I.8.

O Estudo das Sagradas Escrituras, segundo Hugo de S. Vitor.

Segundo Hugo de S. Vitor, a leitura ou o estudo mais profundo das Sagradas Escrituras é aquele pelo qual pode-se apreender não apenas o significado das palavras, mas também investigar o significado das coisas a que se referem as palavras de seus livros, isto é, o sentido alegórico e tropológico neles contido.

Este modo de estudar as Escrituras, porém, não é para principiantes. Segundo Hugo afirma no VI do Didascalicon,

"Trata-se de uma investigação
que exige inteligências já maduras,
possuidoras de uma sutileza incapaz
de perder a prudência no discernimento"
(46).

Além da maturidade intelectual, esta investigação exige também santidade de vida, conforme está afirmado no mesmo VI do Didascalicon:

"Os homens santos,
quanto mais progridem nas virtudes ou na ciência,
tanto mais profundos vêem ser os arcanos
das Sagradas Escrituras,
e aquilo que aos homens simples
e ainda presos às coisas da terra
parecem coisas desprezíveis,
aos espirituais mais elevados parecem sublimes"
(47).

Ambas estas coisas, maturidade intelectual e santidade de vida, conforme já tivemos ocasião de observar anteriormente, não são senão uma outra versão dos requisitos gerais da espiritualidade vitorina, que busca contrapor-se às duas principais feridas causadas no homem pelo pecado, isto é, a ignorância do bem e o desejo do mal, pelo crescimento das virtudes tanto da inteligência como da vontade. O que aqui aflorou como maturidade intelectual e santidade de vida em outras passagens de Hugo aparece como amor e sabedoria, ciência e virtude, fé e caridade; de modo especial, no VII e último do Didascalicon, Hugo diz que a vida espiritual principia pelo dia do temor, progride pelo dia da verdade e só chega à maturidade quando ao dia da verdade se lhe acrescenta o dia do amor (48).

Mas o Didascalicon também nos oferece um elenco dos requisitos específicos necessários à investigação dos sentidos mais profundos das Escrituras.

Em primeiro lugar, é preciso conhecer bem o sentido literal das Sagradas Escrituras, isto é, toda a sua história, "do princípio ao fim" (49). Hugo não diz, mas é evidente que o subentende, que uma afirmação como esta não significa que se deva abrir a primeira página das Sagradas Escrituras e lê-la na seqüência até à última; qualquer pessoa que tenha tentado ler as Escrituras desta maneira sabe por experiência que deste modo não se chega a lugar algum. Ao contrário, deve-se, sob a orientação de alguém que já as conhece, principiar pelas suas partes mais importantes, como os Evangelhos, e prosseguir com ordem, das mais importantes às menos importantes do ponto de vista do sentido literal.

A este estudo inicial das Escrituras deve-se seguir paralelamente a prática da vida cristã, sob pena do estudo não conduzir a nada. É o que nos diz Hugo no V do Didascalicon:

"É necessário também
que aquele que tiver iniciado este caminho
procure aprender nos livros em que estudar
não apenas pela beleza do fraseado,
mas também pelo estímulo que eles oferecem
à prática das virtudes,
e de tal maneira que o estudante procure nelas
não tanto a pomposidade ou a arte das palavras,
mas a beleza da verdade.
Saiba também que não chegará ao seu propósito se,
movido por um vão desejo da ciência,
se dedicar de tal maneira apenas ao estudo
que se veja obrigado a abandonar as boas obras"
(50).

Ademais, o estudante deve levar em conta que o fim último do estudo, na pedagogia dos vitorinos, é alcançar a vida contemplativa, à qual não se chega sem o auxílio da graça divina. É necessário, portanto, recorrer ao auxílio divino sem o qual o homem é enfermo e ineficiente, e isto se faz, continua o V do Didascalicon, através da oração:

"É necessário, pois, levantar-se à oração,
e pedir o seu auxílio, sem o qual
nenhum bem pode ser feito;
isto é, a sua graça a qual,
antes que tivesses chegado até aqui para pedi-la,
já te iluminava,
e daqui para a frente será quem
haverá de dirigir os teus passos
para o caminho da paz,
e de cuja única boa vontade
depende que sejas conduzido
ao efeito da boa operação"
(51).

Sobre a necessidade e o sentido da oração para a vida cristã em geral e para o estudo das coisas divinas em especial, Hugo de S. Vitor tem ainda uma outra passagem notável no opúsculo De Quinque Septenariis, em que ele tece um comentário a respeito dos sete dons do Espírito Santo, a mais elevada manifestação da graça divina no homem:

"Sobre os sete dons do Espírito Santo",

diz Hugo,

"está escrito no Evangelho:

`Se vós, sendo maus,
sabeis dar coisas boas aos vossos filhos,
quanto mais o vosso Pai que está nos céus
dará o Espírito Santo aos que lho pedirem?'

Lc. 11

Portanto, o Pai celeste dará o Espírito Santo
aos filhos que lho pedirem.
Os que são filhos não pedem outra coisa;
os que pedem outras coisas
são servos e mercenários,
não filhos.
Os que pedem prata,
os que pedem ouro,
os que pedem as coisas que passam,
os que pedem o que não é eterno,
pedem o ministério da servidão,
não o espírito da liberdade.
O que for pedido, isto será dado;
se pedes o corporal,
não receberás mais do que o que pedes.
Se pedes o espiritual,
o que pedes será concedido
e o que não pedes será acrescentado;
será dado o espiritual,
será acrescentado o corporal.

`Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus,
e tudo o resto vos será acrescentado'.

Mt. 6

Deve-se, portanto, orar ao Pai,
e ao Pai, que está nos céus,
pedir os dons celestes,
não os da terra;
não a substância corporal,
mas a graça espiritual"
(52).

É desta maneira, pois, que pelo estudo, pela prática da vida cristã e pela oração, Hugo de S. Vitor quer que aos poucos se alcance o conhecimento do conteúdo literal ou histórico das Sagradas Escrituras.

Feito isto, porém, ainda não é chegada a hora de se passar à investigação do sentido alegórico e tropológico das Escrituras.

"É um alimento sólido",

diz o VI do Didascalicon,

"que não pode ser engolido
se não for bem mastigado"
(53).

Por isso, após ter alcançado o conhecimento da letra da Escritura, de ter progredido na virtude e na oração, Hugo diz que ainda é necessário dedicar-se ao estudo dos mistérios da fé. Os principais mistérios da fé a que Hugo se refere estão elencados no VI do Didascalicon: são o mistério da unidade e da trindade divinas, a criação das coisas visíveis e invisíveis, a graça e a queda do homem, a lei temporal e a lei divina, a encarnação do Verbo, os mistérios do Novo Testamento, a ressurreição e a vida eterna. "Este é aquele edifício espiritual", continua Hugo, "que deve ser construído e erguido" sobre os alicerces do conhecimento da letra das Escrituras antes que se possa passar ao seu estudo alegórico e tropológico (54). Se Santo Tomás estivesse lendo estas linhas, - provavelmente as leu ao ter passado por esta vida -, cremos que as aplaudiria de pé; talvez apenas comentasse que ao estudo da profundidade dos mistérios da fé deveria-se acrescentar também o da perfeição da vida cristã (55).

Quem quer que conheça, porém, um pouco deste assunto, ao chegar neste ponto da exposição de Hugo de S. Vitor, provavelmente há de perguntar de que modo Hugo procedia para que seus alunos obtivessem este conhecimento, uma vez que o Didascalicon foi escrito tendo em vista a orientação dos alunos que se dirigiam à escola do mosteiro de São Vitor e que, portanto, era um texto para aplicação imediata e não uma simples especulação pedagógica. Hoje em dia, para quem o deseje, o caminho é fácil e desimpedido: fora de qualquer dúvida, é a Summa Theologiae de S. Tomás de Aquino ao mesmo tempo o meio mais fácil e o mais profundo para se chegar a um conhecimento sólido do conjunto destes mistérios da fé, apresentados, ademais, de um modo manifestamente intencionado a favorecer e impulsionar a vida espiritual. Não é outro o motivo pelo qual a Igreja ainda hoje, no Código de Direito Canônico de 1983 prescreve aos alunos das Faculdades de Teologia que

"aprendam a penetrar mais intimamente
o mistério da salvação
tendo por mestre principalmente
a Santo Tomás de Aquino"
(56).

Desta maneira, quando no VI do Didascalicon Hugo de S. Vitor indicava aos seus alunos que entre o estudo literal e a investigação dos sentidos alegórico e tropológico das Escrituras eles deveriam se dedicar ao estudo aprofundado do conjunto dos mistérios da fé, ele na realidade estava fazendo, com duzentos anos de antecedência, o primeiro esboço do conteúdo e do método da Summa Theologiae de S. Tomás de Aquino. Mas no início dos anos 1100 S. Tomás ainda não havia nascido, nem havia ainda Summa Theologiae, e o conhecimento que Hugo exigia de seus alunos só poderia ser encontrado amplamente disperso na vasta literatura dos santos padres. Pouco antes de Hugo ter chegado a São Vitor havia se iniciado naquele mosteiro a formação de uma biblioteca em que se encontrariam as principais obras dos santos padres, mas a simples justaposição destes livros não era uma solução. Tratava-se de um material extremamente vasto e apresentado de um modo bastante difícil para poder ser apreendido em forma de síntese. O estudante esbarraria com o problema da multiplicação das questões e argumentos sem interesse para seus propósitos imediatos, com os assuntos apresentados fora da ordem conveniente, e com a freqüente repetição dos temas, causando fastídio e confusão na alma dos leitores, conforme diria posteriormente S. Tomás no prólogo da Summa. Só havia uma solução para este problema, e foi assim que Hugo de S. Vitor escreveu a primeira Summa Theologiae da história, o De Sacramentis Fidei Christianae ou Os Mistérios da Fé Cristã, a primeira grande síntese teológica da Igreja Latina que deu início à seqüência das Summas que culminaria, dois séculos depois, na Summa de S. Tomás.

A Summa de Tomás é obra manifestamente mais perfeita do que o De Sacramentis, mas esta não torna esta obra de Hugo coisa ultrapassada. Embora tenha sido a primeira Summa, o De Sacramentis é trabalho de grande maturidade; ele faz parte do número daquelas obras que não podem vir a se tornar obsoletas pela perfeição de nenhuma outra; ademais, no De Sacramentis encontram-se muitíssimas coisas de valor incomparável que em vão se procurariam tanto na Summa como em qualquer outro lugar.

No prólogo do De Sacramentis Hugo menciona já haver escrito a segunda parte do Didascalicon para orientar seus alunos no estudo literal das Sagradas Escrituras; agora, continua Hugo, ele pretende oferecer esta síntese (`quandam summam omnium') dos mistérios da fé para poder prepará-los e

"introduzí-los no segundo aprendizado
das Sagradas Escrituras,
que consiste em seu estudo alegórico,
pois se os estudantes não se estabelecerem primeiro
no fundamento do conhecimento da fé,
não permanecerão ilesos naquilo que depois
se lhes há de acrescentar"
(57).

O que Hugo, porém, não escreveu neste prólogo era que, ao fazer isso, além de preparar seus alunos para um estudo mais profundo das Sagradas Escrituras, estava dando início à Escolástica e abria o caminho para que S. Tomás de Aquino pudesse vir a realizar a sua obra.

Deste modo, os alunos que já conhecessem bem toda a letra das Escrituras, que já vivessem uma vida de virtude e de oração, e que já conhecessem a fundo os mistérios da fé sem alegorias, tais como se encontram no De Sacramentis ou na Summa Theologiae, Hugo os introduzia na investigação dos outros sentidos das Sagradas Escrituras.

Isto não significa, porém, que o objetivo de uma escola ou de uma escola de Teologia seja o estudo alegórico das Escrituras. Nossa exposição pode ter oferecido esta impressão porque, em vez de abordar todo o conjunto da pedagogia, nos restringimos apenas à questão do estudo das Sagradas Escrituras e nela a investigação do sentido alegórico vem por último. A investigação do sentido alegórico das Escrituras exige como requisitos uma vida de virtude e de oração, o desenvolvimento da contemplação, o conhecimento do sentido literal das Escrituras, dos mistérios da fé e da perfeição da vida cristã; isto não significa, porém, que a finalidade de tudo isto seja o conhecimento da alegoria das Escrituras. A finalidade de todas estas coisas é a vida contemplativa, com ou sem o conhecimento da alegoria das Escrituras. Se a investigação do seu sentido alegórico favorece a contemplação, conforme veremos a seguir, é porque ela é ocasião para a contemplação, não a causa que a produz. Não é a investigação da alegoria das Escrituras que produz a contemplação, mas o exercício das virtudes teologais, que, se existe, pode ser favorecido pela investigação da alegoria, mas, se não existe, não há Sagrada Escritura que possa suprir a sua ausência.



Referências

(46) Hugo S.Vitor: Didascalicon, L. VI, C. 4; PL 175, 802.
(47) Ibidem, L. VI, C. 4; PL 175, 804 c. (48) Ibidem, L. VII, C. 26; PL 175, 836. (49) Ibidem, L. VI, C. 3; PL 175, 799b. (50) Ibidem, L. V, C. 7; PL 175, 795a. (51) Ibidem, L. V,C. 9; PL 175, 797c.
(52) Hugo S.Vitor: De Quinque Septenariis Opusculum, C. V; PL 175, 410d.
(53) Idem: Didascalicon, L. VI, C. 4; PL 175, 802.
(54) Ibidem, L. VI, C. 4; PL 175, 803.
(55) S.Tomás de Aquino: Summa Theologiae, III, Q. 71, a. 4 ad 3.
(56) CIC 1983, cânon 252.
(57) Hugo S. Vitor: De Sacramentis Fidei Christianae, Prologus; PL 176, 183.