os maus ao mal
pelos decretos de seu julgamento,
os quais, embora sejam para nós
algumas vezes ocultos,
outras vezes manifestos,
sempre, todavia, serão justos.
Está, também, escrito no Apocalipse:

`Aquele que prejudica,
prejudique ainda;
aquele que é impuro,
continue na impureza;
aquele que é justo,
justifique-se mais;
aquele que é santo,
santifique-se mais'.

Ap. 22, 11

De onde procede esta justiça?
Por acaso não é de Deus,
de quem procede toda a justiça?
Assim, parece poder dizer-se
que é Deus quem a opera.
E quanto ao pecado que é,
ele próprio,
uma pena de um pecado precedente,
de onde procede?
Toda justiça procede de Deus,
e este pecado é uma pena justa.

Há três respostas possíveis
para tais perguntas.

Houve alguns que afirmaram que todo pecado procede de Deus,
não apenas aqueles que já são uma pena
por haver sido cometido outro anteriormente,
mas também aquele que é apenas culpa.
Os que julgam deste modo
admitem que o furto,
o latrocínio e o adultério
procedem todos de Deus,
conforme as palavras do profeta Amós:

`Haverá algum mal na cidade
que não tenha sido feito pelo Senhor?'

Am. 3, 6

Outros, porém,
ensinam que não é todo pecado
que procede de Deus,
mas apenas aqueles que,
além da culpa,
são também uma pena devida
a outros pecados já anteriormente cometidos.
Dizem estes que,
genericamente falando,
pode-se dizer que todo pecado
é operado por Deus,
se com esta expressão nos referimos
à permissão concedida por Deus
para que o pecado possa se realizar;
as Sagradas Escrituras, porém,
afirmam que os pecadores foram

`entregues por Deus
a sentimentos depravados'

porque estes pecados são eles próprios
penas inflingidas por outros pecados já cometidos.
Estes mesmos ensinam ainda
poder dizer que Deus opera todo pecado
se com esta expressão nos referimos não
apenas à permissão divina,
mas também à subtração da graça.
Deus, de fato, operaria estes pecados
ao subtrair a graça dos homens pois,
se é necessário que o pecado se siga
à subtração da graça,
é evidente que Deus operou aquele pecado
ao subtrair a graça.
Isto é ilustrado através do seguinte exemplo:
se uma casa estiver apoiada
em um muro de encosto,
sem o qual não pode permanecer de pé,
e alguém retirar o muro,
quem é que terá causado a ruína da casa
senão aquele que tiver retirado o muro do encosto?
Com estas e outras semelhanças
os que assim ensinam
se esforçam por demonstrar
que Deus opera alguns,
senão mesmo todos os pecados.

Nós, porém,
respondemos que não há semelhança
entre o exemplo da casa,
à qual não se podem atribuir méritos,
e o caso do homem,
por cuja culpa se retirou aquilo
sem o qual ele não pode permanecer de pé.
O exemplo seria mais adequado
se se tratasse de uma casa que já estivesse caindo,
e alguém a sustentasse com as suas próprias mãos
e o fizesse propositalmente para que ela não caísse.
Se, posteriormente,
por exigência de um motivo racional,
este homem retirasse as suas mãos,
ele não seria a causa pela qual
a casa teria caído;
teria sido apenas a causa desta casa
não ter caído antes.
Do mesmo modo,
se alguém estivesse nú
e outra pessoa o cobrisse de vestidos
e posteriormente a primeira pessoa,
já vestida,
ofendesse ao que a cobriu,
a tal ponto que, por motivos racionais,
esta última lhe tomasse as vestes de volta
e o primeiro viesse a morrer de frio,
não se poderia dizer que o segundo
foi a cauda da morte do primeiro,
mas sim que foi este primeiro
que causou a sua própria morte.

Assim também devemos dizer que Deus,
retirando-nos a graça por exigência
de nossa própria culpa,
não se torna Ele mesmo a causa pela qual
a graça nos é subtraída,
nem se pode dizer que Ele faz isto operando algo,
mas não operando aquilo que antes operava.

Assim, em nenhuma hipótese
pode-se conceder que qualquer pecado
seja realizado por operação divina,
seja ele próprio pena de outro pecado precedente,
seja ele apenas culpa".

Com. a Romanos
Quaest. 43-44

Que se pode deduzir destas palavras de Hugo de São Vítor?

Deus não nega a ninguém a sua graça. Todos, algum dia, a tiveram, em quantidade suficiente para poderem salvar- se e empreender e ascensão de sua alma até Ele. Muitos, talvez todos, tiveram a graça inicial não apenas uma, mas muitas, inúmeras vezes. A nenhum ser humano Deus negou a sua graça sempre, em todo o tempo, desde o início até o fim de suas vidas. Ao contrário, diz São Paulo na Primeira Epístola a Timóteo que Deus

"quer que todos os homens se salvem
e cheguem ao conhecimento da verdade".

I Tim. 2, 4

São Paulo não poderia ter dito isto se Deus concedesse a sua graça apenas a alguns enquanto que a negasse a outros sempre e durante todo o tempo, desde o início de suas vidas até à morte, pois sem a graça o homem, por mais inteligente que ele possa ser, não passa de um animal, inteiramente embotado para as coisas do céu, e sem nada que possa fazer para se libertar desta situação. Se fosse possível que tivesse existido algum homem a quem Deus jamais tivesse concedido um mínimo de sua graça, São Paulo deveria ter dito que Deus quer que alguns homens se percam e jamais cheguem ao conhecimento da verdade, pois o homem depende inteiramente de Deus para obter a graça inicial. Nada pode fazer por si para obtê-la e sem ela já está condenado. Nestas condições, Deus teria criado este homem para a condenação. Isto, porém, não pode ser verdade se é certo que Deus quer que todos se salvem; Deus, portanto, a todos concede a sua graça pelo menos uma vez, provavelmente muitas e freqüentemente uma multidão de inúmeras vezes. Se, quando isto ocorre, os homens se fazem dóceis à inspiração e à inclinação da graça, crendo nEle e caminhando da fé para a fé, passarão a se aproximar cada vez mais de seu Reino. No início, diz São Bento, o caminho lhes

"parecerá estar repleto
de coisas ásperas e pesadas;
é apenas a graça, porém,
que estará ditando algumas coisas
necessárias para a emenda dos vícios
e a conservação da caridade.
Mas, com o progresso da fé,
dilata-se o coração
e com inenarrável doçura de amor
é percorrido o caminho dos mandamentos de Deus".

Haverá outros, porém, que com inteira liberdade desprezarão a inspiração da graça e decidirão fazer exatamente o oposto do que ela inspira ou inclina. Estes poderão ser convidados novamente em outras ocasiões para o banquete celeste; nada, porém, poderá garantir-lhes que isto voltará a acontecer. A graça poderá retirar-se definitivamente do homem e este não poderá nem quererá mais salvar-se. Os homens se entregarão aos desejos da carne, trocarão a verdade pela mentira e passarão a adorar a criatura em vez de servir ao Criador. Inteiramente privados de inteligência, a razão de suas existências, em vez de ser o próprio Criador, única fonte de felicidade, passará a ser alguma forma de entidade criada, sempre inferior em dignidade a eles próprios, sem que eles sejam capazes de apreender a extensão da loucura que isto implica. Já estão condenados, pois embora seus corpos vivam uma vida biológica, suas almas já encontraram a morte espiritual. Destes mortos vivos foi que disse Jesus, ao responder a um jovem que desejava tempo para enterrar seu pai antes de começar a segui-lo:

"Segue-me,
e deixa que os mortos
enterrem os seus próprios mortos".

Mt. 8, 22

No dia do juízo os homens que se condenarem verão que nada houve de injusto ao eles se terem visto privados da graça divina. Conhecerão todas as vezes em que esta lhes foi oferecida e como a desprezaram sistematicamente. Poderão vir a conhecer também a justiça desta disposição divina ao ser- lhes mostrado que se a graça lhes fosse oferecida outras mais vezes ainda, tantas outras a teriam desprezado. É uma tristeza imensa refletir sobre estas coisas, mas foi por causa delas que Jesus entregou a sua vida.

Se alguém portanto, ao ler estas coisas, consegue perceber-se privado da ajuda da graça para elevar seus olhos ao Céu, procure lembrar-se que não terá sido a primeira vez que terá sido visitado pela graça e que em nenhuma das ocasiões anteriores terá sido visitado por ela pelos seus méritos, mas apenas pela misericórdia divina, que quer que todos os homens se salvem. Agora, porém, poderá ser a última vez que a porta estreita se abre, e, se isto acontecer, nada mais poderá fazer para salvar-se da morte do espírito que ele próprio terá merecido. Procure lembrar-se do soldado romano que, vivendo um destes momentos, aproveitou assustado aquela pequeníssima fagulha de lucidez para perguntar a São Paulo, que estava diante de si, o que deveria fazer para salvar-se. Recebeu do Apóstolo a seguinte resposta:

"Crê no Senhor Jesus e serás salvo,
tu e a tua família".

At. 16, 31

Naquele momento, movido pela graça divina, abriu-se a sua inteligência para entender alguma coisa do extraordinário alcance destas palavras que para outros tão pouco ou mesmo nada significam. Se este soldado tiver perseverado até o fim na vida da graça que então se lhe abriu através da fé, hoje ele está entre os bem aventurados, na glória da felicidade que não tem mais fim. É para ela que Deus fêz a todos nós e é nela que, como Pai, ele desejaria que todos nós estivéssemos.