18.

Trasladação do corpo de S. Domingos e sua canonização.

Haviam decorrido doze anos depois da morte de S. Domingos. Deus manifestara a santidade do seu servo por uma infinidade de milagres operados no seu túmulo ou devidos à invocação do seu nome. Viam-se sem cessar doentes rodeando a lousa, que cobria os seus restos, passarem ali dias e noites e retirarem-se glorificando-o pela cura obtida. Quadros suspensos das paredes próximas comemoravam os benefícios por ele conferidos, e os sinais da veneração popular não diminuíam com o tempo. Todavia uma nuvem cobria os olhos dos religiosos, e entretanto que o povo enaltecia o seu fundador, eles, os seus filhos, longe de se ocuparem da sua memória, pareciam esforçar-se por lhe toldar o brilho. Não só se não ocupavam de ornar o seu túmulo; como também receando que os acusassem de se aproveitarem e procurarem lucrar com o culto que já então lhe prestavam, arrancavam das paredes as imagens que ali colocavam. Afligiam-se alguns com este modo de proceder, sem se atreverem a opor-se. Aconteceu mesmo que crescendo cada vez mais o numero dos religiosos, viram-se obrigados a deitar abaixo a antiga igreja de Saint Nicolas, para construírem outra nova, e a sepultura do santo patriarca ficou a descoberto, exposta à chuva e a todas as intempéries das estações. Este espectaculo impressionou muitos dos religiosos e entre si deliberavam sobre o modo de transportar essas preciosas relíquias para um lugar mais conveniente, mas pensavam não poder fazê-lo sem a autoridade do pontífice romano.

"Não há dúvida alguma que,
como filhos,
tinham o direito de dar sepultura a seu pai",

diz o bem-aventurado Jordão de Saxe,

"mas Deus quis que para executarem
esse ato de piedade,
procurassem o apoio de alguém
mais alto do que eles,
para que a trasladação do glorioso Domingos
tomasse um caráter de canonicidade".

Carta Encíclica aos Frades
Atas dos Santos
dos Bolandistas
T.I, Agosto, p. 524.

Prepararam pois os religiosos um novo túmulo, mais digno de seu pai, e enviaram alguns dentre eles ao soberano pontífice para o consultar. Era o velho Ugolino Conti quem então ocupava o trono pontifical sob o nome de Gregório IX. Recebeu muito asperamente os religiosos, e exprobou-lhes o terem descurado tanto tempo as honras devidas ao seu patriarca.

"Conheci",

acrescentou ele,

"esse homem deveras apostólico,
e não posso duvidar de que ele compartilha no céu
da gloria dos santos apóstolos".

Ibid.

Queria mesmo, vir ele próprio em pessoa assistir, à sua trasladação; mas impedido pelos deveres do seu cargo, escreveu ao arcebispo de Raverina para que fosse com os seus sufragâneos a Bolonha assistir à cerimônia.

Era o dia de Pentecostes do ano de 1223. O capítulo geral da ordem achava-se reunido em Bolonha, sob a presidência de Jordão de Saxe, imediato sucessor de S. Domingos no generalato. O arcebispo de Ravenna, cumprindo as ordens do Papa, estava também na mesma cidade, assim como os bispos de Bolonha, de Brescia, de Modena e de Tournay. Haviam acorrido ali de todos os países mais de trezentos religiosos. Grande numero de nobres e de cidadãos ilustres das cidades circunvizinhas enchiam as hospedarias. O povo todo estava em expectativa.

"Entretanto",

diz o bem aventurado Jordão de Saxe, os religiosos

"sentem-se possuídos de uma enorme angústia;
pálidos e trêmulos, começam a rezar,
pois receiam que o corpo de S. Domingos,
por tanto tempo exposto num humilde sepulcro,
às chuvas e aos calores,
apareça roído dos vermes
e exale um cheiro que diminua a opinião
de sua santidade".

Ibid.

Atormentados com essa idéia, pensaram em abrir secretamente o túmulo do santo; mas Deus tal não permitiu. Ou fosse por suspeitar em os seus projetos, ou para melhor constatar a autenticidade das relíquias, o magistrado de Bolonha mandou que ficassem de guarda dia e noite ao sepulcro uma força armada. Todavia para mais livremente poderem fazer o reconhecimento do corpo, e para evitar no primeiro momento a confusão do imenso povo que enchia Bolonha, combinou-se abrir o sepulcro de noite. A 24 de maio, no segundo dia depois da Pentecostes, antes de amanhecer, reuniram-se à luz dos archotes em torno da humilde lousa que, durante doze anos, cobrira os restos de S. Domingos, o arcebispo de Raverina e os outros bispos, o mestre geral da ordem com os definidores do capitulo, o magistrado de Bolonha, os principais nobres e cidadãos, tanto de Bolonha como das cidades vizinhas. Na presença de todos, Frei Estevão, prior provincial da Lombardia, e Fr. Rodolfo ajudados por alguns outros Religiosos, começaram a arrancar o cimento que prendia a pedra ao chão. Estava duríssimo, e só com grande dificuldade é que cedeu ás pancadas dos ferros. Quando o acabaram de arrancar, e que as paredes exteriores do túmulo ficaram à vista, Fr. Rodolfo arrombou a alvenaria com um martelo de ferro, e depois ele e outros, servindo-se de alavancas, levantaram com grande custo a pedra superior do monumento. À medida que a levantavam, exalava-se do sepulcro entreaberto um perfume indescritível, um aroma desconhecido excedendo tudo quanto se possa imaginar. O arcebispo, os bispos, e todos os que se achavam Presentes, penetrados de assombro e júbilo, caíram de joelhos chorando e louvando a Deus. Acabaram de tirar a pedra, ficando à vista, no fundo do sepulcro, o caixão de madeira, onde estavam encerradas as relíquias do Santo. Na tampa via-se uma pequena fenda, por onde se exalava abundantemente o perfume que surpreendera os assistentes, e que ainda mais penetrante se tornou, quando tiraram de todo o caixão da cova. Todos se inclinaram para venerar esse caixão precioso, derramando sobre ele lagrimas abundantes acompanhadas de beijos. Por fim arrancando os pregos da parte superior, abriram-no, expondo aos olhos dos seus Religiosos e amigos tudo o que restava de S. Domingos. Eram só os ossos, mas ossos revestidos de gloria e de vida, pelo celeste aroma que deles se exalava. Só Deus sabe a alegria que então trasbordou em todos os corações, e nenhum pincel é capaz de reproduzir essa noite perfumada, esse silencio impressionante, esses bispos, esses cavaleiros, e religiosos, todos esses rostos reluzentes de lagrimas, inclinados sobre um caixão, procurando nele à luz dos ciriais, o grande e santo homem que os contemplava lá dos céus, e correspondia a sua devoção com esses misteriosos amplexos, que pungem a alma de uma felicidade indescritível. Os bispos não julgaram as suas mãos com direito ao privilegio filial de tocarem nos ossos do Santo; deixaram essa consolação e honra aos seus filhos. Jordão de Saxe curvou-se com respeitosa devoção sobre essas relíquias sagradas, e transferiu-as para um caixão novo feito de uma madeira especial. Diz Plínio que essa madeira resiste à ação do tempo. Fecharam o caixão com três chaves, uma das quais entregaram ao Magistrado de Bolonha, a outra a Jordão de Saxe, e a terceira ao prior provincial da Lombardia. Levaram-no em seguida para a capela onde haviam erigido o monumento preparado para receber esse deposito; esse monumento era de mármore, mas sem nenhum trabalho de escultura.

Ao amanhecer voltaram os bispos, o clero, os Religiosos, os magistrados e nobres para a igreja de Saint Nicolas, já então invadida por uma imensa multidão de povo e de homens de todas as nações. O arcebispo de Ravenna cantou a missa do dia, que era a de terça feira de Pentecostes e, por uma tocante coincidência, as primeiras palavras do coro foram as seguintes:

"Accipite jucunditatem gloriae vestrae".

"Recebei o gozo da vossa gloria".

O caixão continuou aberto, e espalhava pela igreja uma tão sublime fragrância que se não confundia com os suaves perfumes cio incenso; o som das trombetas, aliava-se ao canto do clero e dos religiosos; uma multidão, infinita de luzes brilhava nas mãos do povo; nenhum coração, por mais rebelde que fosse, podia resistir à casta embriaguez desse triunfo da santidade. Terminada a cerimonia, os bispos depositaram sob o mármore o caixão fechado, para ali esperar em paz e gloria o sinal da ressurreição. Oito dias depois porém, a rogos de muitas pessoas de distinção que não tinham podido assistir à trasladação, foi o monumento de novo aberto. Jordão de Saxe tomou nas suas mãos a cabeça venerável do santo Patriarca, e mostrou-a a mais de trezentos Religiosos que tiveram a consolação de a beijarem, e de conservarem por muito tempo o inefável perfume desse osculo. Porque tudo quanto tocava, nos ossos do Santo, ficava impregnado com a virtude que emanava deles.

"Sentimos",

diz o bem-aventurado Jordão de Saxe,

"esse precioso aroma
e prestamos testemunho do que vimos e sentimos.
Nunca nos saciávamos da impressão
que exercia sobre os nossos sentidos,
embora ficássemos horas
junto ao corpo do Santo a respirá-lo.
Por mais tempo que nos demorássemos,
nunca nos aborrecia,
antes excitava em nossos corações a devoção
e operava milagres.
Quando tocavam no corpo do Santo com a mão,
com uma cinta ou com qualquer outro objeto
o cheiro aderia a ele".

Carta Encíclica aos Frades

Observa aqui Thierry d'Apolda, que mesmo antes do morte do santo, já Deus lhe comunicara esse sinal exterior da pureza da sua alma. Um dia celebrando missa em Bolonha, chegou-se ao pé dele um estudante no momento do ofertório e beijou-lhe a mão. Este mancebo era dado a uma grande incontinência, para a qual provavelmente procurava remédio. Sentiu, ao beijar a mão de S. Domingos, um perfume que lhe revelou subitamente a honra e o gozo dos corações puros, e desse momento em diante, com a graça de Deus, conseguiu vencer todas as suas inclinações corruptas.

Os milagres extraordinários que acompanharam a trasladação do corpo de S. Domingos decidiram Gregório IX a não demorar mais tempo o processo da sua canonização. Por carta de 11 de Julho de 1233 encarregou três eclesiásticos eminentes de procederem a um inquérito sobre a sua vida, foram estes: Tancredo, arcebispo de Bolonha, Tomás, prior de Santa Maria do Reno e Palmeri, cônego da Santíssima Trindade. Esse inquérito prolongou-se desde o dia 6 até ao dia 30 de agosto. Os comissários apostólicos examinaram nesse intervalo, sob juramento, o depoimento de nove Frades Pregadores, escolhidos entre os que haviam vivido mais intimamente com S. Domingos. Eram eles Ventura de Verona, Guilherme de Montferrato, Amison de Milão, Bonvisi de Placencia, João de Navarro, Rodolfo de Faenza, Estevão de Espanha, Paulo de Veneza, Frugéri de Penna. Como todas estas testemunhas, excepto João de Navarro, não tinham conhecido S. Domingos durante os primeiros tempos do seu apostolado, julgaram os comissários da Santa Sé necessário estabelecer no Languedoc um segundo centro de inquérito e, para esse fim, delegaram o abade de S. Saturnino de Toulouse, o arcediago da mesma igreja, e o de Saint Etienne. Vinte e seis testemunhas foram examinadas por eles e, além dessas, mais de trezentas pessoas de distinção confirmaram com o seu juramento e com a sua assinatura tudo o que essas testemunhas haviam dito das. virtudes de S. Domingos e dos milagres obtidos por sua intercessão. A data exacta dessa ata não é conhecida; foi nos fins de 1233 ou princípios de 1234.

Sendo os depoimentos de Bolonha e Toulouse enviados para Roma, Gregório IX deliberou sobre eles com o Sacro Colégio. Conta um autor contemporâneo que ele disse nessa ocasião referindo-se a S. Domingos:

"Tenho tão pouca dúvida da sua santidade
como da dos apóstolos S. Pedro e S. Paulo".

Étienne de Salanhac
Das quatro coisas
em que Deus honrou
a Ordem dos Pregadores

A bula da canonização, consequência de todos esses atos judiciais é assim concebida:

"Gregório bispo,
servo dos servos de Deus,
aos nossos veneráveis irmãos os arcebispos e bispos,
e aos nossos diletos filhos
os abades, priores, arcediagos,
arciprestes, deães, prebostes
e outros prelados das igrejas
a quem estas cartas chegarem,
saúde e bênção apostólica.

O princípio da sabedoria,
o Verbo do Pai,
cuja natureza é a bondade,
cujas obras são misericórdia,
que veio resgatar e regenerar aqueles que criou,
e que vela até a consumação dos séculos
sobre a vinha que tirou do Egito,
Nosso Senhor Jesus Cristo,
manifesta-nos novos sinais de seu poder
em razão da instabilidade dos espíritos,
e varia os milagres
em razão das desconfianças da incredulidade.

Quando Moisés morreu,
isto é, na expiração da Lei,
subiu para o carro
puxado a quatro cavalos do Evangelho,
cumprindo o juramento que fizera a nossos pais,
e tendo na mão este arco da sagrada palavra
que conservara sempre curvo
durante o reinado dos judeus,
caminha pelo meio das ondas do mar,
até essa vasta extensão das nações,
cuja salvação foi figurada por Raab;
calca aos pés a confiança de Jericó,
a glória do mundo,
e aquele que com assombro dos povos ele vencera
logo ao primeiro som da sua pregação.

O profeta Zacarias vira esse carro a quatro cavalos
sair por quatro vezes dentre duas montanhas de bronze.
O primeiro carro tinha cavalos russos,
que representavam os senhores das nações,
os poderosos da terra,
aqueles que submetendo-se pela fé
ao Deus de Abraão,
pai dos crentes,
tingiram, a exemplo do seu chefe,
e para assegurar os fundamentos da fé,
as suas vestes em Bosra,
isto é, nas águas da tribulação,
e coraram com o seu sangue
todas as insígnias da sua milícia;
aqueles a quem o gozo da glória futura
fizera desprezar a morte temporal e que,
mártires, isto é, testemunhas,
assinaram com a sua confissão o livro da lei nova,
acrescentando à sua confissão o peso dos milagres,
consagrando o livro e o tabernáculo,
obra de Deus e não do homem,
e todos os vasos do ministério evangélico
pela substituição do sangue de holocaustos racionais
ao sangue dos animais e, por fim,
lançando as redes da pregação
sobre a vasta extensão dos mares,
formaram a Igreja de Deus
em todas as nações debaixo do céu.

Porém, como da abundância se gera a presunção,
e a malícia procede da liberdade,
apareceu o segundo carro com cavalos pretos,
símbolo de luto e de penitência,
e por eles estava representado
esse batalhão levado pelo espírito para o deserto
sob a direção do grande S. Bento,
novo Eliseu do novo Israel,
batalhão que restituiu aos filhos dos profetas
o bem perdido da vida comum,
renovou o fio partido da unidade,
estendendo-se pelas boas obras
até esse país do Aquilão,
de onde procede todo o mal
e fazendo repousar nos corações contritos
aquele que não reside nos corpos sujeitos ao pecado.

Depois o do que,
como que para reanimar as tropas cansadas
e fazer suceder a alegria às lamentações,
chegou o terceiro carro com cavalos brancos,
isto é, com os religiosos
das ordens de Cister e de Flora,
os quais semelhantes a ovelhas tosqueadas
e abundando no leite da caridade,
saiam do banho da penitência
tendo à sua frente S. Bernardo,
esse pastor revestido pelo céu do espírito de Deus,
que os conduziu para a abundância dos vales,
para que os viajantes por ele libertados
clamem bem alto ao Senhor,
entoem. hinos e assentem sobre as vagas
o campo do Deus das batalhas.

Foi com estes três exércitos
que o novo Israel se defendeu
contra um número igual de Filisteus.

À undécima hora, porém,
quando já o dia se aproximava da tarde,
e que a caridade arrefecendo no meio da iniquidade,
o próprio sol de justiça desaparecia no ocaso,
quis o pai de família reunir uma milícia
mais apta ainda para proteger a vinha
que ele plantara com as suas próprias mãos,
e fizera cultivar por jornaleiros assalariados
em diferentes ocasiões,
a qual não obstante estava não só
coberta de silvas e espinhos,
como também quase destruída
por uma multidão hostil de rapazinhos.

Eis porque, como agora o vemos,
em seguida aos três primeiros carros
diferentes pelos seus símbolos,
Deus suscitou sob a figura de um quarto carro
tirado por cavalos possantes e de varias cores,
as legiões dos Frades Pregadores e dos Menores,
sob os seus chefes escolhidos para o combate.

Um desses chefes foi S. Domingos,
homem a quem Deus concedera
a força e o ardor da fé,
e a cuja garganta imprimira,
como ao cavalo da sua glória,
o dom da pregação divina.

Teve desde a infância um coração de velho,
praticou a mortificação da carne
e procurou sempre o autor da vida.

Consagrando-se a Deus
sob a regra do bem aventurado Agostinho,
imitou Samuel no serviço do templo,
e seguiu Daniel no fervor dos seus piedosos desejos.
Atleta corajoso,
caminhou pela senda da justiça
e do exemplo dos santos,
mal descansando da defesa do tabernáculo
e dos deveres da Igreja militante,
sujeitando a carne à vontade,
os sentidos à razão,
e transformado num só espírito com Deus,
esforçava-se por nele se isolar
pelo excesso da contemplação,
sem que nem no seu coração
nem nas suas obras
afrouxasse o amor do próximo.

Ao mesmo tempo que feria de morte
os deleites da carne,
e deslumbrava com um esplendor luminoso
a cega inteligência dos ímpios,
tremia a seita inteira dos hereges
e exultava toda a Igreja dos fiéis.
Entretanto crescia em graça e em idade,
e o zelo da salvação das almas,
inebriando-o de um júbilo inefável,
não contente com se ter entregue completamente
à palavra de Deus,
converteu também ao ministério evangélico
um número tão grande de homens
que mereceu ter um nome e uma obra
na terra dos patriarcas.
Feito pastor e príncipe no meio do povo de Deus,
instituiu por seus méritos
uma nova ordem de pregadores,
regulou-a com os seus exemplos,
nunca cessando de a confirmar
com evidentes e autênticos milagres.

Pois entre outros sinais que manifestaram
o seu poder e santidade
durante o curso da sua vida mortal,
restituiu a palavra aos mudos,
a vista aos cegos,
o ouvido aos surdos,
o movimento aos paralíticos,
a saúde a uma infinidade de enfermos,
mostrando claramente por todos estes prodígios
qual o espírito que animava o barro do seu santo corpo.

Nós, pois, que o conhecemos intimamente
no tempo em que ocupávamos
um cargo inferior na Igreja,
e que tivemos no próprio espetáculo da sua vida
uma prova insigne da sua santidade,
agora que testemunhas dignas de fé
nos atestaram a verdade de seus milagres,
cremos com o rebanho do Senhor,
confiado ao nosso cuidado,
que ele, graças à misericórdia de Deus,
nos poderá ser útil pelos seus sufrágios,
e que depois de nos haver consolado sobre a terra
com a sua boa amizade,
nos ajudará no céu com o seu poderoso patrocínio.

Eis porque,
por conselho e com o consentimento de nossos Irmãos
e de todos os prelados presentes na Sé Apostólica,
resolvemos inscrevê-lo no livro dos Santos,
e decretamos com firmeza,
e pelas presentes vos ordenamos a todos,
que celebreis e façais celebrar a sua festa
com solenidade nas nonas de agosto,
na véspera do dia em que ele depôs
o pesado fardo da carne
e penetrou rico em merecimentos
na cidade dos Santos,
afim de que o Deus,
que ele honrou em vida,
movido pelas suas preces,
nos conceda graça neste mundo
e a gloria no mundo futuro.

Desejando, além disso,
que o túmulo desse grande confessor
que ilustra a Igreja católica
pelos seus extraordinários milagres
seja dignamente freqüentado e venerado pelos cristãos,
concedemos a todos os fiéis arrependidos e confessados
que com devoção e respeito o visitarem
todos os anos no dia da festividade do Santo
a remissão de um ano de penitência,
confiando-nos para isso
na misericórdia de Deus Todo Poderoso,
e na autoridade dos bem-aventurados apóstolos
S. Pedro e S. Paulo.

Dada em Rieti,
a 5 das nonas de Julho,
no oitavo ano do nosso pontificado".

Bulário da Ordem
dos Frades Pregadores
T. I, p. 67

À exceção de S. Jacinto, Gregório IX foi o ultimo sobrevivente dos grandes homens que tiveram por S. Domingos grande afeto e que concorreram para a realização dos seus projetos. Morreu a 21 de agosto de 1241, na idade de noventa e sete anos, ao cabo de trinta anos de cardinalato e quatorze de pontificado, sem que a majestade dos anos e o esplendor das dignidades nele excedessem o brilho do seu mérito pessoal. Jurisconsulto, homem de letras, negociador, reunia a todos os dons do corpo e do espírito uma alma magnânima, onde couberam a vontade S. Domingos e S. Francisco, ambos por ele canonizados. Nunca se tornará provavelmente mais a ver um só homem rodeado de homens como Azevedo, Montfort, Foulques, Reinaldo, Jordão de Saxe, S. Jacinto, Innocêncio III, Honório III, nem tantas virtudes, tantas nações, e tantos fatos concorrerem para um tão grande fim, num tão curto período. Logo depois da bula da sua canonização não tardou, que o culto de S. Domingo se espalhasse por toda a Europa, chegando em muitos pontos a levantarem- lhe altares. Porém, Bolonha sempre se distinguiu pelo seu zelo pelo grande concidadão que a morte lhe dera. Em 1267, trasladou o seu corpo do túmulo sem escultura onde jazia, para um túmulo mais ricamente decorado. Fez-se esta segunda trasladação pelas mãos do arcebispo de Ravenna, estando presentes vários outros bispos, o capitulo geral dos Frades Pregadores, o magistrado e anciãos de Bolonha. Abriram o caixão, e a cabeça do .Santo, depois de todos os bispos e Religiosos a beijarem, foi exposta ao povo do alto de um púlpito, levantado no adro da igreja de Saint Nicolas. Em 1383, abriu-se o caixão pela terceira vez, e colocou-se a cabeça à parte numa urna de prata, para que os fiéis pudessem mais facilmente gozar da ventura de venerar esse precioso depósito. Finalmente, a 16 de julho de 1473, os mármores do monumento foram novamente substituídos por uma escultura mais perfeita no gosto do decimo quinto século. Eram obra de Nicolau de Bari, e representam diversos factos da vida do Santo. Não os posso descrever. Duas vezes os vi e ambas as vezes contemplando-as de joelhos, senti pela doçura que me inspirou esse túmulo, que uma mão divina guiara a mão do artista, e forçara a pedra a exprimir sensivelmente a incomparável bondade de coração daquele cujas cinzas cobre. Desde então, nunca mais se tocou nessa gloriosa sepultura e nestes três séculos nunca vista humana contemplou os ossos sagrados que ele encerra, nem mesmo a madeira do caixão. O mundo já não é digno de semelhantes espetáculos. Domingos fôra vencido tanto quanto pode ser quando por trezentos anos se defendeu o campo de batalha. Tinha de participar com todos os homens e todas as obras da idade média da ingratidão da posteridade pervertida e esperar com paciência no seu sepulcro selado e mudo essa justiça de dupla vista que nem sempre está na mão dos homens recusar àqueles que os serviram. Já muitos dos seus contemporâneos viram a história restaurar as suas estátuas caídas. Não alimento a esperança de ter obtido um tão belo resultado; o tempo, porém, depois de mim pegará na pena e a ele deixo, sem receio nem ciúme o cuidado de concluir este trabalho.

Fim da vida de S. Domingos