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A fé e o conhecimento de si mesmo.

Para se poder desejar e pedir alguma coisa, é necessário fazer pelo menos alguma idéia do que se deseja e se pede. Assim também, para que o homem possa melhor dispor- se a seguir a inclinação e a inspiração da graça que lhe será dada através da oração, é de não pouco auxílio que ele já saiba alguma coisa a respeito do caminho da paz para o qual estará sendo convidado. E, em relação à fé, é preciso que o homem saiba que ela não consiste apenas em não negar a verdade do que Deus ensina, mas também em ter os olhos da alma continuamente levantados para as realidades celestes de que já se possui a substância. Melhor ainda se ele puder ter alguma noção do alcance a que pode chegar a contemplação destas realidades e puder, através dela, avaliar melhor a morte espiritual a que está submetido:

"Nós habitamos na casa do ladrão",

diz Santo Antão,

"e nela estamos presos
pelas cadeias da morte",

isto é, da morte espiritual, que só com muita dificuldade o homem a ela submetido compreende a sua extensão.

Ora, dentre a inumerável multidão dos efeitos que a vivência da fé produz no homem, um dos mais notáveis é certamente o do conhecimento de si mesmo.

Poucas pessoas há que não tenham ouvido falar que as Sagradas Escrituras afirmam que o homem foi criado

"à imagem e semelhança"

de Deus (Gen. 1, 26). Só pela plena vivência do dom de sabedoria é possível compreender o alcance desta extraordinária sentença; um primeiro entendimento, todavia, nos vem através da constância no conhecimento da fé. Quando o homem, pela vivência da fé, começa a perceber por si mesmo alguma coisa do que significa a imagem e a semelhança divina no homem, dizemos então que ele principia a conhecer-se a si mesmo.

Isto ocorre porque a firmeza e a constância da fé, com o decorrer do tempo, habituam a alma do homem à contemplação daquela forma de conhecimento das coisas divinas dotada de uma pureza peculiar e bem perceptível, de que já tivemos a oportunidade de falar anteriormente. Para o homem que vive da fé, o tempo se encarrega de mostrar-lhe cada vez com maior evidência a clara diferença entre a pureza desta forma de conhecimento que vem da fé e as demais formas de conhecimento de que nos utilizamos no dia a dia.

À parte o fato de que o conhecimento da fé se nos torna cada vez mais agradável justamente pela sua pureza, começamos a nos admirar que houvesse em nossa alma uma parte dela que fosse capaz de uma tal forma de apreensão das realidades divinas. Esta é justamente a parte mais nobre da alma, aquela pela qual o homem é dito ter sido criado à imagem e à semelhança de Deus, e aquela em que vai se iniciar a verdadeira aventura espiritual e a ascensão da alma até Deus. O acesso a esta parte da alma somente tornou-se possível através da vida da fé.

Dentre todas as coisas criadas a que o homem tem acesso nesta vida, esta parte da alma cujo acesso se dá justamente através do exercício da fé é precisamente aquela que, dentre todas, mais perfeitamente reflete a natureza divina. Através dela, como através de uma imagem, podemos ter uma idéia melhor do que é a natureza divina do que através de qualquer outra forma de explicação.

Ocorre assim que, através da vida da fé, que inicialmente era uma aceitação da revelação e um conhecimento das coisas divinas conforme narradas nas Escrituras, alcançamos um conhecimento mais profundo de nossa própria natureza e daí proveio um conhecimento mais realista da natureza divina. Deus é algo que possui uma natureza semelhante àquela parte de nossa alma que é capaz da fé, mas em escala muito maior. E esta parte da alma que em nós é capaz da fé é justamente aquela que Deus mais ama em nós, e de onde Ele quer que surja o nosso maior amor para com Ele. Sem ter vivido a vida da fé, porém, jamais teríamos sabido disto.

No Antigo Testamento é o livro do Cântico dos Cânticos que nos fala mais copiosamente a respeito da sublimidade desta parte da alma e de sua afinidade para com Deus. O Cântico dos Cânticos é aparentemente apenas uma longa poesia em que se registra um diálogo entre um casal de namorados apaixonados. Mas, na realidade, sob o véu desta aparência, este livro nos quer ensinar a natureza do amor entre Deus e o homem. Logo no início do poema, a amada, que são todos aqueles que buscam a Deus, pergunta ao amado, que é Deus:

"Dize-me,
amado de minha alma,
onde é que apascentas o teu gado,
e repousas ao meio dia,
para que eu não ande vagando
entre os rebanhos dos meus companheiros?"

Cant. 1,6

Esta é a voz dos que buscam a Deus, querendo saber onde encontrá-lo. Deus então responde:

"Se tu não te conheces,
ó formosíssima entre as mulheres,
sai,
e vai seguindo as pisadas dos rebanhos,
e apascenta os teus cabritos
junto das cabanas dos pastores".

Cant. 1, 7

Deus chama de formosíssima entre as mulheres àquela parte da alma que é capaz do conhecimento da fé, e chama-a assim porque ela tem, diante de Deus, o mesmo encanto que teria a mais formosa dentre as mulheres para um homem. Deus conhece esta que é a mais formosa entre as mulheres desde o primeiro instante em que a criou, mas nós só chegamos a conhecê-la através da constância da vivência da fé. Quando Deus nos pede que o amemos acima de todas as coisas, Ele quer de modo especial ser amado em nós por esta que é para Ele como se fosse a mais formosa dentre todas as mulheres. Nós, porém, somente poderemos fazer isto depois que a conhecermos, e somente a conheceremos através da constância da vivência da fé. Quando Deus deu, portanto, esta resposta àqueles que o buscavam, disse o mesmo que se tivesse respondido: "Se tivesses vivido da fé, te conhecerias, e não farias tais perguntas. Se ainda, porém, não consegues viver da fé, inútil será explicar-te; vai, enquanto isso, seguindo as pisadas dos rebanhos e apascenta os teus cabritos junto das cabanas dos pastores".

Em suas cartas, Santo Antão chama esta que o Cântico dos Cânticos afirma ser a mais formosa entre as mulheres de "essência imortal da alma" e diz que foi por ela que Deus veio redimir as suas criaturas:

"É muito importante",

diz Santo Antão,

"que vos interrogueis acerca da natureza espiritual,
na qual não há mais nem homem nem mulher,
mas apenas uma essência imortal
que tem um começo e jamais terá fim.
Será uma obrigação para vós conhecê-la,
e como decaíu totalmente a este ponto
de tamanha humilhação e imensa confusão,
num trânsito que não poupou a nenhum de vós.
Sendo imortal por essência,
foi por causa dela que Deus,
vendo-a infeccionada por uma praga irremediável
e que aumentava prodigiosamente,
decidiu em sua clemência visitar suas criaturas".

"Foi por causa dela que Deus decidiu em sua clemência visitar suas criaturas", fazendo-se homem na pessoa de Cristo. Esta afirmação dá a medida do amor que Deus tem por esta que as Escrituras chamam de a mais formosa entre as mulheres. Esta afirmação é idêntica a outras encontradas no Cântico dos Cânticos, a respeito da amada de Deus, que nos querem transmitir o quanto Deus nos ama quando lhe retribuímos o seu amor através desta que Santo Antão chama de a essência imortal da alma:

"Tu feriste meu coração,
irmã minha esposa",

diz o Cântico dos Cânticos,

"tu feriste o meu coração com um só
de teus olhares,
e com um cabelo de teu pescoço.
Que deliciosas são as tuas carícias,
irmã minha esposa!
As tuas carícias são mais suaves
do que o vinho,
e o odor de teus bálsamos
excede o de todos os aromas".

Cant. 4, 9-10

Nas cartas de Santo Antão encontramos várias afirmações segundo as quais não é possível amar profundamente a Deus se não conhecemos esta parte de nossa alma a que Deus tanto ama. Como somente se tem acesso a esta parte de nossa alma através da vivência da fé, deduz-se indiretamente destas passagens dos escritos de Santo Antão que também ele quis ensinar que sem uma vivência mais plena da fé é impossível crescer no mandamento do amor. Encontramos, por exemplo, em uma de suas cartas, passagens como esta:

"O homem dotado de razão
que se prepara para a libertação
que lhe trará a vinda de Jesus
deve conhecer o que ele é
segundo a sua natureza espiritual.
É a pessoas capazes de me compreender
que eu escrevo,
a pessoas em condições
de se conhecerem a si mesmas.
Quem se conhece,
conhece a Deus,
e quem conhece a Deus
tem a obrigação de adorar a Deus
como convém".

Já vimos como nas epístolas de São Paulo encontra-se escrito que esta parte mais nobre da alma se fortalece através da vivência da fé:

"Examinai-vos a vós mesmos",

diz São Paulo no fim da Segunda Epístola aos Coríntios,

vêde "se estais firmes na fé;
provai-vos a vós mesmos".

II Cor. 13, 5

Pouco antes ele mesmo havia dito:

"Embora em nós o homem exterior
vá caminhando para a ruína,
o homem interior se renova dia a dia",

II Cor. 4, 16

e, em seguida, ele explica por que:

"porque não olhamos
para as coisas que se vêem,
mas para as coisas que não se vêem",

II Cor. 4, 18

uma claríssima alusão à virtude da fé, a qual, segundo a Epístola aos Hebreus, é a demonstração das coisas que não se vêem. Isto é, é através do exercício da fé, pelo qual levantamos a atenção de nossa alma da consideração das coisas passageiras para as eternas, embora com o passar dos anos o homem exterior envelheça e se aproxime da morte, o homem interior, ao contrário, se renova continuamente, dia após dia. E aqui acrescenta Hugo de São Vítor, na Questão 158 do seu Comentário à Epístola aos Romanos:

O Apóstolo chama de "homem exterior
àquilo que temos em comum com os animais;

e de homem interior
àquilo que temos em comum com os anjos",

isto é, à mais bela entre todas as mulheres. Para aqueles que vivem assim, resta apenas concluir com Santo Antão:

"Grande é a vossa felicidade
por terdes tomado consciência de vossa miséria
e por terdes fortalecido em vós
esta invisível essência
que não passa com o corpo".