VIII.2.

As cinco vias para a demonstração da causa primeira.

A alguns poderá parecer surpreendente que nos refiramos à demonstração da existência de uma causa primeira em termos que sugerem tratar-se de algo tão complexo, e que gastemos muitas páginas de um inteiro capítulo para produzir apenas alguma centelha de evidência da existência desta causa primeira, com receio de entrar no tema mais profundamente para não transformar este trabalho em um tratado de Metafísica. Se o assunto é tão complexo, como se explica que Santo Tomás de Aquino expôs, em algumas poucas páginas do início da Summa Theologiae, não uma, mas cinco vias ou cinco demonstrações da existência desta causa? Cada uma destas demonstrações não ocupa mais do que umas poucas linhas. Em uma ou duas páginas, portanto, parece poder demonstrar-se a existência da causa primeira não só de uma, mas de cinco maneiras diferentes. Como então podemos dizer que vamos gastar um capítulo inteiro deste trabalho sem chegar a desenvolver integralmente sequer uma só?

Para responder a esta pergunta é preciso examinar mais atentamente o próprio texto de Tomás de Aquino.

Constata-se, em primeiro lugar, que na exposição das cinco vias S. Tomás usa expressões filosóficas sem se dar ao trabalho de explicá-las; deduz-se daí que evidentemente ele supõe um leitor que conheça bem filosofia.

É verdade que no prólogo da Summa Theologiae S. Tomás diz que a obra se destina a principiantes:

"Já que o doutor da verdade católica
deve instruir não somente os aproveitados,
mas também os principiantes,
o propósito de nossa intenção nesta obra
é tratar das coisas que pertencem à religião cristã
segundo convém ao ensino dos principiantes".

A obra, pois, se destina ao ensino dos principiantes, mas tratam-se de principiantes em Teologia, não em filosofia, pois desde o início da Summa Santo Tomás emprega termos filosóficos cujo entendimento não é imediato, antes, envolve conhecimento prévio de filosofia, e faz isto sem dar qualquer explicação dos mesmos, usando-os na medida em que os mesmos vão se fazendo necessários sem qualquer ordem ou graduação de dificuldade.

Para entender a natureza da exposição das cinco vias, ademais, deve-se considerar que a demonstração da existência de uma causa primeira é muito mais uma tarefa da filosofia do que da Teologia. Ao teólogo interessa saber como a filosofia pode dar esta demonstração, de quantas maneiras pode fazê-lo e com base em que argumentos; desdobrar, porém, esta argumentação em seus detalhes é um problema eminentemente filosófico e não teológico. Por isso as cinco vias descritas no início da Summa Theologiae não são desenvolvimentos completos destas demonstrações, mas uma exposição dos princípios sobre as quais elas se baseiam. Em sua essência são completas; supondo um leitor perfeitamente versado em filosofia, são capazes de produzir a evidência do que se pretende demonstrar. Mas para quem não conhece filosofia mais a fundo, elas mais parecem simples argumentos prováveis destituídos de verdadeira força demonstrativa.

É preciso, ademais, levar em conta que na época de Santo Tomás de Aquino havia uma opinião muito difundida segundo a qual a existência da causa primeira era uma verdade evidente que não necessitava nem podia ser demonstrada justamente porque as coisas evidentes não podem ser objeto de demonstração. Por causa disso é que, antes da exposição das cinco vias, na Summa Theologiae, Tomás apresenta uma demonstração de que a existência da causa primeira não é coisa evidente (2); e, na Summa contra Gentiles, antes das demonstrações da existência de Deus, Tomás usa dois capítulos para discutir as opiniões dos que afirmavam ser evidente sua existência e explicar porque seus argumentos careciam de fundamento (3).

Ademais, na Summa contra Gentiles, ele também afirma que

"esta opinião,
(isto é, a de que a existência de uma causa primeira
é algo evidente que não necessita de demonstração),
tem sua origem em parte no costume,
porque os homens se acostumaram
desde o princípio de suas vidas
a ouvir o nome de Deus e a invocá-lo.
Ora, o costume, e principalmente
o costume que provém desde o princípio,
adquire força de natureza;
disto resulta que as coisas
de que somos imbuídos desde a infância
acabam por possuir tanta firmeza
que nos parecem
coisas naturalmente conhecidas e evidentes"
(4).

Considerando, pois, o objetivo de conjunto da Summa Theologiae, que não era o de demonstrar a existência de Deus, mas de um modo acessível aos principiantes em Teologia expor

"a profundidade dos mistérios da fé
e a perfeição da vida cristã"
(5),

e considerando estas disposições de que seus contemporâneos estavam imbuídos, segundo a qual mais deviam ser convencidos que a existência da causa primeira não era evidente do que do contrário, fica claro que existem mais estes outros motivos para que na abordagem das cinco vias Tomás se tivesse limitado a apontar apenas genericamente quais os fundamentos em que se baseiam as demonstrações de que ele trata do que em desenvolver plenamente as mesmas.

Deste modo, tal como são expostas, as cinco vias podem ser comparadas a uma comunicação sobre uma técnica cirúrgica apresentada em um Congresso de Medicina; toda a técnica está ali contida, mas somente um médico, ainda que em cirurgia seja um principiante, será capaz de realizar a cirurgia apenas ouvindo aquela breve comunicação; o leigo que tenha estado presente à comunicação, mesmo que não tivesse tido dificuldade em entender o sentido dos termos usados, não conseguiria fazer com ela o que o comunicante pretendia que se fizesse.



Referências

(2) Summa Theologiae, Ia, Q. 2 a.1.
(3) Summa contra Gentiles, I, 10-11.
(4) Idem, I, 11.
(5) Summa Theologiae, IIIa, Q. 71 a.4 ad 3.
(6) I Sententiarum, d. 35 Q. 1 a.1.