APÊNDICE AO CAPÍTULO IIº

Notas sobre a
Teoria da Causalidade




Segundo Aristóteles há quatro tipos de causas, que são a causa formal, a causa material, a causa eficiente e a causa final.

Por detrás desta afirmação esconde-se uma elaboradíssima concepção sobre a natureza da causalidade de que a seguir faremos um breve apanhado, dada a freqüência com que o tema aparece neste trabalho.

1. Causa Formal.

A causa formal é aquela que faz cada coisa ser o que é, isto é, a forma da coisa, por oposição à matéria.

Em uma estátua, por exemplo, quando ela é esculpida pelo homem, as disposições introduzidas no mármore pelo escultor são causa da estátua por modo de forma, sendo aquilo que fazem a estátua ser a obra de arte que ela é; já o mármore é causa da estátua por modo de matéria.

Este exemplo, porém, não passa de uma analogia para uma compreensão inicial. Na verdade, antes da estátua ser esculpida, o mármore já era alguma coisa: era uma pedra de mármore. Portanto, já possuía uma causa formal que fazia com que fosse mármore; o trabalho do escultor não acrescentou à forma já existente do mármore senão uma forma acidental, por contraposição à forma substancial que já existia.

A diferença entre a forma acidental e a forma substancial é que a forma acidental sempre se acrescenta a um sujeito já existente; a forma substancial, entretanto, isto é, a forma propriamente dita, unindo-se com a matéria primeira de que todos os seres corpóreos são feitos, não se acrescenta a um sujeito, mas forma o próprio sujeito.

Na doutrina de Aristóteles, portanto, todos os seres corpóreos que se observa na natureza são compostos de matéria e forma. As transformações que se observam nos seres naturais são a passagem, na matéria primeira, da privação de uma forma substancial a esta forma substancial ou vice-versa; ou, em um sujeito já composto de matéria e forma, da privação de uma forma acidental a esta forma acidental ou vice versa.

2. Causa material.

A causa material é a própria matéria de que são constituídos os seres corpóreos, por oposição à forma.

No exemplo da estátua, o mármore de que é feito uma estátua é causa da estátua pelo modo de matéria.

Trata-se, porém, novamente, apenas de uma analogia para uma compreensão inicial do que seja a causa material. O mármore, na realidade, não é a matéria da estátua, mas um sujeito já composto de matéria primeira e forma substancial, que receberá uma forma acidental que o tornará estátua. Esta forma acidental da estátua está para o sujeito que é o mármore de modo análogo como a matéria primeira está para a forma substancial que faz o mármore ser mármore.

A matéria primeira que constitui todos os corpos é a ausência total de forma; como tal, ela é pura indeterminação, justamente porque totalmente isenta de qualquer forma, que é o que a faria ter alguma determinação de ser tal ou qual gênero de ser.

Por não ter recebido ainda uma forma, a pura matéria é ser apenas potencialmente, porque pode se tornar tal ou qual ser se receber uma forma substancial que a determine.

Não existe matéria pura na natureza, porque se existisse, sua existência já implicaria uma determinação advinda da forma, e, portanto, não seria matéria pura.

Os cinco sentidos do homem somente são capazes de apreender as formas acidentais; portanto, a realidade da matéria primeira dos corpos existente sob a forma substancial não pode ser apreendida diretamente pelos sentidos humanos. Pela mesma razão, tampouco pode ser detectada por instrumentos de laboratório, quaisquer que sejam, por uma necessidade intrínseca; tais instrumentos são apenas um prolongamento e uma extensão dos cinco sentidos do homem, e, portanto, apenas podem detectar as formas acidentais.

Os cinco sentidos do homem e os instrumentos de laboratório também não podem apreender diretamente a forma substancial dos corpos; no caso do mármore, a forma substancial é aquilo que por primeiro traz o mármore ao ato de ser; o que lhe dá depois extensão, cor, temperatura, etc., tudo isto são formas acidentais. Somente estas últimas podem ser apreendidas pelos sentidos.

Quem poderia apreender a forma substancial seria a faculdade da inteligência, se a inteligência pudesse se dirigir diretamente aos entes existentes fora do homem. Entretanto, isto é vedado à inteligência humana; por estar unida a um corpo, o objeto com que a inteligência humana trabalha em suas operações é o material fornecido pela imaginação, que é um prolongamento interno no homem do trabalho dos cinco sentidos: é a partir do material fornecido pela imaginação que a inteligência abstrai suas idéias. Os cinco sentidos, porém, somente captam as formas acidentais; daí que até a existência da forma substancial tem que ser deduzida de modo indireto pela inteligência. Com muito maior razão a matéria primeira.

3. Causa eficiente.

A causa eficiente é aquela que é o princípio do movimento e do repouso nos seres.

Movimento e repouso não se entendem aqui apenas do ponto de vista do movimento segundo o lugar, mas de modo amplo, no sentido de qualquer alteração pela qual na matéria há uma passagem de uma privação de uma dada forma substancial para a presença desta forma substancial, ou num sujeito há uma passagem de uma ausência de determinada forma acidental para a presença desta forma acidental.

Diz-se estar em potência aquilo que pode ser, mas que todavia ainda não é.

Diz-se estar em ato aquilo que de fato já é.

A matéria ou um sujeito privado de uma forma são algo que pode ser, se vierem a receber esta forma, mas que, por não a terem recebido, ainda não são. A matéria ou o sujeito privado de uma forma, são, portanto, entes em potência em relação a esta forma. A matéria ou o sujeito que receberam uma determinada forma já não são algo que pode ser, mas que já são, pelo menos no que diz respeito a esta forma recebida. São, portanto, entes em ato em relação à forma recebida.

De modo que, em uma conceituação mais ampla, em todo movimento temos uma passagem da potência ao ato.

Pelo fato de que a matéria é por si indeterminada mas pode vir a ser tal ou qual ser se receber uma forma, a matéria é dita pura potência. E pelo fato de que a forma é o que faz o composto de matéria e forma ser em ato, é também dita ato.

Ora, observa-se que a toda forma se segue uma operação própria: o fogo esquenta, o peso cai, a inteligência apreende, a luz ilumina, etc.. Por outro lado, à pura matéria não se pode seguir nenhuma operação própria, pois, se este fosse o caso, ela já possuiria alguma determinação. Se possuisse alguma determinação, a operação própria se seguiria a esta determinação; mas esta determinação é a forma; portanto, se à matéria se seguisse alguma determinação, esta se deveria à forma; de onde que se conclui que é à forma que se seguem as operações próprias dos entes.

Esta fundamentação toda vem com o propósito de mostrar que a causa formal e a causa material não podem ser, elas sozinhas, explicação suficiente do movimento. A estas duas primeiras causas deve- se acrescentar necessariamente a causa eficiente.

Por que?

Porque em todo movimento ocorre uma passagem da potência ao ato. Ora, o que está em potência não pode passar ao ato por si só. A matéria é potência pura; se ela pudesse por si só passar ao ato, ela já teria, por isso mesmo, alguma determinação. Não seria mais, portanto matéria pura.

Segue-se que, para passar ao ato, a matéria já necessita de alguma determinação, ou seja, de alguma forma. Já vimos acima que a toda forma segue-se uma operação própria; esta operação própria que se segue a toda forma é a determinação necessária à matéria para que ela possa passar da potência ao ato.

Mas esta determinação que a potência necessita para passar da potência ao ato, que só lhe pode advir por alguma forma, não pode lhe advir da forma que irá ser engendrada nesta matéria, pois esta forma ainda não existe. Segue-se que terá de vir de outra forma que lhe seja externa e já em ato, como toda forma.

Portanto, para que haja movimento, é necessário a ação própria de uma forma externa ao ente submetido ao movimento; esta forma externa, -externa, pelo menos, quanto à essência, não quanto à localização-, será a da causa eficiente deste movimento.

Portanto, para que a potência passe ao ato é necessário outro ser em ato; e para todo movimento é necessária uma causa eficiente.

A argumentação assim exposta, baseada no exemplo da matéria pura,vale também para o caso da matéria já integrante de um composto de matéria e forma, ou do próprio composto entendido como um sujeito de uma forma acidental; pois, embora esta matéria integre um corpo já em ato, em relação à nova forma que vai ser engendrada, ela ainda está em potência.

Portanto, para existir movimento é sempre necessário, segundo a filosofia de Aristóteles, a existência de um agente externo que lhe seja a causa; este agente será causa na medida em que está em ato; este agente é o que se chama de causa eficiente.

4. Causa final.

A causa final é aquela que é princípio de movimento e de repouso por modo de fim.

S. Tomás e Aristóteles dão uma primeira explicação do que seja a causa final nestes termos:

"Ao perguntarmos por que alguém caminha,
respondemos convenientemente ao dizer:

`para que ganhe saúde'.

E, assim respondendo,
opinamos ter colocado a causa.
De onde que é patente que o fim é causa".

À primeira vista tal explicação parece uma simples ingenuidade. Mas o fato é que pode-se mostrar que a existência de uma causa eficiente exige a existência de uma causa final.

Quando a causa eficiente é um ser inteligente, um ser, portanto, dotado de vontade, é evidente a existência de uma causa final, pois os agentes inteligentes agem movidos pela vontade, e a vontade tende por natureza a um fim.

Existem também casos evidentes de agentes não inteligentes que agem tendo em vista um fim. Quando uma flecha é arremessada contra um alvo, o alvo é a causa final do movimento da flecha; embora a flecha não a conheça, foi movida por um agente inteligente que a conhecia.

Mas a verdade é que, dizem Aristóteles e S. Tomás, na natureza todos os agentes movem em direção a um fim, quer o conheçam, quer não o conheçam.

A razão é que, conforme explicamos na teoria da causalidade eficiente, a passagem da potência ao ato exige a intervenção de um agente que age em virtude de sua própria forma; ora, a cada forma se segue uma operação própria, de modo que esta forma já tem em si determinada uma direção em que irá operar. Esta direção é a causa final, quer o agente a conheça, quer não a conheça. Quando um ser inteligente age tendo em vista um fim, ele também está fazendo isto por uma operação que se segue a uma forma apreendida em sua inteligência; a causalidade final se segue à operação própria de uma forma exigida pela causalidade eficiente. A diferença é que, quando o agente é voluntário, ele conhece o fim; quando não, ele não o conhece.

A existência de uma causalidade final na natureza pode ser estabelecida pelo fato de que todos os movimentos na natureza se dão sempre ou na maior parte das vezes do mesmo modo: o fogo sempre esquenta, a pedra sempre cai, o botão da rosa sempre desabrocha, o Sol sempre ilumina, etc..

"Deve-se ter em mente, portanto",

diz S. Tomás no Comentário à Física,

"que sempre todo agente age em vista de um fim,
aja ele pela natureza ou pelo intelecto"
(1).

"As coisas que acontecem
sempre ou freqüentemente
o são pela natureza
ou pelo que é proposto pelo intelecto.
Portanto, nas coisas que acontecem
sempre ou freqüentemente,
estas coisas acontecem
tendo em vista um fim"
(2).

Por que, então, alguns agentes conhecem o fim enquanto outros não?

"É preciso que conheçam o fim
aqueles agentes cujas ações não estão determinadas,
mas que podem, ao contrário,
dirigir-se a extremos opostos,
como ocorre nos agentes voluntários;
portanto, é necessário para estes
que conheçam o fim,
pelo qual determinam suas ações.
Por outro lado,
entre os agentes naturais,
as ações já estão determinadas:
não tem, portanto,
necessidade de escolher entre as coisas
que são meios de alcançar o fim.

Por esta razão,
é possível que o agente natural
tenda sem deliberação a um fim,
caso em que tender a um fim não significa
senão que ele tem inclinação natural a algo"
(3).

Por tudo isto que se explicou, é evidente que as causas têm que ser quatro: material, formal, eficiente e final.

5. Sorte e acaso.

Quatro são, pois, os gêneros de causas. Entretanto, é necessário ainda acrescentar algo muito importante: na filosofia de Aristóteles é possível um agente causar por acidente uma transformação para a qual ele não era movido por causalidade final. Quando isto ocorre, diz-se que o efeito ocorreu por acaso; ou, quando o agente era uma causa inteligente, o acaso também recebe o nome de sorte. Nestes casos, acaso e sorte são ditos causas por acidente; os efeitos terão, de fato, uma causa eficiente, mas que não causará estes efeitos per se, mas por acidente.

O efeito per se de uma causa natural é aquele que se lhe segue de acordo com as exigências de sua forma; o efeito per se de uma causa inteligente é aquilo que ocorre tendo em vista a intenção do agente; ambos estes tipos de causas podem causar um efeito por acidente quando se tratarem de efeitos que estejam unidos acidentalmente ao efeito causado per se pelo agente. Por exemplo, quando um construtor é causa de uma guerra se a guerra for conseqüência da construção de uma residência (4). O efeito per se do construtor é apenas a residência; a guerra estava unida à construção da residência apenas por uma circunstacialidade, para além da causalidade final que movia o construtor.

Isto não significa, por outro lado, que nos efeitos por acidente não estejam envolvidos, dentro de uma outra linha de causalidade, todos os quatro gêneros de causa per se considerados. A simples construção de uma casa não seria suficiente para provocar sozinha uma guerra; a guerra provocada por acidente pela construção da casa teve que ter uma outra causa eficiente per se, à qual correspondesse necessariamente uma causa final. Isto é, o puro acaso não existe; é acaso apenas por referência à causa por acidente, mas supõe sempre, dentro de uma outra linha paralela de causalidade, a existência dos quatro gêneros de causas per se consideradas.

Na casualidade costuma ocorrer, entretanto, que as coisas que se dão pela sorte ou pelo acaso, ou seja, além do âmbito da causa final em uma determinada linha de causalidade, possam ser reduzidas a alguma causa superior que ordena as causas inferiores que pareciam operar por acaso. Quando isto ocorre, do ponto de vista da causa superior, a aparente casualidade do efeito das causas inferiores já não pode mais ser vista como um verdadeiro acaso; isto passa a se dever não à existência de causas per se que operavam em uma linha paralela de causalidade, mas à própria linha de causalidade que parecia operar por acaso apenas porque a análise se limitava à ação das causas inferiores (5).

Tal é, em rápidos traços, a teoria das causas segundo Aristóteles; foi tratada em um apêndice por não ser propriamente assunto que diga respeito à educação, tema deste trabalho; mas teve que ser tratado de alguma maneira devido ao uso constante destes conceitos que pervadem toda a filosofia de Aristóteles e de Santo Tomás de Aquino.



Referências

(1) In libros Physicorum Commentaria, L. II, l. 8, 211. (2) Idem, L. II.
(3) De principiis naturae Opusculum.
(4) In libros Physicorum Commentaria, L. II, l. 8, 214.