I.7.

Uma Interpretação Alegórica no Velho Testamento.

Um exemplo, talvez o mais notável entre os que existem nas obras que nos foram deixadas pelos vitorinos, da significação mais profunda que as coisas significadas pelas palavras possuem nas Sagradas Escrituras é o abordado por Ricardo de São Vitor ao considerar a passagem do Êxodo em que o Senhor descreve a Moisés como deveria ser construída a Arca da Aliança. Nos capítulos 25 a 31 do Êxodo lemos como, após terem os judeus abandonado a terra do Egito e acampado aos pés do Monte Sinai, o Senhor expõe a Moisés como deveria ser construído o Tabernáculo, uma espécie de templo transportável que deveria ser conduzido pelo povo judeu através do deserto em sua caminhada rumo à terra prometida. No centro deste templo deveria ser colocada a Arca da Aliança em que deveriam ser guardadas as tábuas da Lei escritas e entregues a Moisés no alto do Monte Sinai.

Na longa descrição do tabernáculo e de seus utensílios, encontramos esta pequena passagem em que o Senhor explica a Moisés como deveria ser construída a Arca da Aliança:

"Fazei uma arca de pau de cetim,
cujo comprimento tenha dois côvados e meio,
a largura de um côvado e meio,
a altura igualmente de um côvado e meio.

Revesti-la-ás de ouro puríssimo
por dentro e por fora;
e farás sobre ela uma coroa de ouro em roda;
e farás quatro argolas de ouro,
que porás nos quatro cantos da arca:
duas argolas de um lado e duas do outro.

Farás também varais de pau de cetim,
e os cobrirás de ouro,
e os farás passar por dentro das argolas
que estão ao lado da arca,
a fim de que sirvam para a transportar.
Estarão sempre metidos nas argolas,
e nunca se tirarão delas.
E porás na arca o testemunho
que eu hei de te dar.

Farás também o propiciatório
de ouro puríssimo;
o seu comprimento terá dois côvados e meio,
e a largura um côvado e meio.

Farás também dois querubins de ouro batido
nas duas extremidades do oráculo.
Um querubim esteja de um lado,
o outro do outro.
E cubram ambos os lados do propiciatório,
estendendo as asas e cobrindo o oráculo,
e estejam olhando um para outro
com os rostos voltados para o propiciatório,
com o qual deve estar coberta a arca,
na qual porás o testemunho que eu hei de te dar.

De lá te darei as minhas ordens,
em cima do propiciatório,
e do meio dos dois querubins,
que estarão sobre a arca do testemunho, e te direi todas as coisas que por meio de ti
intimarei aos filhos de Israel".

Ex. 25, 10-22

O sentido literal desta passagem é evidente: trata-se de um plano de construção, com especificações de medidas e materiais, para uma arca a ser colocada no centro de um templo.

Mas é bastante sabido que as coisas do Velho Testamento significam as do Novo, e, portanto, Ricardo de S. Vitor com razão se pergunta o que poderia significar esta arca com as minuciosas especificações que a acompanham. Em aproximadamente uma centena de páginas da Patrologia Latina de Migne (44), em um livro que até hoje é um dos clássicos da Teologia, Ricardo explica que a arca cujo modo de ser construído havia sido explicado a Moisés pelo próprio Deus significa a graça da contemplação:

"Que poderia significar este sacrário",

diz Ricardo,

"senão aquela melhor parte que Maria,
a irmã de Marta,
escolheu para si (Lc. 10) ?

Este sacrário, portanto,
significa a graça da contemplação que,
pela sua dignidade,
ocupa no tabernáculo divino
um lugar de preferência
entre todas as coisas"
(45).

Através dos detalhes da construção da Arca da Aliança Ricardo de S. Vitor passa em seguida a expor o caminho pelo qual o homem se forma na contemplação e, através dela, se eleva até Deus. Aquilo que parecia, à primeira vista, apenas um projeto de marcenaria e ouriversaria era, na realidade, uma das mais profundas lições de Teologia que a humanidade já tinha recebido do alto.

Estes exemplos mostram como para os santos padres, e de modo especialíssimo, para os vitorinos em particular, aquilo que se convencionou denominar de sentido alegórico e tropológico das Sagradas Escrituras não são fantasias inventadas por autores piedosos sobre o texto sagrado, mas são sentidos realmente intencionados pelo Espírito Santo ao ter inspirado as Escrituras e são também, freqüentemente, o seu sentido mais real e verdadeiro.



Referências

(44) Ricardo de S. Vitor: De Gratia Contemplationis libri quinque, hactenus dictum Benjamin Major; PL 196, 63-202.
(45) Ibidem, L. I, C. 1; PL 196, 64-5.