19.

O Estudo das Sagradas Escrituras.

O primeiro caminho para se alcançar a fé é o próprio estudo das Sagradas Escrituras, pois elas estão repletas de exemplos do que seja a fé, uma virtude profunda e que se manifesta de muitas formas diversas. É através do estudo e da meditação destes exemplos que aprendemos aos poucos qual seja a natureza e o alcance da fé. E, mesmo quando a Escritura não nos fala diretamente da própria fé, nos fala de Deus e das coisas celestes, que são o objeto da fé. A fé, portanto, permeia inteiramente as Escrituras.

Sob este ponto de vista é importante não apenas o estudo do Novo, como também do Velho Testamento. A Epístola aos Hebreus nos diz bem claramente que todos os personagens do Antigo Testamento que se salvaram o fizeram pela fé, e cita os exemplos nominais de Abel, Enoc, Noé, Abraão, Sara, Isaac, Jacó, José, Moisés, os israelitas sob o comando de Josué que cercaram Jericó, Raab, Gedeão, Baruc, Sansão, Jefté, Davi, Samuel, apenas para mencionar os mais conhecidos. E, depois de citar ainda outros, dizendo que o que eles fizeram o fizeram pela fé (Heb. 11, 33), conclui:

"Que devo mais dizer?
Não haveria tempo para falar
com pormenores de todos.
Portanto, também nós,
com tal nuvem de testemunhos
ao nosso redor,
rejeitando todo fardo
e o pecado que nos envolve,
corramos com perseverança
para o certame que nos é proposto".

Heb. 11, 32; 12, 1

Não será preciso explicar como o Novo Testamento se refere constantemente à fé; dificilmente se encontra nele uma página em que esta virtude não aparece mencionada diversas vezes. O que é um pouco mais difícil de se perceber é que ocorre quase a mesma coisa também no Antigo Testamento, embora ali a fé não costume se apresentar com este nome.

Vejamos alguns casos, a título de exemplo e de motivação para o estudo do Antigo Testamento.

O Livro de Josué.

Um exame superficial diria que o livro de Josué é essencialmente uma narrativa de uma série de batalhas empreendidas pela conquista da Palestina. De fato, o enredo histórico deste livro é este, mas ele é apenas a superfície da obra. Tal como o livro de Josué, a vida de todo homem sobre a terra também é uma série de batalhas empreendidas por alguma finalidade, mas em muitas destas vidas há uma essência que está muito além da narrativa histórica destas lutas. Sem dúvida alguma, Josué foi uma destas vidas.

Principal personagem do livro que leva o seu nome, Josué foi o sucessor de Moisés no comando do povo judeu. Seu livro narra como o povo escolhido, após 40 anos de estadia no deserto, atravessou o rio Jordão e, em uma série de campanhas militares, nas quais freqüentemente entravam em condições de inferioridade, venceram e dominaram os povos que habitavam a terra prometida. Muito faltava ainda para que se completasse a conquista desta região quando Josué veio a falecer.

A morte do valoroso comandante deixava para os que ficavam muitos problemas pendentes; além das conquistas a fazer, as terras já conquistadas teriam que ser defendidas contra os inimigos e seria de se esperar que Josué, antes de morrer, deixasse orientações precisas sobre a necessidade de se formar um exército regular, como mantê-lo bem treinado, fortemente armado e ocupando todas as posições estratégicas. Josué, porém, não fêz nada disso; o grande estrategista, vencedor de inúmeras batalhas impossíveis, em suas últimas palavras mostrou pouca ou mesmo nenhuma preocupação a respeito de questões militares. Em vez disso, deixou aos israelitas conselhos bastante diversos como sendo o seu testamento:

"Eu estou velho",

disse Josué em seu leito de morte,

"de idade muito avançada,
e hoje entro no caminho de toda a terra.
Vós vedes o que o Senhor vosso Deus
fêz a todas as nações circunvizinhas,
e como Ele mesmo combateu por vós.
Posto que restam ainda muitas nações a vencer,
o Senhor vosso Deus as exterminará
e as retirará de vossa vista,
e vós possuireis este país,
como Ele vos prometeu.
Somente será preciso que sejais fortes e solícitos
em observar todas as coisas que estão escritas
no livro da Lei de Moisés,
e que permaneçais unidos ao Senhor vosso Deus,
como tendes feito até este dia.
Então o Senhor vosso Deus exterminará
à vossa vista nações grandes e fortíssimas,
e ninguém vos poderá resistir.
Um só de vós porá em fuga mil homens dos inimigos,
porque o Senhor vosso Deus combaterá por vós,
como prometeu.
Somente tende grandíssimo cuidado
em amar o Senhor vosso Deus,
em cumprir o mandamento
e a Lei que Moisés, servo do Senhor,
vos prescreveu,
isto é, que ameis o Senhor vosso Deus,
que andeis em todos os seus caminhos,
observeis os seus mandamentos,
estejais unidos a Ele
e o sirvais de todo o vosso coração
e toda a vossa alma".

Jos. 23, 3-14; 22, 5

Eis a alma de Josué, um exemplo de fé, através do qual as Escrituras nos querem ensinar a nós, homens de hoje. Em suas últimas palavras, depois de nos ter ensinado pelo testemunho de sua vida, Josué nos propõe o mesmo ensinamento que Jesus nos deu no Sermão da Montanha:

"Olhai as aves do Céu",

diz Jesus,

"que não semeiam nem ceifam,
nem fazem provisões nos celeiros,
e contudo vosso pai celeste as sustenta.
Porventura não valeis vós
muito mais do que elas?
Considerai como crescem
os lírios do campo;
não trabalham nem fiam,
e no entanto nem Salomão,
em toda a sua glória,
se vestiu como um deles.
Se, pois, Deus veste assim
uma erva do campo,
que hoje existe,
e amanhã é lançada no forno,
quanto mais a vós,
homens de pouca fé!
Buscai, pois, em primeiro lugar
o Reino de Deus e a sua justiça,
e todas as demais coisas
vos serão acrescentadas".

Mt. 6, 26-33

Vemos, pois, que a mensagem do livro de Josué é a mesma que a do Sermão da Montanha, e que estão muito longe da verdade aqueles que imaginam que, enquanto o Antigo Testamento nos fala de guerras, o Novo nos fala da vida do espírito.

O Segundo Livro das Crônicas.

O Segundo Livro das Crônicas narra a história de Salomão e dos dezenove reis que o sucederam no trono de Judá. Aparentemente trata-se de uma outra interminável sucessão de guerras. Mas sob a superfície deste enredo a obra utiliza-se precisamente destes fatos como de um instrumento para nos transmitir verdades e ensinamentos mais profundos.

Já mencionamos no início deste livro que Salomão foi figura de Cristo, e que certos fatos narrados pelas Escrituras a seu respeito são na realidade profecias sobre Cristo. Dele Deus havia prometido a Davi:

"Nascer-te-á um filho,
que será um homem de paz;
edificará uma casa ao meu nome,
ele será meu filho,
e eu serei seu pai,
e firmarei o trono de seu reino
sobre Israel para sempre".

I Cron. 22, 10

Ora, logo no início de seu reinado, subindo ao trono de seu pai Davi ainda muito jovem, Salomão dirigiu-se a Deus pedindo-lhe

"sabedoria e entendimento,
para saber conduzir-se bem
diante do povo".

II Cron. 1, 10

Estes são os principais dons do Espírito Santo, e a Escritura, comentando este pedido de Salomão, afirma que

"agradou ao Senhor esta oração,
por ter Salomão pedido tal coisa".

I Reis 3, 10

Tal como fêz Salomão, consta que Jesus exortava aos seus discípulos que, quando orassem, pedissem a Deus a graça do Espírito Santo:

"Se vós, sendo maus",

diz Jesus,

"sabeis dar coisas boas
aos vossos filhos,
quanto mais o vosso Pai
que está nos céus
dará o Espírito Santo
aos que lho pedirem?"

Lc. 11, 13

A oração que o próprio Deus insiste em pedir que lhe façam não pode deixar de ser atendida. Deus, de fato, não tardou em responder à oração de Salomão:

"Visto que foi esta
a petição que me fizeste",

disse o Senhor a Salomão,

"visto que não pediste para ti
nem longa vida,
nem riquezas,
nem a morte de teus inimigos,
mas pediste a Sabedoria,
dou-te um coração tão cheio
de sabedoria e de entendimento
que ninguém antes de ti foi semelhante,
nem se levantará outro depois de ti".

I Reis 3, 10

À semelhança de Salomão, o Novo Testamento também afirma de Cristo Jesus que nele

"estão escondidos todos os tesouros
da sabedoria e da ciência".

Col. 2, 3

"Ele (também) edificará uma casa ao meu nome", prometeu o Senhor a Davi. A profecia cumpriu-se; Salomão edificou o templo de Jerusalém, Jesus edificou a sua Igreja. Em uma carta que escreveu ao rei de Tiro, reproduzida no Segundo Livro das Crônicas, Salomão explicou seus objetivos ao empreender a construção do templo:

"A casa que pretendo edificar
deve ser grande",

diz Salomão,

"visto que o nosso Deus é grande
sobre todos os deuses.
Quem poderá ser capaz
de lhe edificar uma casa digna dele,
se o céu e os céus dos céus
não o podem conter?
Faço-o, porém,
somente para que nele
se queime incenso na sua presença".

II Cron. 2, 5-6

Ora, o incenso é uma figura da caridade, aquele fogo que Jesus diz ter vindo espalhar sobre a terra (Lc. 12, 49), e estar na presença de Deus é uma virtude muito próxima da fé. De fato, diz a Escritura, quando Abraão chegou à idade de noventa e nove anos o Senhor apareceu-lhe e lhe disse:

"Eu sou o Deus onipotente,
anda na minha presença
e sê perfeito".

Gen. 17, 1

Concedia Deus com estas palavras a Abraão a graça de viver na sua presença, uma graça também concedida ao profeta Elias, segundo ele próprio o declara: "Viva o Senhor, em cuja presença eu estou" (I Reis 17,1; 18,15). Da presença de Deus também o salmista se admira:

"Senhor,
tu me sondas, me conheces,
tu me conheces
quando me sento
e quando me levanto.

De longe penetras os meus pensamentos,
vês claramente quando ando
e quando repouso,
observas todos os meus caminhos.

Para onde irei
a fim de ficar longe de teu espírito?

E para onde fugirei
de tua presença?

Se subo aos céus, tu lá estás;
se me prostrar nos infernos,
neles te encontras presente.

Se eu disser:
`Ao menos as trevas me encobrirão,
e, em vez de luz,
me envolverá a noite',

as mesmas trevas
não são escuras para ti,
e a densa escuridão
é para ti como a luz.

É demasiado admirável para mim
esta ciência,
é sublime,
não posso atingí-la".

Salmo 139

Quando Salomão, pois, declara ter construído o Templo de Jerusalém para que ali se queimasse incenso na presença do Senhor, estava na realidade descrevendo a fé animada pela caridade de que fala São Paulo na Epístola aos Gálatas, aquela virtude que torna os homens justos e faz deles templos do Espírito Santo, motivo pelo qual Jesus também edificou a sua Igreja:

"Aproximai-vos de Cristo",

diz São Pedro,

"pedra viva,
eleita e estimada por Deus,
também vós,
como pedras vivas.

Vinde formar um templo espiritual
para um sacerdócio santo,
a fim de oferecer sacrifícios espirituais,
agradáveis a Deus por Jesus Cristo.

Sois uma estirpe eleita,
sacerdócio real,
gente santa,
povo trazido à salvação,
para tornardes conhecidos
os prodígios dAquele
que vos chamou das trevas
para a luz admirável".

I Pe. 2, 4-5

O Livro de Tobias.

No livro de Tobias encontra-se uma grande lição do que seja a verdadeira fé. Tobias foi um homem muito justo, da tribo de Neftali, levado cativo para a Assíria juntamente com o seu povo:

"Não obstante encontrar-se no cativeiro",

diz de Tobias o livro que leva o seu nome,

"não abandonou o caminho da verdade,
distribuindo todos os dias
daquilo que podia dispor
pelos seus irmãos de raça
que estavam cativos com ele".

Tob. 1, 2-3

Mas Tobias não se limitava apenas a praticar a caridade para com o próximo; ele também não temia arriscar continuamente a sua própria vida para isto. Senaquerib, o rei dos Assírios, tinha rancor contra os filhos de Israel e não os podia ver. Mandou matar muitos israelitas, que Tobias, em segredo, para não ser ele próprio morto, depois os sepultava. Tobias

"alimentava os famintos,
vestia os nús
e dava com solicitude sepultura
aos que tinham falecido
e aos que tinham sido mortos",

diz o seu livro (Tob. 1, 19-20). Quando o rei finalmente

"teve conhecimento disto,
mandou que o matassem
e confiscou todos os seus bens".

Tob. 1, 22

Tobias teve às pressas que despojar-se de tudo e fugir com o seu filho e sua mulher para não ser morto.

Passado, porém, o maior perigo, Tobias retornou para sua casa e continuou procedendo como sempre havia feito. Depois disto, num dia de festa, tendo preparado um grande banquete em sua casa para muitas pessoas, alguém entrou em sua casa e avisou-o que um dos filhos de Israel jazia degolado na rua:

"Tobias então,
levantando-se da mesa,
sem nada haver comido,
foi junto do cadáver,
tomou-o e levou-o secretamente
para sua casa a fim de que,
depois do sol posto,
pudesse sepultá-lo com cautela".

Tob. 2, 3-4

Depois de ter escondido o cadáver na mesma casa onde estava se celebrando a festa que ele próprio havia organizado, pôs- se Tobias a

"comer com pranto e tremor,
recordando-se das palavras do profeta Amós:

`Os vossos dias de festa
converter-se-ão em lamentações e pranto'".

Tob. 2, 5-6

Depois do sol posto, saíu novamente da festa e sepultou o morto.

Não se pense, porém, que a conduta de Tobias fosse elogiado por seus conterrâneos. Ao contrário, ele era visto como uma espécie de louco e merecedor de censura:

"Já por este motivo
te mandaram matar",

diziam-lhe os vizinhos;

"mal escapaste da sentença de morte,
logo recomeças e sepultar os mortos?"

Tob. 2, 8

Porém Tobias, diz a Escritura,

"temendo mais a Deus do que ao rei,
continuava levando os corpos
dos que tinham sido mortos,
escondia-os em sua casa
e sepultava-os pelo meio da noite".

Tob. 2, 9

Havia dias em que,

"cansado de enterrar os mortos,
quando chegava à sua casa,
deitava-se junto de qualquer parede
e adormecia".

Tob. 2, 10

A divina providência também parecia não se importar com o que ele fazia; em vez de premiá-lo, aconteciam-lhe mais desgraças. Um dia em que voltou para casa tarde da noite, exausto de enterrar os mortos, caíu-lhe de um ninho de andorinhas um pouco de esterco quente sobre os olhos e ficou cego:

"O Senhor permitiu
que lhe acontecesse esta prova",

diz a Escritura,

"para que a sua paciência
servisse de exemplo aos vindouros,
como a do santo Jó.
Como havia sempre temido a Deus,
desde a sua infância,
e guardado os seus mandamentos,
não se entristeceu contra Deus,
por lhe ter acontecido
a desgraça da cegueira".

Tob. 2, 12-13

Tobias não se entristeceu por ter ficado cego. Ao contrário, continua a Escritura,

"permaneceu firme no temor do Senhor,
dando-lhe graças todos os dias de sua vida".

Tob. 2, 14

Mas os vizinhos e até os seus familiares não entenderam a atitude de Tobias, e passaram a aproveitar-se da desgraça da cegueira para insultá-lo mais violentamente:

"Onde está a tua esperança",

diziam-lhe os vizinhos,

"pela qual davas esmolas
e sepultavas os mortos?"

Tob. 2, 16

Sua mulher também certa vez lhe respondeu com ira:

"Bem claro está
que as tuas esperanças são vãs!
Agora mostram o que valem
as tuas esmolas".

Tob. 2, 22

Com estas e outras palavras semelhantes, diz a Escritura,

"a mulher de Tobias
o insultava".

Tob. 2, 23

Ora, a experiência mostra que uma pessoa que vive como Tobias viveu, expondo-se cotidianamente a grave risco de vida, praticando continuamente ações perigosas em momentos que nem ele nem a sua família tem liberdade de escolher, que além de profundamente desagradáveis, só podem ser executadas sob a preocupação constante de não ser visto ou descoberto sob pena da própria vida, sem apoio de ninguém ou de nenhuma organização, ao contrário, procurado e perseguido pelas autoridades, insultado por amigos e familiares, e a tudo isto se seguindo a desgraça em vez da fortuna, este homem é, com certeza, uma pessoa que em poucos anos se tornará um traumatizado, um neurótico, alguém que necessitará de tratamento psicológico ou de acompanhamento psiquiátrico. Se lermos o seu livro com atenção, é isto o que deveríamos esperar de um Tobias. Mas a descrição que a Sagrada Escritura faz da evolução de sua vida é completamente diferente. De Tobias ela nos dá este impressionantíssimo testemunho:

"À medida em que progredia
no temor de Deus,
aumentava a sua paz".

Tob. 14, 4

Ora, isto é conseqüência precisamente da vida da fé. Não fosse Tobias um justo que vivia da fé, teria sido destruído pela sua própria história. Ao contrário, diz a Escritura, como se nada estivesse acontecendo, durante os anos que durou a sua cegueira e por todos era insultado, com muitos conselhos exortava o seu filho a não fazer caso dos que o desprezavam:

"Ouve, meu filho",

dizia o pai Tobias,

"estas palavras de minha boca,
e põe-nas no teu coração.

Tem a Deus em teu espírito
todos os dias de tua vida,
guarda-te jamais de consentir no pecado.

Dá esmola de teus bens,
e não voltes a tua cara a nenhum pobre.

Da maneira que puderes,
sê misericordioso.

Se tiveres muito, dá muito;
se tiveres pouco,
procura dar de boa vontade
também este pouco.

A todo homem que tiver feito algum trabalho,
paga-lhe logo o salário,
e nunca fique, um só instante,
em teu poder a paga do trabalhador.

Nunca permitas que a soberba domine
os teus pensamentos ou tuas palavras;
pede sempre conselho ao sábio
e bendiz a Deus em todo o tempo".

Tob. 4, 6-20

Não há trauma que possa arrasar um homem como este. Quando o insultavam, respondia singelamente que

"esperava aquela vida que Deus há de dar
aos que nunca deixam de confiar nEle".

Tob. 2, 18

Depois de alguns anos, diz a Escritura, Tobias recuperou a vista e

"passou todo o restante
de sua vida na alegria"

Tob. 14, 4

Para nós deixou o exemplo do que significa viver da fé.

O Livro de Judite.

No livro de Judite temos o exemplo de uma fé que não apenas se nos mostra com as qualidades da firmeza e constância, mas que, além disto, amadureceu pela experiência de sua própria vivência.

O livro nos conta uma história ocorrida pouco depois do retorno do povo judeu do exílio da Babilônia. Sabemos disso porque, durante a narrativa, um dos personagens, Aquior, diz a respeito dos judeus que

"há poucos anos,
este povo foi levado cativo
para uma terra estranha
e há pouco tempo tornou-se a juntar
dos lugares para onde tinha sido disperso,
retomando a posse de suas montanhas,
assim como de Jerusalém,
onde tem o seu santuário".

Jd. 5, 22-23

Percebe-se, no livro de Judite, a intenção de narrar uma história cujos fatos são reais. Grande parte dos nomes das pessoas e dos lugares, porém, são fictícios; alguns são tão claramente impossíveis que o autor parece tê-los incluído propositalmente apenas para deixar claro que, por algum motivo que nos é desconhecido, quis ocultar os nomes verdadeiros.

A história de Judite se inicia quando Nabucodonosor, apresentado como rei dos assírios reinando em Nínive, após vencer uma guerra contra os medos, ensoberbeceu- se em seu coração e enviou o general Holofernes para que

"exterminasse todos os deuses da terra,
a fim de que só ele fosse chamado deus
pelas nações que fossem subjugadas
pelo poder de Holofernes".

Jd. 3, 13

Na época em que ocorreram os fatos narrados no livro de Judite, porém, Nabucodonosor, monarca nomeado em outros livros das Sagradas Escrituras, já havia morrido há muito tempo; ele também não havia sido rei dos assírios, mas dos babilônios, e a cidade de Nínive, uma das maiores do mundo antigo, jazia em ruínas há pelo menos mais de um século. Não foi, porém, por engano que o autor deste livro nos apresentou este personagem impossível, porque qualquer judeu de sua época que tivesse lido o livro, assim como qualquer pessoa de hoje que tenha familiaridade com as Sagradas Escrituras, perceberia de imediato a impossibilidade deste personagem tão claramente como hoje qualquer brasileiro perceberia que Napoleão não poderia ser um presidente do Brasil no século XX. Nabucodonosor, o suposto rei dos assírios apresentado pelo livro de Judite, portanto, deve ser algum poderoso rei persa que o autor, por algum motivo a nós desconhecido, não quis identificar.

Os reis persas eram, nesta época, soberanos muito poderosos. Além de dominarem todo o Oriente, foram o primeiro povo da história que conseguiram derrotar e conquistar a civilização egípcia, que já tinha, nesta época, três mil anos de existência, era uma das principais potências do mundo antigo e estava situada em território relativamente afastado e protegido das demais grandes potências da época. Quando, portanto, o rei persa que o livro de Judite nos apresenta como sendo Nabucodonosor enviou o general Holofernes para que subjugasse todas as nações para que "só ele fosse chamado de deus", não é motivo de espanto o terror que se apossou de todos os povos:

"Foi tão grande o medo que se apoderou
dos habitantes das cidades",

diz o livro de Judite,

"que as pessoas mais distantes,
à chegada de Holofernes,
saíam-lhe ao encontro
juntamente com os povos,
recebendo-o com coroas e com archotes,
dançando ao som dos tambores e das flautas.
Todavia, nem mesmo fazendo isto
puderam abrandar a ferocidade daquele coração,
porque este lhes destruía não apenas as suas cidades,
como também os seus bosques sagrados",

isto é, os seus lugares de culto (Jd. 3, 9-12). Tal foi a reação de todos os povos diante das tropas do rei persa. Qualquer tentativa de defesa era manifestamente impossível; só lhes restava ajoelharem-se diante do inimigo, beijarem-lhe os pés e esperarem que não destruísse mais do que aquilo a que já se havia proposto. Nenhum dos povos por onde passou o general Holofernes reagiu de maneira diversa, tal era a evidência da superioridade do poder militar dos persas.

Só a reação dos judeus foi diferente. Eles temiam, diz o livro de Judite, que Holofernes fizesse à

"cidade de Jerusalém
e ao templo do Senhor
o que havia feito às outras cidades
e aos seus templos".

Jd. 4, 2

Tamanha era a convicção do povo judeu que o Deus de Israel era o Deus verdadeiro que decidiram prepararem-se para uma guerra impossível. Ao contrário de todas as nações, os judeus

"ocuparam então os cumes dos montes,
cercaram as suas aldeias de muros
e fizeram provisões de trigo,
preparando-se para a guerra".

Jd. 4, 3-4

O sumo sacerdote Eliaquim não era de opinião diversa. Ele percorria as cidades de Israel exortando o povo à fé. Recordava-lhes como exemplo a fé que havia animado Moisés, dizendo-lhes:

"Sabei que o Senhor ouvirá as vossas súplicas,
se permanecerdes constantes nos jejuns
e nas orações diante do Senhor.
Lembrai-vos de Moisés,
servo do Senhor, o qual,
não combatendo com ferro,
mas suplicando com santas orações,
destroçou Amalec,
que confiava na sua força, no seu poder, no seu exército,
nos seus escudos, nos seus carros e cavaleiros.

Assim sucederá a todos os inimigos de Israel,
se vós permanecerdes
nesta obra que começastes".

Jd. 4, 12-14

Se esta atitude ainda é capaz de causar espanto para nós, homens de hoje, tão distantes no tempo da realidade daqueles acontecimentos, quanto mais não o terá sido para o próprio general Holofernes, ao ouvir que um povo militarmente insignificante se preparava para resistir ao seu exército. Ele admirou-se, dizem as Escrituras, e em seguida

"encheu-se de furor,
e inflamou-se com grande cólera".

Jd. 5, 2

Não podia acreditar que um povo tão pequeno tivesse a ousadia de pretender guerrear contra o seu exército.

"No dia seguinte",

continua a Escritura,

"mandou suas tropas
marcharem contra Betúlia",

Jd. 7, 1

uma cidade cujo nome provavelmente também é fictício, mas que ocupava uma posição estratégica no caminho para Jerusalém.

Bastou, porém, que as tropas de Holofernes se aproximassem de Betúlia,

"cento e vinte mil combatentes a pé,
vinte e dois mil cavaleiros,
sem contar os homens aptos para a guerra
e toda a juventude que tinha levado,
à força, das províncias e das cidades",

Jd. 7, 2

e a cercassem durante 20 dias para que ficasse claro que a fé dos habitantes daquela cidade era do mesmo gênero daquela que animava São Pedro antes do dia de Pentecostes. "Caminhando sobre as águas do mar ao encontro de Jesus", diz o Evangelho de Mateus, "e percebendo a força do vento, Pedro teve medo e começou a afundar. Jesus então o repreendeu:

`Homem de pouca fé,
por que duvidaste?'

Mt. 14, 31

Esta fé, diz também Jesus,

"é como uma semente
plantada em lugar pedregoso,
onde não há muita terra.
Logo nasce,
porque não tem profundidade de terra;
mas, saindo o Sol,
queima-se,
e porque não tem raíz,
seca.
Estes são aqueles
que ouvem a palavra
e logo a recebem com gosto;
mas eles não tem raízes.
Crêem durante algum tempo,
mas no momento da provação voltam atrás".

Mt. 13, 5-6; 13, 20;
Lucas 8, 13

Assim se mostrou ser a fé dos betulienses. Eles creram em Deus, mas as raízes desta fé não foram suficientemente profundas. Vinte dias depois de iniciado o cerco de Betúlia pelas tropas de Holofernes, "que havia decidido vencê-los sem combate" (Jd. 7, 9),

"esgotaram-se as cisternas
e os depósitos de água
para todos os moradores de Betúlia,
de maneira que não havia mais,
dentro da cidade,
com que matar a sede".

Jd. 7, 11

Vinte dias antes Eliaquim lhes havia recordado que nenhuma força humana é capaz de vencer aqueles que crêem no Senhor. "Deus combaterá por vós", havia-lhes dito muito tempo antes Josué, e "um só de vós porá em fuga mil homens dos inimigos", se

"tiverdes um grandíssimo cuidado
em amar o Senhor vosso Deus,
em andar em todos os seus caminhos,
observar os seus mandamentos,
estar unidos a Ele,
e o servir de todo o coração
e de toda a vossa alma".

Jos. 23, 11; 22, 5

Mas agora, diante do espectro da sede, ninguém via mais como isto seria possível e nem acreditava mais nestas palavras. Ao contrário, chamaram Ozias, o governador da cidade, e lhe disseram:

"Deus seja o juiz entre nós e ti,
porque tu nos trouxeste estes males,
não querendo tratar a paz com os assírios.
Agora, pois, manda ajuntar
a todos os que há na cidade,
para que todos nos rendamos voluntariamente
ao exército de Holofernes".

Jd. 7, 13-15

Ozias, o governador da cidade, também não estava mais certo se naquela situação ainda se poderia confiar em Deus. Quando o povo, já "cansado de clamores e de prantos" (Jd. 7, 22), ficou alguns momentos em silêncio, Ozias aproveitou para propor-lhes uma experiência:

"Tende bom ânimo, irmãos,
e por estes cinco dias
esperemos a misericórdia do Senhor.
Talvez se aplaque a sua ira
e dê glória ao seu nome.
Mas se, passados estes cinco dias,
não nos vier socorro,
faremos o que vós dissestes".

Jd. 7, 23-25

É visível, nestas passagens, que o livro de Judite quer tratar, mais do que sobre a questão da natureza da fé, sobre a questão da experiência da vida da fé, claramente evidenciada nas atitudes dos betulienses. A fé dois betulienses era aquela fé sem raízes de que Jesus fala na parábola do semeador, que como uma semente plantada em lugares pedregosos, sobrevindo o calor causticante da provação, queima e seca, porque não tem raízes. O livro de Judite quer nos mostrar o contraste entre esta fé sem raízes, uma fé que se desenvolveu muito rapidamente ou tão desatentamente que não teve tempo ou atenção para fazer a experiência de si mesmo, e a fé de Judite, que por ter provavelmente já longamente vivido da fé, não apenas cria que Deus auxilia aqueles que o buscam, mas também havia experimentado de que modo Deus faz isto. Não era o modo como os betulienses esperavam que fosse.

A Escritura nos ensina que a providência divina ampara de um modo especial aqueles que vivem da fé. Diz, de fato, o livro de Provérbios:

"Tem confiança no Senhor
de todo o teu coração,
e não te estribes
na tua prudência.

Pensa nEle
em todos os teus caminhos,
e Ele mesmo
dirigirá os teus passos".

Pr. 3, 5-6

E também acrescenta o Eclesiástico:

"Confia em Deus
e ele te protegerá;
ai, porém,
dos fracos de coração,
que não confiam em Deus,
e que por isso não serão
protegidos por Ele".

Ecles. 2, 6; 2, 15

Santo Tomás de Aquino, como se estivesse comentando estas passagens, nos mostra nas Quaestiones Disputatae de Veritate que os homens bons estão inseridos dentro de uma ordem da providência divina que difere essencialmente do modo como se ordenam todos os demais entes:

"Tanto mais nobremente algo é colocado
sob a ordem da providência",

diz Tomás de Aquino,

"quanto mais próximo estiver
do primeiro princípio, que é Deus.
Entre todas as criaturas,
são as substâncias espirituais
as que mais se aproximam do primeiro princípio,
de onde que são ditas terem sido assinaladas
pela sua imagem,
e por isto obtiveram da divina providência
que não apenas sejam provistas,
mas também que provejam,
sendo esta a causa pela qual
as substâncias espirituais podem eleger os seus atos,
e não as demais criaturas,
que são somente provistas,
sem que possam prover.
Mas as criaturas às quais
a possibilidade de proverem foi comunicada
não são fins de suas providências,
mas se ordenam elas próprias a outros fins,
a saber, a Deus,
de onde que são ordenadas por Deus
na medida em que tomam da retidão divina
a retidão de sua providência.

A divina providência, portanto,
se estende aos homens de dois modos.

De um primeiro modo,
na medida em que eles próprios
são provistos por Deus.

De um segundo modo,
na medida em que eles próprios
se fazem providentes de seus atos.

Falhando, pois, ao proverem,
ou observando a retidão ao fazê-lo,
os homens são ditos bons ou maus.
Pelo fato de que são provistos por Deus,
a eles são oferecidos bens ou males;
e na medida em que eles de modo diverso
se acham no provirem,
de modos diversos também
são provistos por Deus.

Se observam a reta ordem ao proverem,
neles a divina providência observa uma reta ordem
condizente com a dignidade humana,
a saber, que nada a eles aconteça
que não se converta em bem para eles
e que tudo o que a eles provenha os promova ao bem,
segundo está escrito na Epístola aos Romanos:

`Todas as coisas cooperam para o bem
daqueles que amam a Deus'.

Rom. 8, 28

Se, porém, ao proverem,
não observam a ordem que é condizente
com a criatura racional,
mas proveem segundo o modo dos animais brutos,
a divina providência os ordenará
segundo a ordem que compete aos animais brutos,
isto é, de tal maneira que as coisas
que neles são boas ou más
não se ordenem para o bem deles próprios,
mas para o bem dos outros,
segundo o que diz o Salmo 48:

`O homem,
estando em honra,
não compreendeu;
foi comparado aos jumentos ignorantes,
e tornou-se semelhante a eles'.

De tudo isto é evidente
que a providência divina governa os bons
de um modo mais alto do que os maus:
os maus, de fato,
na medida em que se retiram
de uma determinada ordem da providência,
não fazendo a vontade de Deus,
caem sob uma outra ordem,
isto é, sendo feito deles as divina vontade;
mas os bons quanto a ambas estas coisas
estão sob a reta ordem da providência".

Quaest. Disputatae de Veritate
Quaestio 5, a.5, a.7

Estas palavras de Santo Tomás de Aquino, e muitas outras de que estão repletas os textos dos santos, via de regra provêm de pessoas que têm a experiência do que dizem. São testemunhos de homens que experimentaram, em grau maior ou menor, por terem vivido por longo tempo a vida da fé, de que modo devem ser entendidas as palavras de Jesus quando nos exortava a buscar em primeiro lugar o Reino de Deus, prometendo-nos que tudo o resto nos seria acrescentado (Mt. 6, 33). A experiência mostra que, ao contrário do que parece sugerir à primeira vista tal promessa, a provação não tarda a se aproximar dos que crêem, conforme nos ensina o Eclesiástico:

"Meu filho",

diz o Eclesiástico,

"quando entrares no serviço de Deus,
persevera firme na justiça e no temor,
e prepara a tua alma para a provação.

Humilha o teu coração e tem paciência,
inclina o teu ouvido
e recebe as palavras de sabedoria,
e não te apresses no tempo da prova,

porque no fogo se prova
o ouro e a prata,
e os homens amados por Deus
são provados no cadinho da humilhação".

Ecles. 2, 1-2, 5

Ocorre, porém, que mais tarde, se é verdade que o homem busca em primeiro lugar o reino de Deus, começa a ficar sempre mais claro que as provações parecem vir propositalmente para poderem ser vencidas através da virtude da fé e para que, vencendo-as justamente deste modo, o homem possa aprender a viver ainda mais profundamente da fé. É isto o que nos diz o livro da Sabedoria:

"Foi a Sabedoria que conduziu
o homem justo por caminhos direitos,

lhe mostrou o Reino de Deus,

defendeu-o dos enganadores,

e meteu-o num duro combate,
para que vencesse,

e soubesse que,
de todas as coisas,
a mais poderosa é a Sabedoria".

Sab. 10, 10

E também:

"A criatura, servindo a ti,
seu Criador,

torna-se violenta
para atormentar os injustos,

e torna-se mais benigna para fazer o bem
àqueles que em ti confiam,

para que saibam os teus filhos,
a quem amaste, Senhor,

que não são os frutos naturais
que sustentam os homens,

mas que é a tua palavra que conserva
aqueles que crêem em ti".

Sab. 16, 24-26

É por isso que o Eclesiástico, após ter pedido ao homem preparar a "sua alma para a provação", acrescenta logo em seguida:

"Vós,
os que temeis o Senhor,
amai-O,
e os vossos corações
serão iluminados".

Ecles. 2, 10

As Sagradas Escrituras estão repletas de exemplos concretos destes ensinamentos.

Nos vinte primeiros capítulos do Êxodo elas nos narram como Deus havia libertado os judeus do Egito com prodígios tão extraordinários que eles praticamente nada tiveram que fazer senão admirar como Deus tudo fazia e a tudo provia. Mas, depois que alcançaram a liberdade através da passagem do Mar Vermelho, Deus pediu-lhes que lutassem, em condições de evidente inferioridade, para conquistarem a terra prometida. Esta conquista é a narrada no livro de Josué.

Comparando-se, porém, as narrativas de Êxodo e de Josué, vem naturalmente a pergunta: que necessidade havia de se lutar? Deus que havia feito tudo na libertação do Egito, uma nação muito mais poderosa, não poderia fazê-lo novamente na conquista da terra prometida, em vez de fazer passar o povo judeu pelo medo e pela angústia de enfrentar inimigos mais poderosos do que ele? Mas se nos lembrarmos das palavras que Josué nos deixou próximo ao término de sua vida, teremos que concluir que isto não ocorria senão para dar ocasião aos israelitas de aprenderem a viver da fé e a crescerem nela.

Dentro da própria narrativa de Êxodo encontramos novamente exemplos deste modo de agir da providência.

Quando os judeus estavam no cativeiro, Deus havia transformado as águas dos rios do Egito em sangue (Ex. 7, 14- 25), para que o Faraó libertasse o povo escolhido. Mas Faraó não cedeu. Seguiu-se então a praga das rãs (Ex. 7, 26-29; 8, 1- 11), e Faraó novamente não cedeu. Seguiu-se a praga dos mosquitos (Ex. 8, 12-15), e Faraó ainda não cedeu. Quatro novas pragas mais adiante, e Faraó ainda não cedia, não obstante os sinais evidentes que manifestavam a origem divina destes prodígios. Deus então anunciou a Moisés a oitava praga, pela qual as terras do Egito seriam infestadas, à sua ordem, por uma extraordinária horda de gafanhotos. Moisés já antevia que Faraó continuaria não cedendo e que se trata, portanto, de um esforço aparentemente inútil. Mas era evidente também para Moisés que Deus, que tinha o poder de realizar todos aqueles prodígios, poderia, se o quisesse, dizer apenas uma só palavra e mudar o coração de Faraó. Por que, então, não o fazia? É possível que Moisés tenha feito esta pergunta, apenas em seu íntimo ou diretamente para Deus. Se o fêz de fato, as Escrituras não o dizem. Contudo, quando Deus anunciou a oitava praga, explicou também a Moisés porque procedia daquele modo, como se Moisés o tivesse perguntado ou como se o próprio Deus se estivesse antecipando à pergunta. É claro que Deus poderia dizer uma só palavra e mudar o coração de Faraó, mas, se procedia diversamente, Deus disse que assim o fazia,

"operando todos estes sinais,
para que tu, Moisés,
possas narrar a teu filho,
e ao filho do teu filho,
quão grandes coisas
o Senhor fêz entre os egípcios
e que prodígios operou no meio deles,
para que conheçais
que eu sou o Senhor".

Ex. 10, 2

Para quem bastava dizer uma só palavra e com isto mudar o coração de Faraó, anunciar uma oitava e devastadora praga depois das sete que já se tinham mostrado inteiramente inúteis parecia uma atitude incompreensível e até uma fonte de angústia e apreensão para o povo judeu, o suposto beneficiário das mesmas. Mas Deus procedia assim para o nosso bem; Ele queria ensinar-nos a, contemplando aqueles prodígios, remontar a atenção de nossa alma para uma outra realidade. Desejava, através daqueles eventos visíveis, que aprendêssemos a conhecê-lo melhor e pudéssemos, através do conhecimento da fé, nos aproximar dele. E é assim que Ele ainda age, não apenas com o povo judeu ao ter saído do Egito, mas com todos aqueles que se propõem a empreender a sua busca:

"Se pudéssemos ver os fios sutis
com que a providência divina urde
a tela de nossa vida",

diz uma irmãzinha missionária que quis ocultar-se no anonimato,

"apoderar-se-iam de nós
sentimentos de gratidão e amor
para com nosso bom pai celestial e,
deixando nas suas mãos todo o cuidado
sobre o nosso futuro,
contentar-nos-íamos de ser
a pequena lançadeira
que doce e calmamente
desliza entre os fios da urdidura divina".

Tal como Deus havia ensinado a Moisés, a experiência também ensinou a esta irmãzinha que a providência lhe dispunha os acontecimentos de sua vida para que, também através deles, aprendesse a deixar de avaliar a realidade através das sugestões da carne e passasse a contemplar com os olhos da alma outras realidades bem mais profundas.

Nada disso, porém, haviam ainda aprendido os betulienses. Quiseram confiar em Deus, mas ignoravam que Deus mais quereria, ao ver suas boas disposições, aumentar-lhes a fé do que dar-lhes o descanso que julgavam merecer. Por isto, quando Deus lhes respondeu de acordo com a sua fé, não entenderam e se desesperaram. Não sabiam mais o que fazer, pois não tinham tido verdadeira experiência destas coisas. Eram marinheiros de primeira viagem, e logo na primeira tinham se deparado com uma tempestade a enfrentar. Com o navio estava tudo certo; o problema era a inexperiência da tripulação.

A sorte da cidade era que nela havia alguém que já vivia da fé há muito tempo, uma senhora chamada Judite, viúva há três anos e meio. Após a morte do marido, diz a Escritura,

"no andar superior de sua casa
havia feito para si um quarto retirado,
no qual se conservava recolhida
junto com as suas criadas;
trazia um cilício sobre os seus rins,
jejuava todos os dias de sua vida,
exceto nos sábados,
nos primeiros dias de cada mês
e nas festas de Israel.
Era de belíssimo aspecto
e estimadíssima por todos,
porque tinha muito temor de Deus,
e não havia ninguém que dissesse dela
uma palavra de desfavor".

Jd. 8, 5-8

Desta descrição depreende-se já estarmos diante de uma vida seriamente dedicada a Deus desde a juventude. "Estimadíssima por todos, sem que houvesse ninguém que dissesse dela uma palavra de desfavor", mostra que a sua fé não era recente, por ter sido já provada por muitos; "porque tinha muito temor de Deus" denota a profundidade dos dons do Espírito Santo; o "quarto retirado" e a prática do "jejum todos os dias de sua vida" são instrumentos auxiliares de uma vida séria de oração, que é, conforme veremos, o principal meio de se obter a fé. Uma pessoa assim, com certeza, teria que reagir muito diversamente diante do cerco do general Holofernes.

De fato, "tendo Judite sabido que o governador da cidade havia prometido entregar a cidade dali a cinco dias" (Jd. 8, 9), caso não viesse uma resposta de Deus, mandou chamar os anciãos de Betúlia e lhes disse:

"Que palavra é essa,
com a qual concordou Ozias,
de entregar a cidade aos assírios,
se dentro de cinco dias
não vos viesse socorro?

Quem sois vós,
que assim provocais o Senhor?
Não é esta uma palavra
que excite a sua misericórdia,
mas antes provoca a sua ira,
acende o seu furor.
Vós fixastes prazo à misericórdia do Senhor,
e ao vosso arbítrio lhe assinalastes o dia".

Jd. 8, 10-13

Estas são palavras de quem certamente já havia experimentado que se

"tiverdes fé como um grão de mostarda,
direis a este monte:

`Muda-te daqui para ali',

e ele se mudará,
e nada vos será impossível".

Mt. 17, 20

Judite sabia o que era a fé, e conhecia a resposta de Deus à fé; sabia que os judeus tinham entrado em luta contra Holofernes apenas com a arma da fé; sabia também que o que os betulienses faziam agora não provinha da fé, mas do abandono da fé. Estavam, pois, inteiramente desprotegidos, sem a única defesa com que contavam.

"Agora, irmãos",

continua Judite,

"como vós sois os anciãos do povo de Deus,
e de vós depende a sua vida,
com vossas palavras animai os seus corações,
para que se lembrem que nossos pais
foram tentados a fim de que se visse
se verdadeiramente serviam ao seu Deus.
Devem recordar-se como nosso pai Abraão foi tentado,
e como, depois de provado por meio de muitas tribulações,
chegou a ser o amigo de Deus.
Assim Isaac, assim Jacó,
assim Moisés
e todos os que agradaram a Deus,
passaram por muitas tribulações
e permaneceram fiéis.
Aqueles, porém,
que não aceitam as provas
com o temor do Senhor,
que mostraram a sua impaciência
e irromperam com injuriosas murmurações
contra o Senhor
foram feridos de morte".

Jd. 8, 21-25

Tratava-se, sem dúvida, não de um castigo, mas de uma oportunidade que Deus dava àqueles que tinham resolvido trilhar o caminho da fé para aprenderem a se libertar da pressão dos julgamentos que procedem dos sentidos da carne e desfrutarem da liberdade de agir à luz de realidades que somente podem ser apreendidas por outros canais. É isto o que acrescenta Judite:

"Creiamos que estes flagelos do Senhor,
com que, como seus servos,
somos castigados,
nos vieram para nossa emenda,
e não para nossa perdição".

Jd. 8, 27

O livro conta então como esta mulher, sem auxílio de nenhuma arma, apenas revestida da virtude da fé, pediu que se lhe abrissem as portas da cidade e dirigiu-se sozinha ao acampamento inimigo. Alguns dias mais tarde, o exército persa batia em retirada para nunca mais retornar. Antes de sair de Betúlia, porém, Judite retirou-se e pronunciou em particular uma oração, na qual se percebe claramente como ela apreciava aqueles acontecimentos inteiramente à luz de uma outra realidade. Talvez sejam estas as palavras mais belas e mais profundas deste livro:

"Tu, Senhor",

diz Judite,

"operaste as maravilhas dos tempos antigos,
determinaste que umas se sucedessem às outras,
e fêz-se sempre o que quiseste.

Todos os teus caminhos estão preparados,
e fundaste os teus juízos na tua providência".

Jd. 9, 4-5

Esta é a mesma fé da irmãzinha anônima que admirava os fios sutis com que a providência urde a tela de nossa vida, e se contentava em ser a pequena lançadeira que doce e calmamente desliza entre os fios da urdidura divina.

Como Judite conseguiu sozinha derrotar um exército cuja força não tinha rival militar sobre toda a face da terra são fatos inteiramente secundários que o leitor poderá verificar pessoalmente nas Sagradas Escrituras. A verdadeira lição do livro de Judite é sobre a natureza da vivência da virtude da fé que ele nos ensina.

Conclusão.

Destes exemplos, que poderiam ser multiplicados indefinidamente, depreende-se quão importante é o estudo das Sagradas Escrituras para se alcançar a virtude da fé, fonte da graça e de todo o bem. Será, pois, uma obrigação para aqueles que desejam se aproximar de Deus o estudo constante e metódico das Escrituras.

Resta-nos apenas concluir esta exortação com as palavras de Hugo de São Vítor do prólogo das "Alegorias de ambos os Testamentos":

"Quem quer que se dedique
ao estudo da ciência e da sabedoria divina",

diz Hugo de S. Vitor,

"poderá conhecer o fruto
das lições das Sagradas Escrituras
mais pela sua própria experiência
do que pelo testemunho dos outros.

A alma que se dedica
ao estudo das Sagradas Escrituras
encontrará nela uma ocupação honesta,
assim como a sagacidade da meditação,
a força da oração
e a luz da contemplação celeste.

Formar-se-á segundo o exemplo dos santos,
será instruída no exercício das virtudes
e se firmará no exercício das boas obras.

Neste estudo manifestam-se os enganos das ilusões,
rejeita-se a malícia da iniqüidade,
e somos conduzidos ao verdadeiro
e perfeito conhecimento da verdade
e ao amor da bondade.
Reanimam-se as forças
para não sucumbir na adversidade
e fundamentam-se
para que não se dissolvam na prosperidade.
Aprendemos a recordar o passado
e a ter cautela do futuro.

Quem quer que, portanto,
renunciasse a apascentar-se do alimento das Escrituras,
já teria começado a perder com isto
a vida da própria alma,
e dele poderia-se dizer com o salmista:

`A sua alma aborrecia toda a comida,
e chegou às portas da morte'.

Salmo 106, 18"