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Trasladação do corpo de S. Domingos e sua canonização.Haviam decorrido doze anos depois da morte de S. Domingos. Deus manifestara a santidade do seu servo por uma infinidade de milagres operados no seu túmulo ou devidos à invocação do seu nome. Viam-se sem cessar doentes rodeando a lousa, que cobria os seus restos, passarem ali dias e noites e retirarem-se glorificando-o pela cura obtida. Quadros suspensos das paredes próximas comemoravam os benefícios por ele conferidos, e os sinais da veneração popular não diminuíam com o tempo. Todavia uma nuvem cobria os olhos dos religiosos, e entretanto que o povo enaltecia o seu fundador, eles, os seus filhos, longe de se ocuparem da sua memória, pareciam esforçar-se por lhe toldar o brilho. Não só se não ocupavam de ornar o seu túmulo; como também receando que os acusassem de se aproveitarem e procurarem lucrar com o culto que já então lhe prestavam, arrancavam das paredes as imagens que ali colocavam. Afligiam-se alguns com este modo de proceder, sem se atreverem a opor-se. Aconteceu mesmo que crescendo cada vez mais o numero dos religiosos, viram-se obrigados a deitar abaixo a antiga igreja de Saint Nicolas, para construírem outra nova, e a sepultura do santo patriarca ficou a descoberto, exposta à chuva e a todas as intempéries das estações. Este espectaculo impressionou muitos dos religiosos e entre si deliberavam sobre o modo de transportar essas preciosas relíquias para um lugar mais conveniente, mas pensavam não poder fazê-lo sem a autoridade do pontífice romano.
diz o bem-aventurado Jordão de Saxe,
Prepararam pois os religiosos um novo túmulo, mais digno de seu pai, e enviaram alguns dentre eles ao soberano pontífice para o consultar. Era o velho Ugolino Conti quem então ocupava o trono pontifical sob o nome de Gregório IX. Recebeu muito asperamente os religiosos, e exprobou-lhes o terem descurado tanto tempo as honras devidas ao seu patriarca.
acrescentou ele,
Queria mesmo, vir ele próprio em pessoa assistir, à sua trasladação; mas impedido pelos deveres do seu cargo, escreveu ao arcebispo de Raverina para que fosse com os seus sufragâneos a Bolonha assistir à cerimônia. Era o dia de Pentecostes do ano de 1223. O capítulo geral da ordem achava-se reunido em Bolonha, sob a presidência de Jordão de Saxe, imediato sucessor de S. Domingos no generalato. O arcebispo de Ravenna, cumprindo as ordens do Papa, estava também na mesma cidade, assim como os bispos de Bolonha, de Brescia, de Modena e de Tournay. Haviam acorrido ali de todos os países mais de trezentos religiosos. Grande numero de nobres e de cidadãos ilustres das cidades circunvizinhas enchiam as hospedarias. O povo todo estava em expectativa.
diz o bem aventurado Jordão de Saxe, os religiosos
Atormentados com essa idéia, pensaram em abrir secretamente o túmulo do santo; mas Deus tal não permitiu. Ou fosse por suspeitar em os seus projetos, ou para melhor constatar a autenticidade das relíquias, o magistrado de Bolonha mandou que ficassem de guarda dia e noite ao sepulcro uma força armada. Todavia para mais livremente poderem fazer o reconhecimento do corpo, e para evitar no primeiro momento a confusão do imenso povo que enchia Bolonha, combinou-se abrir o sepulcro de noite. A 24 de maio, no segundo dia depois da Pentecostes, antes de amanhecer, reuniram-se à luz dos archotes em torno da humilde lousa que, durante doze anos, cobrira os restos de S. Domingos, o arcebispo de Raverina e os outros bispos, o mestre geral da ordem com os definidores do capitulo, o magistrado de Bolonha, os principais nobres e cidadãos, tanto de Bolonha como das cidades vizinhas. Na presença de todos, Frei Estevão, prior provincial da Lombardia, e Fr. Rodolfo ajudados por alguns outros Religiosos, começaram a arrancar o cimento que prendia a pedra ao chão. Estava duríssimo, e só com grande dificuldade é que cedeu ás pancadas dos ferros. Quando o acabaram de arrancar, e que as paredes exteriores do túmulo ficaram à vista, Fr. Rodolfo arrombou a alvenaria com um martelo de ferro, e depois ele e outros, servindo-se de alavancas, levantaram com grande custo a pedra superior do monumento. À medida que a levantavam, exalava-se do sepulcro entreaberto um perfume indescritível, um aroma desconhecido excedendo tudo quanto se possa imaginar. O arcebispo, os bispos, e todos os que se achavam Presentes, penetrados de assombro e júbilo, caíram de joelhos chorando e louvando a Deus. Acabaram de tirar a pedra, ficando à vista, no fundo do sepulcro, o caixão de madeira, onde estavam encerradas as relíquias do Santo. Na tampa via-se uma pequena fenda, por onde se exalava abundantemente o perfume que surpreendera os assistentes, e que ainda mais penetrante se tornou, quando tiraram de todo o caixão da cova. Todos se inclinaram para venerar esse caixão precioso, derramando sobre ele lagrimas abundantes acompanhadas de beijos. Por fim arrancando os pregos da parte superior, abriram-no, expondo aos olhos dos seus Religiosos e amigos tudo o que restava de S. Domingos. Eram só os ossos, mas ossos revestidos de gloria e de vida, pelo celeste aroma que deles se exalava. Só Deus sabe a alegria que então trasbordou em todos os corações, e nenhum pincel é capaz de reproduzir essa noite perfumada, esse silencio impressionante, esses bispos, esses cavaleiros, e religiosos, todos esses rostos reluzentes de lagrimas, inclinados sobre um caixão, procurando nele à luz dos ciriais, o grande e santo homem que os contemplava lá dos céus, e correspondia a sua devoção com esses misteriosos amplexos, que pungem a alma de uma felicidade indescritível. Os bispos não julgaram as suas mãos com direito ao privilegio filial de tocarem nos ossos do Santo; deixaram essa consolação e honra aos seus filhos. Jordão de Saxe curvou-se com respeitosa devoção sobre essas relíquias sagradas, e transferiu-as para um caixão novo feito de uma madeira especial. Diz Plínio que essa madeira resiste à ação do tempo. Fecharam o caixão com três chaves, uma das quais entregaram ao Magistrado de Bolonha, a outra a Jordão de Saxe, e a terceira ao prior provincial da Lombardia. Levaram-no em seguida para a capela onde haviam erigido o monumento preparado para receber esse deposito; esse monumento era de mármore, mas sem nenhum trabalho de escultura. Ao amanhecer voltaram os bispos, o clero, os Religiosos, os magistrados e nobres para a igreja de Saint Nicolas, já então invadida por uma imensa multidão de povo e de homens de todas as nações. O arcebispo de Ravenna cantou a missa do dia, que era a de terça feira de Pentecostes e, por uma tocante coincidência, as primeiras palavras do coro foram as seguintes:
O caixão continuou aberto, e espalhava pela igreja uma tão sublime fragrância que se não confundia com os suaves perfumes cio incenso; o som das trombetas, aliava-se ao canto do clero e dos religiosos; uma multidão, infinita de luzes brilhava nas mãos do povo; nenhum coração, por mais rebelde que fosse, podia resistir à casta embriaguez desse triunfo da santidade. Terminada a cerimonia, os bispos depositaram sob o mármore o caixão fechado, para ali esperar em paz e gloria o sinal da ressurreição. Oito dias depois porém, a rogos de muitas pessoas de distinção que não tinham podido assistir à trasladação, foi o monumento de novo aberto. Jordão de Saxe tomou nas suas mãos a cabeça venerável do santo Patriarca, e mostrou-a a mais de trezentos Religiosos que tiveram a consolação de a beijarem, e de conservarem por muito tempo o inefável perfume desse osculo. Porque tudo quanto tocava, nos ossos do Santo, ficava impregnado com a virtude que emanava deles.
diz o bem-aventurado Jordão de Saxe,
Observa aqui Thierry d'Apolda, que mesmo antes do morte do santo, já Deus lhe comunicara esse sinal exterior da pureza da sua alma. Um dia celebrando missa em Bolonha, chegou-se ao pé dele um estudante no momento do ofertório e beijou-lhe a mão. Este mancebo era dado a uma grande incontinência, para a qual provavelmente procurava remédio. Sentiu, ao beijar a mão de S. Domingos, um perfume que lhe revelou subitamente a honra e o gozo dos corações puros, e desse momento em diante, com a graça de Deus, conseguiu vencer todas as suas inclinações corruptas. Os milagres extraordinários que acompanharam a trasladação do corpo de S. Domingos decidiram Gregório IX a não demorar mais tempo o processo da sua canonização. Por carta de 11 de Julho de 1233 encarregou três eclesiásticos eminentes de procederem a um inquérito sobre a sua vida, foram estes: Tancredo, arcebispo de Bolonha, Tomás, prior de Santa Maria do Reno e Palmeri, cônego da Santíssima Trindade. Esse inquérito prolongou-se desde o dia 6 até ao dia 30 de agosto. Os comissários apostólicos examinaram nesse intervalo, sob juramento, o depoimento de nove Frades Pregadores, escolhidos entre os que haviam vivido mais intimamente com S. Domingos. Eram eles Ventura de Verona, Guilherme de Montferrato, Amison de Milão, Bonvisi de Placencia, João de Navarro, Rodolfo de Faenza, Estevão de Espanha, Paulo de Veneza, Frugéri de Penna. Como todas estas testemunhas, excepto João de Navarro, não tinham conhecido S. Domingos durante os primeiros tempos do seu apostolado, julgaram os comissários da Santa Sé necessário estabelecer no Languedoc um segundo centro de inquérito e, para esse fim, delegaram o abade de S. Saturnino de Toulouse, o arcediago da mesma igreja, e o de Saint Etienne. Vinte e seis testemunhas foram examinadas por eles e, além dessas, mais de trezentas pessoas de distinção confirmaram com o seu juramento e com a sua assinatura tudo o que essas testemunhas haviam dito das. virtudes de S. Domingos e dos milagres obtidos por sua intercessão. A data exacta dessa ata não é conhecida; foi nos fins de 1233 ou princípios de 1234. Sendo os depoimentos de Bolonha e Toulouse enviados para Roma, Gregório IX deliberou sobre eles com o Sacro Colégio. Conta um autor contemporâneo que ele disse nessa ocasião referindo-se a S. Domingos:
A bula da canonização, consequência de todos esses atos judiciais é assim concebida:
À exceção de S. Jacinto, Gregório IX foi o ultimo sobrevivente dos grandes homens que tiveram por S. Domingos grande afeto e que concorreram para a realização dos seus projetos. Morreu a 21 de agosto de 1241, na idade de noventa e sete anos, ao cabo de trinta anos de cardinalato e quatorze de pontificado, sem que a majestade dos anos e o esplendor das dignidades nele excedessem o brilho do seu mérito pessoal. Jurisconsulto, homem de letras, negociador, reunia a todos os dons do corpo e do espírito uma alma magnânima, onde couberam a vontade S. Domingos e S. Francisco, ambos por ele canonizados. Nunca se tornará provavelmente mais a ver um só homem rodeado de homens como Azevedo, Montfort, Foulques, Reinaldo, Jordão de Saxe, S. Jacinto, Innocêncio III, Honório III, nem tantas virtudes, tantas nações, e tantos fatos concorrerem para um tão grande fim, num tão curto período. Logo depois da bula da sua canonização não tardou, que o culto de S. Domingo se espalhasse por toda a Europa, chegando em muitos pontos a levantarem- lhe altares. Porém, Bolonha sempre se distinguiu pelo seu zelo pelo grande concidadão que a morte lhe dera. Em 1267, trasladou o seu corpo do túmulo sem escultura onde jazia, para um túmulo mais ricamente decorado. Fez-se esta segunda trasladação pelas mãos do arcebispo de Ravenna, estando presentes vários outros bispos, o capitulo geral dos Frades Pregadores, o magistrado e anciãos de Bolonha. Abriram o caixão, e a cabeça do .Santo, depois de todos os bispos e Religiosos a beijarem, foi exposta ao povo do alto de um púlpito, levantado no adro da igreja de Saint Nicolas. Em 1383, abriu-se o caixão pela terceira vez, e colocou-se a cabeça à parte numa urna de prata, para que os fiéis pudessem mais facilmente gozar da ventura de venerar esse precioso depósito. Finalmente, a 16 de julho de 1473, os mármores do monumento foram novamente substituídos por uma escultura mais perfeita no gosto do decimo quinto século. Eram obra de Nicolau de Bari, e representam diversos factos da vida do Santo. Não os posso descrever. Duas vezes os vi e ambas as vezes contemplando-as de joelhos, senti pela doçura que me inspirou esse túmulo, que uma mão divina guiara a mão do artista, e forçara a pedra a exprimir sensivelmente a incomparável bondade de coração daquele cujas cinzas cobre. Desde então, nunca mais se tocou nessa gloriosa sepultura e nestes três séculos nunca vista humana contemplou os ossos sagrados que ele encerra, nem mesmo a madeira do caixão. O mundo já não é digno de semelhantes espetáculos. Domingos fôra vencido tanto quanto pode ser quando por trezentos anos se defendeu o campo de batalha. Tinha de participar com todos os homens e todas as obras da idade média da ingratidão da posteridade pervertida e esperar com paciência no seu sepulcro selado e mudo essa justiça de dupla vista que nem sempre está na mão dos homens recusar àqueles que os serviram. Já muitos dos seus contemporâneos viram a história restaurar as suas estátuas caídas. Não alimento a esperança de ter obtido um tão belo resultado; o tempo, porém, depois de mim pegará na pena e a ele deixo, sem receio nem ciúme o cuidado de concluir este trabalho. Fim da vida de S. Domingos |