I.9.

A Alegoria e a Tropologia nas Sagradas Escrituras.

Não obstante estas últimas observações, de tudo quanto dissemos podemos inferir a importância que Hugo de S. Vitor atribuía ao sentido alegórico das Escrituras, colocando-o acima do sentido literal, uma afirmação que ele compartilha com a maioria dos santos padres. Mas a ordem da apreciação atualmente parece ter-se invertido, pois dá-se muita atenção para o sentido literal e pouco ou muito pouca para o alegórico e tropológico.

Negar a realidade do sentido alegórico nas Sagradas Escrituras é impossível, porque as mesmas Escrituras afirmam o contrário claramente e diversas vezes. Na Epístola aos Hebreus, por exemplo, está escrito que os sacerdotes judeus celebravam um culto cujas prescrições eram

"imagem e sombra das coisas celestes".

Heb 8,5

Mais adiante, a mesma epístola reafirma o mesmo mais claramente:

"A primeira (aliança) teve regulamentos
relativos ao culto e a um santuário terrestre.

Moisés tomou o sangue dos bezerros e dos bodes
e espargiu com sangue o tabernáculo
e todos os vasos do ministério.
Era necessário que as figuras das coisas celestiais
fossem purificadas com tais coisas,
mas (que) as próprias coisas celestes
o fossem por meio de vítimas melhores do que estas.
Jesus, de fato, não entrou num santuário
feito por mãos de homem,
(que era uma) figura do verdadeiro,
mas entrou no mesmo céu,
para se apresentar diante de Deus por nós."

Heb. 9,1; 19-24

Da mesma forma, o livro dos Números narra um milagre ocorrido no deserto do Sinai pelo qual de uma rocha, percutida pelo cajado de Moisés, jorrou água puríssima para saciar a sede do povo judeu. A este respeito diz S. Paulo na Primeira Epístola aos Coríntios:

"Nosso pais atravessaram o Mar (Vermelho),
comeram do mesmo alimento espiritual
e beberam da mesma bebida espiritual,
porque bebiam da pedra espiritual que os seguia,
e esta pedra era o Cristo".

I Cor. 10, 1-4

Mais claramente lemos na Epístola aos Gálatas que:

"Está escrito que Abraão teve dois filhos:
um da escrava e outro da livre.
Mas o da escrava nasceu segundo a carne;
e o da livre, em virtude da promessa.
Estas coisas foram ditas por alegoria.
Porque estas duas (mulheres)
são os dois testamentos.
Um, o do monte Sinai,
gera a escravidão,
e este é figurado em Agar,
porque Sinai é um monte da Arábia,
o qual corresponde à Jerusalém aqui debaixo,
a qual é escrava com seus filhos.
Mas aquela Jerusalém,
que é do alto,
é livre e é nossa mãe".

Gal. 4, 22-26

Outros exemplos poderiam ser citados, pelos quais se torna impossível negar a realidade do sentido alegórico nas Sagradas Escrituras. Não obstante isso, não são poucas os estudiosos modernos que têm se concentrado quase que exclusivamente no sentido literal das Escrituras, demonstrando, por isto e pelo modo com que abordam o tema dos demais sentidos, uma nítida dificuldade em compreender sua natureza. Esta priorização exagerada do sentido literal está certamente relacionada, por sua vez, com a dificuldade de compreender a natureza da vida espiritual que tomou conta do mundo moderno. Onde esta não existe, ou quase não existe, o sentido alegórico contido nas Escrituras, justamente denominado por Hugo de São Vitor de sentido espiritual, deixa, por assim dizer, de fazer sentido. No V do Didascalicon Hugo compara as Sagradas Escrituras aos instrumentos musicais, em que a madeira, que é o sentido literal, existe para dar maior sonoridade às vibrações das cordas, que são o alegórico; toda a Sagrada Escritura, diz Hugo, é como um instrumento musical em que as várias partes estão interligadas entre si para produzirem "a suavidade da inteligência das cordas espirituais" (58). Mas se a ciência e a virtude definham, conclui Hugo (59), as pessoas,

"julgando não haver nas Escrituras
nada de mais sutil
em que possam exercitar a sua inteligência,
apenas se ocupam com os escritos dos apóstolos,
pois, de fato, nada mais conseguem apreender ali
senão a superfície da letra,
ignorando a força da verdade"
(60).

Contribuíu também para esta inversão a influência exercida no ensino da Teologia pelos quatro Livros das Sentenças de Pedro Lombardo desde o século XIII até a Renascença e pela obra de S. Tomás de Aquino a partir desta época, embora sem que esta tenha sido a intenção destes autores.

Os Livros das Sentenças, de fato, são uma exposição da doutrina cristã que não se utiliza senão do sentido literal; quanto a S. Tomás, é bem sabido como no início da Summa Theologiae ele próprio anuncia de modo explícito que ao escrever esta obra pretende basear-se inteiramente sobre o sentido literal. Ora numa época, ora noutra, os Livros das Sentenças e a Summa Theologiae têm servido de iniciação teológica aos estudantes da Ciência Sagrada, e não é infreqüente que os que as estudam tenham sido imperceptivelmente levados a supor, por errônea interpretação, que para estes autores os demais sentidos das Escrituras fossem supérfluos e que eles estavam na verdade se antecipando aos tempos modernos em que as pessoas realmente têm dificuldade em entender tanto a razão como a legitimidade de tais sentidos.

Como se fosse para confirmar esta impossível interpretação, S. Tomás escreveu ainda o seguinte na questão introdutória da Summa:

"Todos os sentidos se fundamentam
sobre um só,
a saber, no sentido literal;
somente sobre o literal, porém,
pode-se fundamentar uma argumentação,
e não sobre o que é dito segundo a alegoria,
conforme reconhece o próprio S. Agostinho
na sua epístola contra Vicente Donatista.
Todavia, com isto nada perdemos
do que está contido na Sagrada Escritura,
pois nada do que é necessário à fé
está contido sob o sentido espiritual
que a Sagrada Escritura não trate manifestamente
pelo sentido literal em alguma outra passagem"
(61).

À primeira vista tais palavras mais parecem uma maneira elegante de reduzir a nada a importância do sentido alegórico, o que seria verdade se a Summa Theologiae pretendesse ser o mesmo que a totalidade da Ciência Sagrada. Estas mesmas palavras, porém, consideradas dentro de um contexto mais amplo, se revestem de outra significação. Segundo esta, se S. Tomás descartou o uso do sentido alegórico na Summa, fêz isto apenas por uma questão de método, pois uma obra concebida tal como o foi a Summa Theologiae é incompatível com a utilização de outro sentido que não o literal.

Que isto tenha sido apenas uma questão de método mostra-o também o exemplo do próprio Hugo de S. Vitor, o qual, não obstante utilizar-se abundantemente da exposição alegórica em quase todos os seus escritos, ao redigir o De Sacramentis, uma obra que tem uma estrutura muito semelhante à Summa de S. Tomás, baseou-se, assim como Tomás, inteiramente no sentido literal. Ricardo de S. Vitor, que se utiliza mais ainda do que Hugo da interpretação alegórica das Sagradas Escrituras, redigiu, entretanto, um tratado sobre a Trindade ao modo da Summa, em que também dispensou a interpretação alegórica e se utilizou apenas do sentido literal. E Ricardo não podia ter deixado de fazer isto, sem que tivesse mudado o objetivo que o levava a escrever, assim como também poderia ter acrescentado, com S. Tomás, que ao basear-se no sentido literal com isto nada perdia dos ensinamentos contidos nas Sagradas Escrituras, pois tudo o que ela ensina em uma passagem sob o sentido alegórico também tornará a ensiná-lo em alguma outra pelo sentido literal.

Mas, se é assim, deve-se agora explicar por que razão então os vitorinos, que deram provas tão claras de serem, capazes de escrever ao modo da Summa de S. Tomás, insistem tanto em fazer uso do sentido alegórico.

Aqueles que estão acostumados ao estilo da Summa, ou a outras obras que neste ponto lhe seguem o método, ao depararem com o De Sacramentis de Hugo ou o De Trinitate de Ricardo se verão, certamente, percorrendo um terreno já familiar. Se passarem, porém, a muitas das demais obras de ambos os vitorinos, como o Benjamin Minor e o Benjamin Major de Ricardo, a estranheza será inevitável. Nota-se em obras como estas que um extenso raciocínio fundamentado na interpretação alegórica das Escrituras, aparentemente de todo supérfluo, conduz a verdades que poderiam ser mostradas sem necessidade de semelhantes recursos. É-se tentado a percorrer a exposição dos autores apenas para poder chegar às conclusões, alcançadas as quais esquece-se o caminho percorrido e procura-se transformar aquelas verdades em linguagem fundamentada em sentido literal. Mas a estranha insistência com que os autores tornam e retornam a re-utilizar o discurso fundamentado no sentido alegórico em textos que não são peças de arte oratória, mas tratados de Teologia, passa aos poucos a gerar uma desconfiança de que tal recurso não pode estar ali superfluamente, por simples circunstancialidade ou preferência estética. Não é difícil daí passar para a percepção de que está-se lidando com uma outra via, um outro canal pelo qual se pode transmitir ao espírito determinadas verdades que, ainda que possam ser apresentadas de uma outra forma, os vitorinos se servem dela porque afirmam ser a mais profunda.

Santo Tomás também parece ter entendido que este modo de exposição devesse ser incluído entre as coisas divinas, ao atribuir esta forma de veiculação da verdade a Deus, quando afirma, numa passagem que já citamos,

"estar em poder de Deus acomodar
não apenas as palavras aos significados,
o que também o homem pode fazer,
mas também as próprias coisas".

Para entender a razão da profundidade atribuída pelos vitorinos ao sentido alegórico onde poderia muito bem ser usado o sentido literal, devemos recordar a doutrina geral ensinada por Hugo de S. Vitor a este respeito. Antes de dedicar-se ao estudo alegórico das Escrituras, Hugo exige que o estudante conheça completamente o sentido literal das Sagradas Escrituras, o qual, segundo S. Tomás, já contém toda a verdade da fé. Não pode ser, portanto, para conhecer alguma verdade nova e mais profunda que Hugo quer que o estudante se dedique ao estudo da alegoria. Mais ainda, Hugo quer que, antes do estudo alegórico das Escrituras, o discípulo se dedique ao estudo literal dos mistérios da fé, algo que na verdade já não pode ser realizado perfeitamente senão pela contemplação, aquela operação da inteligência que, segundo ele,

"abarca em uma visão plenamente manifesta
a compreensão de muitas
ou também de todas as coisas".

A contemplação é, ademais, o objetivo último da pedagogia vitorina e, se já o estudo do De Sacramentis ou da Summa Theologiae está relacionado com ela, com mais razão o estudo alegórico das Escrituras que, no entender dos vitorinos, o pressupõe, terá que estar também relacionado com a contemplação.

Pois, de fato, no uso do sentido literal cada palavra é associada ao seu significado por uma convenção imediata; mas na investigação do sentido alegórico cada coisa pode significar, em princípio, uma multidão de outras, dependendo da similaridade que os aspectos de umas tenham com os das outras. Não é possível, portanto, identificar o significado alegórico se não se conhece primeiramente todo o conjunto do literal e se não se emprega, na investigação de um sentido alegórico em particular, aquela "visão plenamente manifesta de todas as coisas" que só é possível pela contemplação.

Conclui-se daqui não ser possível uma verdadeira investigação do sentido alegórico das Escrituras sem o uso das virtudes contemplativas as quais exigem, segundo Hugo, além do estudo, também a virtude e o auxílio da graça que vem através da oração, sendo por este motivo que este sentido é também chamado por ele de sentido espiritual. Desta maneira, a importância que a pedagogia dos vitorinos atribui à investigação do sentido alegórico das Escrituras provém diretamente de seu objetivo maior que é a de introduzir o aluno na vida contemplativa, a qual, segundo afirma o Cristo no Evangelho de S. Lucas, é "aquela melhor parte" escolhida por Maria (Lc. 10, 42).



Referências

(58) Idem: Didascalicon, L. V, C. 2; PL 175, 789.
(59) Hugo se refere aos "menos doutos", mas não se pode esquecer que para ele ciência e virtude caminham juntos.
(60) Hugo S.Vitor: Didascalicon, L. V, C. 3; PL 175, 790-1.
(61) S.Tomás de Aquino: Summa Theologiae, I, Q. I, a.10 ad 1.