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Não obstante estas últimas observações, de tudo quanto
dissemos podemos inferir a importância que Hugo de S. Vitor
atribuía ao sentido alegórico das Escrituras, colocando-o acima
do sentido literal, uma afirmação que ele compartilha com a
maioria dos santos padres. Mas a ordem da apreciação atualmente
parece ter-se invertido, pois dá-se muita atenção para o sentido
literal e pouco ou muito pouca para o alegórico e tropológico.
Negar a realidade do sentido alegórico nas Sagradas
Escrituras é impossível, porque as mesmas Escrituras afirmam o
contrário claramente e diversas vezes. Na Epístola aos Hebreus,
por exemplo, está escrito que os sacerdotes judeus celebravam um
culto cujas prescrições eram
"imagem e sombra das coisas celestes". |
Mais adiante, a mesma epístola reafirma o mesmo mais claramente:
"A primeira (aliança) teve regulamentos
relativos ao culto e a um santuário terrestre.
Moisés tomou o sangue dos bezerros e dos bodes
e espargiu com sangue o tabernáculo
e todos os vasos do ministério.
Era necessário que as figuras das coisas celestiais
fossem purificadas com tais coisas,
mas (que) as próprias coisas celestes
o fossem por meio de vítimas melhores do que estas.
Jesus, de fato, não entrou num santuário
feito por mãos de homem,
(que era uma) figura do verdadeiro,
mas entrou no mesmo céu,
para se apresentar diante de Deus por nós." |
Da mesma forma, o livro dos Números narra um milagre ocorrido no
deserto do Sinai pelo qual de uma rocha, percutida pelo cajado de
Moisés, jorrou água puríssima para saciar a sede do povo judeu. A
este respeito diz S. Paulo na Primeira Epístola aos Coríntios:
"Nosso pais atravessaram o Mar (Vermelho),
comeram do mesmo alimento espiritual
e beberam da mesma bebida espiritual,
porque bebiam da pedra espiritual que os seguia,
e esta pedra era o Cristo". |
Mais claramente lemos na Epístola aos Gálatas que:
"Está escrito que Abraão teve dois filhos:
um da escrava e outro da livre.
Mas o da escrava nasceu segundo a carne;
e o da livre, em virtude da promessa.
Estas coisas foram ditas por alegoria.
Porque estas duas (mulheres)
são os dois testamentos.
Um, o do monte Sinai,
gera a escravidão,
e este é figurado em Agar,
porque Sinai é um monte da Arábia,
o qual corresponde à Jerusalém aqui debaixo,
a qual é escrava com seus filhos.
Mas aquela Jerusalém,
que é do alto,
é livre e é nossa mãe". |
Outros exemplos poderiam ser citados, pelos quais se
torna impossível negar a realidade do sentido alegórico nas
Sagradas Escrituras. Não obstante isso, não são poucas os
estudiosos modernos que têm se concentrado quase que
exclusivamente no sentido literal das Escrituras, demonstrando,
por isto e pelo modo com que abordam o tema dos demais sentidos,
uma nítida dificuldade em compreender sua natureza. Esta
priorização exagerada do sentido literal está certamente
relacionada, por sua vez, com a dificuldade de compreender a
natureza da vida espiritual que tomou conta do mundo moderno.
Onde esta não existe, ou quase não existe, o sentido alegórico
contido nas Escrituras, justamente denominado por Hugo de São
Vitor de sentido espiritual, deixa, por assim dizer, de fazer
sentido. No V do Didascalicon Hugo compara as Sagradas Escrituras
aos instrumentos musicais, em que a madeira, que é o sentido
literal, existe para dar maior sonoridade às vibrações das
cordas, que são o alegórico; toda a Sagrada Escritura, diz Hugo,
é como um instrumento musical em que as várias partes estão
interligadas entre si para produzirem "a suavidade da
inteligência das cordas espirituais" (58). Mas se a ciência e a
virtude definham, conclui Hugo (59), as pessoas,
"julgando não haver nas Escrituras
nada de mais sutil
em que possam exercitar a sua inteligência,
apenas se ocupam com os escritos dos apóstolos,
pois, de fato, nada mais conseguem apreender ali
senão a superfície da letra,
ignorando a força da verdade" (60).
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Contribuíu também para esta inversão a influência
exercida no ensino da Teologia pelos quatro Livros das Sentenças
de Pedro Lombardo desde o século XIII até a Renascença e pela
obra de S. Tomás de Aquino a partir desta época, embora sem que
esta tenha sido a intenção destes autores.
Os Livros das Sentenças, de fato, são uma exposição da
doutrina cristã que não se utiliza senão do sentido literal;
quanto a S. Tomás, é bem sabido como no início da Summa
Theologiae ele próprio anuncia de modo explícito que ao escrever
esta obra pretende basear-se inteiramente sobre o sentido
literal. Ora numa época, ora noutra, os Livros das Sentenças e a
Summa Theologiae têm servido de iniciação teológica aos
estudantes da Ciência Sagrada, e não é infreqüente que os que as
estudam tenham sido imperceptivelmente levados a supor, por
errônea interpretação, que para estes autores os demais sentidos
das Escrituras fossem supérfluos e que eles estavam na verdade se
antecipando aos tempos modernos em que as pessoas realmente têm
dificuldade em entender tanto a razão como a legitimidade de tais
sentidos.
Como se fosse para confirmar esta impossível
interpretação, S. Tomás escreveu ainda o seguinte na questão
introdutória da Summa:
"Todos os sentidos se fundamentam
sobre um só,
a saber, no sentido literal;
somente sobre o literal, porém,
pode-se fundamentar uma argumentação,
e não sobre o que é dito segundo a alegoria,
conforme reconhece o próprio S. Agostinho
na sua epístola contra Vicente Donatista.
Todavia, com isto nada perdemos
do que está contido na Sagrada Escritura,
pois nada do que é necessário à fé
está contido sob o sentido espiritual
que a Sagrada Escritura não trate manifestamente
pelo sentido literal em alguma outra passagem" (61).
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À primeira vista tais palavras mais parecem uma maneira elegante
de reduzir a nada a importância do sentido alegórico, o que seria
verdade se a Summa Theologiae pretendesse ser o mesmo que a
totalidade da Ciência Sagrada. Estas mesmas palavras, porém,
consideradas dentro de um contexto mais amplo, se revestem de
outra significação. Segundo esta, se S. Tomás descartou o uso do
sentido alegórico na Summa, fêz isto apenas por uma questão de
método, pois uma obra concebida tal como o foi a Summa Theologiae
é incompatível com a utilização de outro sentido que não o
literal.
Que isto tenha sido apenas uma questão de método
mostra-o também o exemplo do próprio Hugo de S. Vitor, o qual,
não obstante utilizar-se abundantemente da exposição alegórica em
quase todos os seus escritos, ao redigir o De Sacramentis, uma
obra que tem uma estrutura muito semelhante à Summa de S. Tomás,
baseou-se, assim como Tomás, inteiramente no sentido literal.
Ricardo de S. Vitor, que se utiliza mais ainda do que Hugo da
interpretação alegórica das Sagradas Escrituras, redigiu,
entretanto, um tratado sobre a Trindade ao modo da Summa, em que
também dispensou a interpretação alegórica e se utilizou apenas
do sentido literal. E Ricardo não podia ter deixado de fazer
isto, sem que tivesse mudado o objetivo que o levava a escrever,
assim como também poderia ter acrescentado, com S. Tomás, que ao
basear-se no sentido literal com isto nada perdia dos
ensinamentos contidos nas Sagradas Escrituras, pois tudo o que
ela ensina em uma passagem sob o sentido alegórico também tornará
a ensiná-lo em alguma outra pelo sentido literal.
Mas, se é assim, deve-se agora explicar por que razão
então os vitorinos, que deram provas tão claras de serem, capazes
de escrever ao modo da Summa de S. Tomás, insistem tanto em fazer
uso do sentido alegórico.
Aqueles que estão acostumados ao estilo da Summa, ou a
outras obras que neste ponto lhe seguem o método, ao depararem
com o De Sacramentis de Hugo ou o De Trinitate
de Ricardo se verão, certamente, percorrendo um terreno já familiar. Se
passarem, porém, a muitas das demais obras de ambos os vitorinos,
como o Benjamin Minor e o Benjamin Major de Ricardo,
a estranheza será inevitável. Nota-se em obras como estas que um extenso
raciocínio fundamentado na interpretação alegórica das
Escrituras, aparentemente de todo supérfluo, conduz a verdades
que poderiam ser mostradas sem necessidade de semelhantes
recursos. É-se tentado a percorrer a exposição dos autores apenas
para poder chegar às conclusões, alcançadas as quais esquece-se o
caminho percorrido e procura-se transformar aquelas verdades em
linguagem fundamentada em sentido literal. Mas a estranha
insistência com que os autores tornam e retornam a re-utilizar o
discurso fundamentado no sentido alegórico em textos que não são
peças de arte oratória, mas tratados de Teologia, passa aos
poucos a gerar uma desconfiança de que tal recurso não pode estar
ali superfluamente, por simples circunstancialidade ou
preferência estética. Não é difícil daí passar para a percepção
de que está-se lidando com uma outra via, um outro canal pelo
qual se pode transmitir ao espírito determinadas verdades que,
ainda que possam ser apresentadas de uma outra forma, os
vitorinos se servem dela porque afirmam ser a mais profunda.
Santo Tomás também parece ter entendido que este modo
de exposição devesse ser incluído entre as coisas divinas, ao
atribuir esta forma de veiculação da verdade a Deus, quando
afirma, numa passagem que já citamos,
"estar em poder de Deus acomodar
não apenas as palavras aos significados,
o que também o homem pode fazer,
mas também as próprias coisas".
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Para entender a razão da profundidade atribuída pelos
vitorinos ao sentido alegórico onde poderia muito bem ser usado o
sentido literal, devemos recordar a doutrina geral ensinada por
Hugo de S. Vitor a este respeito. Antes de dedicar-se ao estudo
alegórico das Escrituras, Hugo exige que o estudante conheça
completamente o sentido literal das Sagradas Escrituras, o qual,
segundo S. Tomás, já contém toda a verdade da fé. Não pode ser,
portanto, para conhecer alguma verdade nova e mais profunda que
Hugo quer que o estudante se dedique ao estudo da alegoria. Mais
ainda, Hugo quer que, antes do estudo alegórico das Escrituras, o
discípulo se dedique ao estudo literal dos mistérios da fé, algo
que na verdade já não pode ser realizado perfeitamente senão pela
contemplação, aquela operação da inteligência que, segundo ele,
"abarca em uma visão plenamente manifesta
a compreensão de muitas
ou também de todas as coisas".
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A contemplação é, ademais, o
objetivo último da pedagogia vitorina e, se já o estudo do De
Sacramentis ou da Summa Theologiae está relacionado com ela, com
mais razão o estudo alegórico das Escrituras que, no entender dos
vitorinos, o pressupõe, terá que estar também relacionado com a
contemplação.
Pois, de fato, no uso do sentido literal cada palavra
é associada ao seu significado por uma convenção imediata; mas na
investigação do sentido alegórico cada coisa pode significar, em
princípio, uma multidão de outras, dependendo da similaridade que
os aspectos de umas tenham com os das outras. Não é possível,
portanto, identificar o significado alegórico se não se conhece
primeiramente todo o conjunto do literal e se não se emprega, na
investigação de um sentido alegórico em particular, aquela "visão
plenamente manifesta de todas as coisas" que só é possível pela
contemplação.
Conclui-se daqui não ser possível uma verdadeira
investigação do sentido alegórico das Escrituras sem o uso das
virtudes contemplativas as quais exigem, segundo Hugo, além do
estudo, também a virtude e o auxílio da graça que vem através da
oração, sendo por este motivo que este sentido é também chamado
por ele de sentido espiritual. Desta maneira, a importância que a
pedagogia dos vitorinos atribui à investigação do sentido
alegórico das Escrituras provém diretamente de seu objetivo maior
que é a de introduzir o aluno na vida contemplativa, a qual,
segundo afirma o Cristo no Evangelho de S. Lucas, é "aquela
melhor parte" escolhida por Maria (Lc. 10, 42).
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