I.6.

Uma Interpretação Alegórica no Novo Testamento.

Consideremos a parábola do bom samaritano, tal como ela nos é narrada no Evangelho de São Lucas. Um estudioso da Lei de Moisés, tendo ouvido Jesus falar da necessidade de amar ao próximo como a si mesmo, perguntou-lhe quem era este próximo; esta pergunta deu a Jesus a oportunidade de narrar a parábola do bom samaritano. Para responder à pergunta do estudioso da Lei de Moisés, Jesus disse o seguinte:

"Um homem descia de Jerusalém a Jericó,
e caíu no meio de assaltantes que,
após havê-lo despojado de suas vestes e espancado,
foram-se,
deixando-o meio morto.

Casualmente,
descia por este caminho um sacerdote;
viu-o e passou adiante.

Igualmente um levita,
atravessando este lugar,
viu-o e prosseguiu.

Certo samaritano em viagem, porém,
chegou junto dele, viu-o
e moveu-se de compaixão.
Aproximou-se, cuidou de suas chagas,
derramando óleo e vinho,
depois colocou-o em seu próprio animal,
conduziu-o à hospedaria
e dispensou-lhe cuidados.

No dia seguinte tirou dois dinheiros
e deu-os ao hospedeiro, dizendo:

`Cuida dele,
e o que gastares a mais,
em meu regresso te pagarei'.

Qual dos três",

- pergunta então Jesus -,

"em tua opinião,
foi o próximo do homem
que caíu nas mãos do assaltante?"

Lucas 10, 30-36

O sentido literal desta parábola é tão claro e tão evidente que ela sequer parece ser uma parábola, mas apenas a narração de um exemplo a ser imitado. Jesus parece querer dizer que, quando vemos o próximo em dificuldade, podemos fingir que nada vemos e passar adiante, ou então podemos parar o que estamos fazendo e, por amor do próximo, socorrê-lo. A parábola, pois, parece querer ensinar que todos nós devemos agir como o bom samaritano; ademais, foi assim que, mais adiante, o mesmo Evangelho de São Lucas narra que o estudioso da Lei de Moisés diz ter entendido o significado desta parábola (Lc. 10, 39), e é assim que quase todos a entendem quando a lêem. E é assim porque é isto mesmo o que ela de fato significa. Trata-se, porém, apenas do seu sentido literal.

Além deste sentido, diz Hugo de S. Vitor, é evidente que há outro sentido mais profundo nesta parábola proposta por Jesus, um sentido que não foi apreendido pelo estudioso da Lei de Moisés, um sentido significado não pelas palavras, mas pelas coisas significadas pelas palavras.

Jerusalém, diz Hugo de S. Vitor, significa a "contemplação das coisas do alto"; quanto à viagem, esta significa o pecado, e Jericó "a miséria mundana", ou mesmo o inferno:

"Este homem, portanto",

continua Hugo,

"que descia de Jerusalém a Jericó
e foi assaltado pelos ladrões
designa o próprio gênero humano"
(36).

Na seqüência da história, o homem que abandona as coisas do alto e segue pelo caminho que conduz a Jericó é assaltado no caminho pelos ladrões, despojado de suas vestes, espancado e abandonado semi morto. Estes ladrões, diz Hugo, "são os demônios" que despojaram o homem das "vestes da imortalidade e da inocência" e o feriram gravemente pelo pecado.

De fato, continua Hugo, Deus havia feito o homem

"à sua imagem e semelhança,
conforme diz o primeiro capítulo do Gênesis.

Fê-lo à sua imagem segundo a inteligência,
à sua semelhança segundo o amor,
para que,
dirigindo-se a Deus por ambas estas coisas,
alcançasse a felicidade.

Mas o demônio,
invejando a felicidade do homem,
contra estes dois bens primordiais
conduziu o homem a dois males principais.

Feriu o homem que tinha sido feito
à imagem de Deus segundo a inteligência
com a ignorância do bem;
tendo ele também sido feito à semelhança de Deus,
feriu-o com o desejo do mal.

Desta maneira,
depois de despojá-lo e ferí-lo,
abandonou-o semi morto na estrada"
(37).

O sacerdote e o levita que passaram e viram o homem ferido e despojado de suas vestes, continua Hugo,

"são os pais do Antigo Testamento,
(isto é, os profetas e os homens justos
que viveram antes de Cristo),
que passaram pelo estado da vida presente
vivendo santamente,
mas que não conseguiram curar o gênero humano
ferido pelo pecado"
(38).

Já o samaritano, homem natural de um povo que vivia ao norte da Palestina e era odiado pelos judeus, que vendo ao pobre homem, moveu-se de compaixão, aproximou-se dele e cuidou de suas feridas derramando sobre elas óleo e vinho, representa o próprio Cristo, rejeitado e crucificado pelos judeus, que veio socorrer ao homem caído pelo pecado

"tanto pelos seus ensinamentos
como expiando sua culpa na cruz"
(39).

A hospedaria à qual o samaritano conduziu o pobre homem, continua Hugo, é a Igreja, à qual Cristo confiou a salvação dos homens, e o estalajadeiro são todos aqueles que nela governam e ensinam. Somente no dia seguinte, porém, é que o samaritano confiou o homem aos cuidados do estalajadeiro, isto é,

"depois de realizado primeiro
o mistério da Redenção"
(40).

Ao confiar à Igreja os cuidados para com os homens feridos pelo pecado, Cristo entregou-lhes "dois dinheiros", isto é,

"a ciência e a graça de ensinar
o Antigo e o Novo Testamento"
(41).

"E tudo o que gastares a mais", acrescenta o Cristo, "em meu regresso eu te pagarei". Isto significa, continua ainda Hugo, que aqueles que ensinam, ao tratarem do doente,

"não apenas pregam aquilo
que está nos dois Testamentos,
mas ensinam também muitas outras coisas
que elaboram de acordo com o que está escrito
nestes dois Testamentos
para que sejam manifestadas aos outros.

O Cristo distribuíu-lhes a graça de ensinar,
e assim, com os homens aos quais devem doutrina,
não gastam apenas o dinheiro que lhes foi confiado pelo Cristo,
isto é,
narrando a simples letra dos dois Testamentos,
mas ensinando incessantemente inúmeras outras coisas que,
mediante o auxílio da graça,
são elaboradas pela contemplação
e diligentissimamente dispostas pelo coração.

Desta maneira, no dia do Juízo,
quando o Senhor voltar,
dará o prêmio a cada um segundo os seus méritos"
(42).

Digno de nota, nesta última passagem , é a expressão de Hugo:

"mediante o auxílio da graça,
elaboradas pela contemplação
e diligentissimamente dispostas pelo coração".

É novamente a marca inconfundível da espiritualidade vitorina, que aparece e reaparece de mil maneiras, e que nos faz lembrar outra passagem semelhante da profecia de Malaquias:

"E agora esta é, ó sacerdotes,
a ordem que se vos intima:
se não me quiserdes ouvir,
diz o Senhor,
eu vos mandarei a indigência
e amaldiçoarei as vossas bênçãos,
porque não pusestes as minhas palavras
sobre o vosso coração.
Pois os lábios dos sacerdotes
serão os guardas da ciência,
e de sua boca se há de aprender a lei,
porque ele é o anjo do Senhor".

Mal. 2,1-2; 2,7

Tudo isto é, portanto, o que significa a parábola do bom samaritano segundo o sentido mais profundo do significado das coisas significadas pelas suas palavras.

Alguém poderia objetar que, apesar da beleza desta interpretação, ela não passa de pura fantasia, e que nem Jesus que narrou a parábola, nem São Lucas que a colocou por escrito, nem o Espírito Santo que inspirou S. Lucas pensaram neste possível sentido que suas palavras poderiam ter. Foi Hugo de S. Vitor, ou talvez Santo Agostinho, que parece ter sido o primeiro a levantar esta interpretação da parábola do bom samaritano (43), que teriam inventado este sentido para a parábola.

A discussão a respeito de se este sentido da parábola do bom samaritano foi inventado por S. Agostinho ou por Hugo de S. Vitor ou foi verdadeiramente intencionada pelo autor das Sagradas Escrituras e, portanto, não inventada mas lida por Hugo e Agostinho que tinham aprendido a fazê-lo não apenas nas palavras mas também nas coisas, poderia tornar-se interminável se não fosse o detalhe do itinerário escolhido por Jesus para a viagem do pobre homem.

A desventurada vítima dos assaltantes, diz a parábola, havia saído de Jerusalém e se dirigido a Jericó. Jerusalém, o ponto de partida, é a cidade mais alta da Palestina, situada no alto do monte Sião, sede do templo de Salomão e do culto judaico, cujo nome significa "Cidade da Paz", onde o Cristo iria operar a redenção do gênero humano e subir aos céus, de onde os apóstolos partiram para pregar o Evangelho a todos os povos, cidade já considerada sagrada pelos judeus desde muitos séculos antes de Cristo. Para o povo judeu, Jerusalém é a cidade que mais perfeitamente pode significar tudo quanto há de sagrado, e ainda hoje esta cidade traz à mente de cristãos e de muçulmanos significados semelhantes. Se Jesus queria escolher para sua parábola alguma cidade que significasse as coisas do alto, não poderia ter escolhido outra melhor do que Jerusalém.

Jericó, por outro lado, é a cidade mais baixa do Oriente Médio; ela fica em uma região desértica, num local de clima sufocante, em uma depressão situada 300 metros abaixo no nível do mar às margens do Mar Morto. Na verdade, sabe-se hoje que Jericó é a cidade mais baixa de todo o planeta e, se não fosse o relevo das montanhas da Palestina, ela já deveria estar submersa debaixo de uma camada de algumas centenas de metros de água a uma profundidade que nem a luz do Sol conseguiria atravessar. A História, ademais, dava à cidade de Jericó conotações condizentes com a sua geografia. Quando os judeus liderados por Josué entravam para a tomada da terra prometida, Jericó foi a primeira e a mais espetacularmente cidade conquistada pelo povo escolhido, e foi também a mais severamente tratada. Além de arrazá-la inteiramente até os seus fundamentos, os israelitas haviam recebido ordens de Deus para que sequer um só objeto lhe fosse tomado como despojo. Ao contrário da tomada de outras cidades, em Jericó tudo deveria ser implacavelmente queimado; os objetos de metal que não podiam ser destruídos pelo fogo deveriam ser consagrados unicamente ao culto divino. Os imensos muros da cidade desabaram repentinamente diante dos judeus que a cercavam sem que ninguém lhes tivesse atirado sequer uma pedra. Com os seus habitantes tomados pelo pavor, os israelitas, dizem as Escrituras,

"tomaram a cidade,
mataram tudo o que nela havia,
desde os homens até às mulheres,
desde as crianças até aos velhos.
Passaram ao fio da espada os bois,
as ovelhas e os jumentos;
puseram fogo à cidade a tudo o que nela havia".

Jos. 6,20-21; 6,24

O jovem Acan, por ter desobedecido às ordens de Deus e ter tomado às escondidas como despojo da conquista uma capa de escarlate, alguma prata e uma barra de ouro, foi apedrejado e "tudo o que lhe pertencia foi consumido no fogo" (Jos. 7, 25). Dentre todos os habitantes de Jericó, somente uma prostituta e sua família foi considerada digna de ter sua vida poupada. Depois da cidade ter sido inteiramente destruída, Josué ainda pronunciou uma maldição sobre aquele que viesse a reedifica-la, mais especificamente sobre aquele que tornasse a lhe lançar os fundamentos e sobre aquele que viesse a lhe por novamente as portas (Jos. 6, 26). Quatrocentos anos mais tarde, Hiel de Betel decidiu reerguer Jericó; conseguiu seu intento, mas um outro livro das Sagradas Escrituras registra que, ao lançar os fundamentos da cidade e ao ter posto as suas portas, cumpriu-se também nele a maldição pronunciada por Josué quatro séculos antes (I Reis 16, 34). Por todas estas razões, se existisse para um israelita algum lugar em toda a terra que pudesse significar o pecado, a miséria humana, a queda do homem ou o inferno, este lugar era Jericó.

Diante destes dados cabe-nos agora perguntar como se explica, se a parábola do bom samaritano não tem este outro sentido que nos é descrito por Santo Agostinho e Hugo de S. Vitor, que entre todas as cidades possíveis para serem o ponto de partida e de chegada do viajante, Jesus tenha escolhido justamente Jerusalém e Jericó?

Nesta parábola, por outro lado, temos um exemplo de uma significação das coisas que é mais profunda do que a significação das palavras. Segundo o sentido literal das palavras, aquele sentido com que foi entendida pela primeira vez pelo estudioso da Lei que a tinha ouvido dos lábios de Jesus, a parábola quer ensinar que amar ao próximo significa agir como o bom samaritano e compadecer-se dos feridos e dos doentes. Esta interpretação é correta, pois ao ouvi-la da boca do estudioso da Lei, Jesus lhe respondeu que, assim como ele a havia entendido, "fosse e fizesse o mesmo" (Lc. 10, 37).

Mas, segundo o sentido significado pelas coisas significadas pelas palavras, Jesus nos ensina uma maneira mais elevada de amar ao próximo. Amar ao próximo, neste outro sentido, não significa agir como o bom samaritano, mas sim agir como o estalajadeiro. E isto não se pode fazer sem pressupor a hospedaria, que é a Igreja, e o Cristo, que é o bom samaritano. Neste outro sentido mais elevado de amar ao próximo é ao Cristo que cabe a parte principal, o homem apenas servindo-lhe de auxiliar em sua missão e completando o que ele iniciou. A missão do Cristo é, neste caso, "a obra da restauração humana" a que Hugo tantas vezes se refere, feridos como estão pela ignorância do bem e pelo desejo do mal. Mais ainda, Hugo de S. Vitor insinua na sua interpretação da parábola do bom samaritano que o homem pode cooperar com esta missão do Cristo maximamente pelo ensino. Não se trata, porém, de qualquer forma de ensino, mas daquele ensino que procede da contemplação, pois diz Hugo que a tarefa de ensinar foi confiada à Igreja através da graça, a qual normalmente se adquire através da oração e da contemplação que procede da caridade. E ensinar deste modo, diz Jesus no Evangelho, é a maior prova de amor; é assim que se encerram os quatro Evangelhos (Mt. 28,20; Mc. 16,15; Lc. 24,47; Jo. 21,15-17), e também foi esta a regra de vida que os apóstolos tomaram para si:

"Não nos convém abandonar
a palavra de Deus
para servir às mesas",

disseram os apóstolos.

"Procurai alguém que possa ser colocado
na direção deste ofício;
quanto a nós,
permaneceremos assíduos
à oração e ao ministério da palavra".

At. 6, 4



Referências

(36) Hugo S.Vitor: Allegoriae Utriusque Testamenti, NT, L. IV, C. 12; PL 175, 814-5.
(37) Ibidem: loc. cit.. (38) Ibidem: loc. cit.. (39) Ibidem: loc. cit.. (40) Ibidem: loc. cit.. (41) Ibidem: loc. cit.. (42) Ibidem: loc. cit..
(43) S.Agostinho: Quaestiones Evangeliorum Libri II, L. II, C. 19; PL 35, .