17.

Sexta e última viagem de S. Domingos a Roma. Segundo Capítulo Geral. Doença e morte do santo Patriarca.

Com a criação da terceira ordem terminou a carreira de Domingos. Nada mais lhe restava a fazer do que as suas despedidas a tudo quanto amara sobre a terra, e não há dúvida que Roma ocupava o primeiro lugar nos seus afetos. Fora ali que viera com Azevedo, seu primeiro amigo, antes de encetado a sua vida publica; ali voltara para obter a aprovação e confirmação da sua ordem. Fora ali que fundara S. Sito e Santa Sabia, que implantara o centro da sua ordem, que exercera o cargo de Mestre do sacro palácio, que obtivera a confiança de dois grandes papas, que ressuscitara três mortos, e que vira elevar-se até ao triunfo a veneração, que por ele tinha o povo; ali que residia numa majestade infalível o vigário daquele, que amara e servira todos os dias da sua vida. Podia acaso morrer sem dele haver recebido uma derradeira benção? Podia acaso cerrar os olhos sem mais uma vez os poisar sobre as colinas da cidade santa? Podia porventura cruzar para sempre as mãos, sem ter oferecido um supremo sacrifício sobre os altares dos apóstolos S. Pedro e S. Paulo? Podia resignar seus pés à imobilidade sem trilhar uma última vez as veredas do Aventino e do Coelio? Roma abriu pois pela sexta vez o, seu coração de mãe ao grande homem que gerara na sua velhice, e que lhe havia de suscitar filhos e filhas em mundos cujos nomes lhe eram ainda desconhecidos. Honório III deu-lhe em vários diplomas novas provas da sua solicitude e da sua soberana paternidade. No primeiro, datado de 8 de dezembro 1220, isentou parte dos religiosos de uma irregularidade em que tinham incorrido por uma recepção pouco canônica das ordens sacras. Nos três outros, de 18 de janeiro, 4 de fevereiro, e 29 de março do ano seguinte, recomendava os Frades Pregadores a todos os prelados da cristandade. Noutro, de 6 de maio, concedia-lhes licença para em caso de necessidade oferecerem santo sacrifício sobre um altar portátil. Foi esta a última pagina assinada por Honório III em favor da ordem na vida do seu fundador; pontífice que teve a gloria singular de ver florescer no seu reinado S. Domingos e S. Francisco e de pelos seus actos se não mostrar indigno deste favor do céu.

Enquanto Domingos fazia as suas despedidas a Roma, a Providência enviou-lhe na pessoa de Foulques, bispo de Toulouse, o mais antigo amigo que ainda conservava. Foulques era o único representante vivo dessa época tão afastada do Languedoc, da instituição de Notre Dame-de-Prouille e de Saint-Romain de Toulouse, de todos os benefícios e de todas as recordações que rodeavam o berço dos Frades Pregadores. Quão doces devem ter sido os colóquios desses dois homens! Deus coroara de um sucesso inaudito tantos secretos desejos, que juntos haviam outrora formado; viam o ministério da pregação, ilustrado por uma ordem religiosa já então espalhada na Europa de um extremo ao outro, eles que tantas vezes haviam discutido a necessidade de estabelecer o apostolado. Não lhes provocava orgulho a parte que haviam tomado nesta grande obra; sentiam porém com tanto maior jubilo a gloria da igreja, quanto com mais profunda dor haviam sentido os seus males. Foulques, embora não tivesse sido o instrumento principal dos desígnios de Deus, não experimentava com isso tristeza alguma. Desde o principio, fôra sempre superior ao secreto estimulo da inveja, e a sua alma episcopal desprezara as apreensões bem naturais a quem está no poder, quando se trata de coisas que se não efetuam pelas suas próprias mãos. Deixara fazer o bem e ajudara a fazê-lo, o que é ainda mais difícil do que fazê-lo a própria pessoa. A sua coroa estava pura, o seu coração satisfeito. Em quanto a Domingos, que mais podia ele desejar? Ó feliz momento, quando o cristão, chegado ao termo da sua carreira, tem a consciência de ter cumprido a vontade de Deus, e quando pôde expandir a paz ganha ao seu serviço no coração de um outro cristão, seu companheiro e seu amigo! Existe um documento, deste amplexo de Foulques e Domingos, espécie de testamento, cuja leitura nos deve consolar de não termos podido mais claramente ouvir os seus últimos colóquios.

“Em nome do Senhor,
saibam todos que estas páginas lerem,
que nós Foulques,
bispo de Toulouse, pela graça de Deus,
concedemos em nosso nome
e em nome dos nossos sucessores,
para remissão dos nossos pecados,
defesa da fé católica
e utilidade de toda a diocese de Toulouse,
a vós meu caro Domingos, Mestre da Pregação,
assim como aos vossos sucessores
e aos religiosos da vossa ordem,
a igreja de Notre Dame de Fanjeaux,
com todos os dízimos e todos os direitos dependentes dela,
tanto os que pertencem à nossa própria pessoa,
como os da irmandade e do capelão da igreja;
salvo a reserva para nós
e para os nossos sucessores do direito catedrático,
do da procuração e da cura das almas
que confiaremos ao sacerdote
que nos for apresentado pelo mestre da Ordem,
pelo prior estabelecido nessa igreja,
ou pelos religiosos.

E nós, Domingos,
Mestre da Pregação,
em nome dos nossos sucessores
e dos religiosos da Ordem,
cedemos a vós Foulques, bispo,
e aos vossos sucessores,
a sexta parte dos dízimos
de todas as igrejas da diocese de Toulouse,
que outrora nos concedestes,
com o consentimento dos cônegos de Santo Estêvão;
renunciamos para sempre a essa doação
e a qualquer direito a ela
em virtude das leis e dos cânones.”

Mamachi, Anais da Ordem
dos Frades Pregadores
Vol. 1, Apêndice

Este documento é datado de Roma, 17 de Abril de 1221. Tem três selos, o da catedral de Santo Estêvão, o de Foulques e o de Domingos. O selo de Domingos representa-o em pé, com o hábito de Frade Pregador, e um bordão na mão; em volta estão gravadas estas palavra: “Selo de Domingos, ministro da pregação”. Por aí se vê que o título grandioso de “Mestre da Pregação”, que lhe é conferido no corpo do documento, não fôra de sua escolha, mas sim uma homenagem de Foulques que não podia exprimir de uma forma mais elevada o que pensava do seu amigo. O soberano pontífice nas suas bulas e cartas nunca tinha chamado a Domingos senão “O prior de Saint Romain” e mais tarde “O Prior da Ordem dos Frades Pregadores”.

Foulques sobreviveu dez anos a Domingos. Morreu a 25 de dezembro de 1231, e foi sepultado numa capela da abadia de Grand Selve, a pouca distancia de Toulouse. O seu túmulo desapareceu debaixo de ruínas que existem ainda; porém as revoluções do tempo e dos impérios nada podem contra a sua memória, estreitamente ligada a um homem e a uma obra cujo berço protegeu, e que agora o revestem da sua imortalidade.

Poucos dias depois do documento a que nos referimos, saiu Domingos de Roma pela estrada da Toscana. Havia em Bolsena, nessa estrada, uma casa cujo dono lhe costumava dar hospitalidade e que por esse motivo foi recompensado de uma maneira milagrosa, antes da morte do santo. Um dia em que estava caindo o granizo sobre as vinhas nos arredores de Bolsena, Domingos apareceu no céu, estendendo a sua capa sobre a vinha do homem que lhe dera hospitalidade, preservando-a assim do flagelo. Todo o povo presenciou essa aparição, e segundo o testemunho de Thierry d'Apolda, via-se ainda na vinha, no fim do decimo terceiro século, a pequenina casa que Domingos habitava, quando passava por Bolsena. Conservavam-na piedosamente os descendentes do seu antigo possuidor, que conforme a expressa recomendação do seu antepassado, ali recebiam, com a maior bondade, os Frades Pregadores todas as vezes que se lhe oferecia a ocasião.

No ano de 1221 caiu o Pentecostes a 30 de maio. Era esse o dia marcado para a celebração do segundo capitulo geral em Bolonha. Domingos, quando entrou em Saint Nicolas, notou que estavam trabalhando em levantar um dos lados do convento para alargar as celas. Ao ver este trabalho prorrompeu em lágrimas e disse a frei Rodolfo, procurador do convento e aos outros religiosos:

“Como assim?
Tão cedo quereis abandonar a pobreza
a construir palácios para habitardes?”.

Atas de Bolonha
Depoimento de
Estevão de Espanha, n. 4

Mandou imediatamente parar com as obras, que só recomeçaram depois da sua morte.

As atas do segundo capitulo geral não chegaram até aos nossos tempos. Tudo o que sabemos, é a divisão que nele se fez, da Ordem em oito províncias, a saber: a Espanha, a Provença, a França, a Lombardia, Roma, a Alemanha, a Hungria e a Inglaterra. Deu-se a primazia de honra à Espanha, não por direito de antigüidade, mas por veneração pela pessoa do santo patriarca, cujo berço fôra. Teve por prior provincial Suero Gomez; a Provença teve Bertrand de Garrigue; a França, Mateus de França; a Lombardia, Jordão de Saxe; Roma, João de Placência; a Alemanha, Conrado o Teutônico; a Hungria, Paulo da Hungria; a Inglaterra, Gilberto de Frassinet. As seis primeiras províncias compreendiam só à sua parte perto de sessenta conventos fundados em menos de quatro anos; as duas últimas, a Hungria e a Inglaterra. não tinham ainda recebido Frades Pregadores. Mandou-lhos Domingos do próprio centro do capitulo geral.

Paulo, que fôra destinado para a Hungria, era um professor de direito canônico na universidade de Bolonha, e só recentemente professara. Poz-se a caminho com quatro companheiros, entre os quais ia Frei Sadoc, ilustre pelas suas eminentes virtudes. Vesprim e Albe Royale foram as primeiras cidades onde fundaram conventos. Mais tarde chegaram até aquela terra dos Cumanos, que tanto excitara a solicitude de Domingos, e onde ele quisera acabar os seus dias. Descreverei apenas um episódio do estabelecimento dos religiosos na Hungria, para melhor nos iniciar no modo como se realizavam essas santas expedições.

“Naquele tempo dois religiosos
da província da Hungria
chegaram a uma certa povoação,
à hora em que o povo cristão costumava reunir-se
para ouvir missa.

Quando esta acabou e o povo voltava para suas casas
o sacristão fechou a porta da igreja,
deixando os religiosos fora da porta,
sem que ninguém se condoesse deles.

Vendo isso um pobre pescador
sentiu-se movido de compaixão,
não ousando contudo convidá-los para sua casa
porque nada tinha que lhes oferecer.

Correu todavia à casa
e disse à mulher:

`Oxalá tivéssemos alguma coisa
para dar de comer
àqueles dois religiosos.
Afligem-me aqueles pobres homens
que estão à porta da igreja
e a quem ninguém oferece hospitalidade’.

Respondeu-lhe a mulher:

`Tudo quanto temos é um pouco de milho’.

Contudo, mandando-lhe seu marido sacudir a bolsa
para ver se tinha alguma coisa dentro,
contra toda a expectativa, caíram duas moedas.

Cheio de júbilo o pescador, disse-lhes:

`Vai depressa comprar pão e vinho,
coze também o milho e uns peixes’.

Em seguida correu direito à igreja,
junto à qual se conservavam ainda
os frades e convidou-os com modo humilde
a virem para sua casa.

Assentaram-se os religiosos àquela pobre mesa
servida com tanta caridade;
saciaram a sua fome e,
depois de agradecerem ao dono da casa,
retiraram-se pedindo a Deus
que o recompensasse.

Atendeu o Senhor à sua súplica;
desse dia em diante a bolsa do pescador
nunca mais estêve vazia;
teve sempre duas moedas dentro.
Comprou uma casa, uns campos,
ovelhas, bois, e o Senhor,
ainda por cima lhe concedeu um filho.

Quando, porém, estava suficientemente
fornecido de tudo,
cessou a dádiva das duas moedas”.

Thierry d'Apolda
Vida de S. Domingos
C. 17, 319-20

A missão da Inglaterra obteve um resultado não menos feliz do que a da Hungria. Gilberto de Frassinet, que era o seu chefe, apresentou-se com doze companheiros ao arcebispo de Cantuária. Tendo o arcebispo ouvido dizer que eles eram Frades Pregadores, imediatamente ordenou a Gilberto que pregasse diante dele em uma igreja onde ele próprio fizera questão de pregar nesse dia. Ficou tão satisfeito que concedeu a sua amizade aos religiosos e toda a sua vida os protegeu. O seu primeiro estabelecimento foi em Oxford; aí levantaram uma capela à Virgem Santa, e abriram escolas que denominaram escolas de Santo Eduardo, do nome da freguesia onde as instalaram.

Por meio destas duas missões, a da Inglaterra e a da Hungria, tomou Domingos posse final da Europa. Não tardou que recebesse do céu um aviso de que o seu fim se aproximava. Um dia em que estava em oração, e suspirava ardentemente pela dissolução do seu corpo, apareceu- lhe um mancebo de extraordinária beleza que lhe disse:

“Vem, meu bem-amado,
vem para o gozo eterno, vem”.

Bartolomeu de Trento
Vida de S. Domingos, n. 13

Foi-lhe participada ao mesmo tempo a época exata da entrevista que lhe marcavam, e indo visitar uns estudantes da universidade de Bolonha por quem tinha grande afeto, depois de vários discursos, levantando-se para se retirar, exortou-os a que desprezassem o mundo e a que pensassem na morte.

“Meus caros amigos”,

disse-lhes ele,

“vedes-me agora com boa saúde;
antes, porém, de chegarmos
à Assunção de Nossa Senhora
serei levado desta vida mortal”.

Gérard de Frachet
Vida dos Frades, L. II, c. 17

Partiu em seguida para Veneza, onde se achava o cardeal Ugolino, na qualidade de legado apostólico. Queria recomendar-lhe mais uma vez os negócios da ordem e não queria morrer sem se despedir de um amigo como ele. Era então a época dos grandes calores do verão. Uma tarde, no fim do mês de julho, Domingos voltou para o convento de Saint Nicolas. Posto que muito cansado da viagem, teve uma larga conferencia sobre os assuntos da ordem com frei Ventura e frei Rodolfo, um procurador e o outro prior do convento. Perto da meia noite Rodolfo, que tinha necessidade de descanso, quis persuadir Domingos a deitar-se e a não se levantar para matinas; o santo porem não anuiu a isso. Foi para a igreja onde ficou em oração ate à hora do oficio que celebrou com os religiosos. Depois do oficio disse a frei Ventura que sentia uma dor na cabeça; breve se declarou uma desinteria fortíssima, acompanhada de febre. Apesar do seu sofrimento, o doente recusou deitar-se numa cama; deitou-se todo vestido em cima de um saco de lã. O progresso da doença não lhe arrancava nem um sinal de impaciência, nem uma queixa, nem um gemido; mostrava-se alegre como sempre. Agravando-se contudo o seu mal, mandou chamar os irmãos noviços e com as mais suaves palavras imagináveis, animando-os com a alegria do seu rosto, consolou e exortou- os ao bem. Em seguida chamou doze dos mais antigos e mais graves dentre os religiosos e na sua presença fez em voz alta a frei Ventura confissão geral de toda a sua vida. Quando acabou, disse-lhes:

“A misericórdia de Deus
conservou-me até hoje
uma carne pura
e uma virgindade sem mácula;
se desejais conseguir a mesma graça,
evitai todas as relações suspeitas.
Pela prática desta virtude
é que o servo se torna agradável a Cristo,
e que obtém glória e crédito perante o povo.
Sede constantes em servir o Senhor
com fervor de espírito;
aplicai-vos a manter e espalhar esta ordem,
que está apenas em começo;
sede firmes na santidade,
na observância regular
e crescei em virtude”.

Thierry d'Apolda
Vida de S. Domingos
C. 20, n. 234

E acrescentou, para ainda mais os estimular a exercer vigilância sobre si mesmos:

“Posto que a bondade de Deus
me preservasse até hoje de toda a mácula,
confesso-vos contudo
que nunca consegui isentar-me da imperfeição
de sentir mais prazer na conversa de mulheres novas
do que na de mulheres de idade.”

B. Jordão de Saxe
Vida de S. Domingos
C. 4, n. 68

Depois, confuso por esta sua adorável e santa simplicidade, disse baixo a frei Ventura:

“Irmão, creio que pequei
falando em público aos religiosos
sobre a minha virgindade;
devia ter guardado silêncio a esse respeito”.

Atas de Bolonha
Depoimento de Ventura, n. 3

Sobre isso voltou-se de novo para eles e, empregando a formula consagrada dos testamentos, disse-lhes:

“Eis meus amados irmãos,
a herança que vos lego como a meus filhos:
tende caridade, conservai a humildade,
possuí a pobreza voluntária”.

B. Humberto
Vida de S. Domingos, n. 53

E para imprimir uma mais imponente sanção à clausula deste testamento que dizia respeito à pobreza, ameaçou com a maldição de Deus e com a sua qualquer que ousasse corromper a sua ordem introduzindo nela a posse dos bens deste mundo.

Todavia os Religiosos ainda não haviam de todo perdido a esperança de salvar o seu pai. Não podiam acreditar que Deus o quisesse roubar tão depressa à Igreja e a eles. Por conselho dos médicos e julgando que a mudança de ar lhe fizesse bem, transportaram-no para Santa Maria dei Monti, igreja dedicada à Virgem Santa num monte próximo de Bolonha. A doença, porém, rebelde à todos os remédios e a todos os desejos, não fez senão aumentar. Julgando-se Domingos próximo da morte, chamou de novo os religiosos para junto de si. Vieram em numero de vinte com o seu prior Ventura e colocaram-se em volta do doente, que se conservava deitado. Fêz-lhe então Domingos um discurso de que nada sabemos, senão que nunca palavras mais tocantes saíram do seu coração. Recebeu em seguida o Sacramento da Extrema Unção. Sabendo depois por Frei Ventura que o religiosos encarregados da igreja de Santa Maria dei Monti se propunham guardar e enterrar ali o seu corpo, disse-lhe:

“Permita Deus que me não enterrem
senão debaixo dos pés de meus irmãos!
Levai-me ali para fora, para essa vinha,
a fim de que eu ali morra,
e me deis depois sepultura na nossa igreja”.

Atas de Bolonha
Depoimento de frei Ventura, n. 7

Tornaram os Religiosos a levá-lo para Bolonha, receando a cada momento vê-lo expirar nos seus braços. Como ele não tinha no convento cela própria colocaram-no na de frei Moneta. Quiseram mudar-lhe de fato; mas ele não tinha outro, senão o que trazia vestido, e Moneta teve de dar uma das suas túnicas para o vestirem. Frei Rodolfo sustinha a cabeça do santo, e enxugava com um lenço o suor que lhe corria pelo rosto; os outros religiosos assistiam chorando a este espetáculo. Para os consolar, Domingos disse-lhes:

“Não choreis,
ser-vos-ei mais útil
no lugar para onde vou
do que fui aqui”.

Atas de Bolonha
Depoimento de frei Rodolfo, n. 4

Perguntando-lhe um dos religiosos em que sítio queria que fosse enterrado o seu corpo, respondeu:

“Debaixo dos pés dos meus Irmãos”.

Ibid., n.7

Passara já uma hora desde a sua chegada a Bolonha. Vendo Domingos que os religiosos, entregues à sua dor, não pensavam na recomendação da alma, mandou chamar frei Ventura e disse-lhe:

“Preparai-vos”.

Atas de Bolonha
Depoimento de frei Ventura, n. 7

Prepararam-se imediatamente e foram com solenidade colocar-se de roda do moribundo. Disse-lhe Domingos:

“Esperai ainda um momento”.

Ibid.

Aproveitando Ventura esse momento supremo disse ao Santo:

“Meu Pai,
sabeis a grande tristeza e desolação
em que nos deixais;
lembrai-vos de nós diante do Senhor”.

Ibid.

Domingos erguendo os olhos e as mãos para o céu e orou do seguinte modo:

“Pai Santo,
cumpri a vossa vontade,
e aqueles que vós me destes,
conservei e defendi;
recomendo-vo-los neste momento,
conservai-os e defendei-os”.

Ibid.

Momentos depois disse:

“Começai”.

Ibid.

Começaram a solene recomendação da alma, acompanhando-os Domingos; pelo menos viam-lhe mover os lábios. Assim que chegaram, porém, a estas palavras:

“Vinde em seu auxílio, santos de Deus;
vinde ao seu encontro, anjos do Senhor,
tomai a sua alma e conduzi-a
à presença do Altíssimo”,

deixou de mover os lábios, ergueu as mãos para o céu e Deus recebeu a sua alma. Foi no dia 6 de agosto do ano 1221, à hora do meio dia, numa sexta-feira.

No mesmo dia, à mesma hora, frei Guala, prior do Convento de Brescia e depois bispo da mesma cidade, encostando-se por um instante à torre dos sinos do convento, adormeceu. Nesse estado, viu com os olhos da alma abrir-se o céu e saírem por essa abertura duas escadas que chegavam à terra. No cimo de uma estava Jesus Cristo; no cimo da outra estava a bem aventurada Virgem, Sua Mãe. Em baixo, entre as duas escadas havia uma cadeira, e nessa cadeira estava sentado alguém que parecia um religioso; mas não se conhecia que religioso era, porque tinha a ,cabeça coberta com um capuz como se põe aos mortos. Ao longo das duas escadas subiam e desciam anjos entoando cânticos e as escadas iam subindo para o céu, puxadas por Jesus Cristo e por sua santa Mãe, e com elas a cadeira e a pessoa que nela estava sentada, Quando chegaram mesmo a cima cerrou-se o céu e desapareceu a visão. Frei Guala, posto que ainda fraco devido a uma doença recente que tivera, partiu imediatamente para Bolonha e soube que Domingos morrera no mesmo dia e hora em que ele tivera essa visão.

Também no mesmo dia, dois Religiosos de Roma, Tancredo e Raon, partiram dessa cidade para Tivoli. Chegando ali um pouco antes do meio dia, Tancredo mandou Raon celebrar o santo sacrificio da Missa. Raon, confessando-se antes de subir para o altar, deu-lhe Tancredo por penitência pensar durante o santo sacrifício em seu pai Domingos que estava doente em Bolonha. Quando Raon chegou à parte da missa em que se faz a memória dos vivos e procurava aplicar a sua idéia ao pensamento que lhe fôra imposto por penitencia, sentiu-se arrebatado em êxtase e viu Domingos saindo de Bolonha, cingindo-lhe a fronte uma coroa de ouro, ,envolto por uma claridade admirável e tendo à sua direita e à sua esquerda dois homens veneráveis que o acompanhavam. Um aviso interior dava-lhe ao mesmo tempo a certeza de que o servo de Deus acabava de morrer e de entrar cheio de gloria na pátria dos santos.

Não é difícil compreender o que significavam as duas escadas do sonho de Guala e os dois anciões do êxtase de Raon. Representavam por certo a ação e a contemplação que Domingos tão prodigiosamente unira na sua pessoa e na sua ordem..

Por uma disposição da Providência, aconteceu chegar o cardeal Ugolino a Bolonha, pouco depois de Domingos soltar o último suspiro. Quis ele próprio celebrar o seu oficio fúnebre, e foi a Saint Nicolas onde já se achavam o patriarca de Aquiléia, bispos, abades, nobres e muito povo. Fizeram passar por diante dessa multidão o corpo do santo, já despojado do único tesouro que conservara: uma cadeia de ferro que trazia sobre a carne e que frei Rodolfo lhe tirara quando o vestiu para o pôr no caixão. Deu-a depois ao bem-aventurado Jordão de Saxe. Todos os olhos e todos os corações estavam fitos nesse corpo sem vida., O ofício começou por uns cânticos que se ressentiam daquela tristeza geral e que caíam dos lábios semelhantes a lagrimas. Pouco a pouco, porém, o pensamento dos religiosos elevou-se acima das coisas deste mundo; deixaram de ver naqueles restos inanimados o seu pai vencido pela morte. Revelou-se-lhes a sua gloria pela certeza que dela tinham. As fúnebres lamentações, seguiu- se um cântico de triunfo, e uma alegria indescritível desceu do céu sobre as suas almas. Neste momento entrando na igreja o prior de Santa Catarina de Bolonha, chamado Alberto, por quem Domingos tivera grande afeto, a alegria dos religiosos fazia de tal modo contraste com a sua dor pessoal que não se pôde conter. Lança-se sobre o corpo do santo; cobre-o de beijos, chama-o abraçando-o como querendo forçá-lo a voltar a si e a responder-lhe. Os restos mortais do seu amigo mostram-se sensíveis a esta explosão de dor. Alberto levanta-se e diz a Ventura:

“Boas notícias,
padre prior,
boas noticias.
Mestre Domingos abraçou-me
e disse-me que ainda este ano
me irei reunir a ele em Jesus Cristo”.

Gérard de Frachet
Vida dos Frades, L. II, c. 23

Com efeito morreu durante o ano.

Quando se acabou este ofício sem nome na linguagem da dor nem da alegria, os religiosos colocaram o corpo de seu pai num simples caixão de madeira, fechado com compridos pregos de ferro. Ali o puseram tal qual estava quando morreu, sem outros aromas mais do que o perfume das suas virtudes. Abriram uma cova no interior da igreja sob as lages e com umas pedras grandes formaram uma espécie de sepulcro. Aí meteram o caixão. Taparam-no com uma pedra muito pesada, betumando-o com cuidado para que nenhuma mão temerária se lembrasse de lhe tocar. Nada gravaram sobre essa lousa, nem sobre ela levantaram monumento algum. Domingos estava literalmente debaixo dos pés dos seus irmãos como o desejara. Na noite em que ali o deixaram um estudante de Bolonha que não pudera assistir às suas exéquias viu-o em sonhos sentado sobre um trono, na igreja de Saint Nicolas, e coroado de glória. Pasmado à vista deste espetáculo, disse-lhe:

“Não fostes vós,
Mestre Domingos,
que morrestes?”

Ao que o santo respondeu:

“Não morri, meu filho,
porque tenho um bom amo,
e com ele vivo”.

Gérard de Frachet
Vida dos Frades, L. I, c. 29

Logo de manhã foi o estudante à igreja de Saint Nicolas e ali viu o túmulo de Domingos no próprio lugar em que o tinha visto sentado sobre um trono.

Eis o que foi na vida e na morte Domingos de Gusman, fundador da Ordem dos Pregadores, um dos homens, mesmo humanamente falando, com um caráter mais arrojado e um coração mais terno que. jamais existiu. Possuía numa perfeita fusão estas duas qualidades que em geral nunca se possuem no mesmo grau. Manifestou a primeira em uma vida exterior de uma atividade prodigiosa, e a segunda em uma vida interior da qual se pode dizer que cada fôlego era um ato de amor para com Deus e para com os homens. Deixou-nos o seu século a seu respeito documentos curtos, mas numerosos. Li-os com admiração pelo talento simples e sublime de que estão repletos, e com assombro pelo caráter que atribuem ao seu herói. Porque embora estivesse certo de que S. Domingos fôra caluniado pelos escritores modernos, era-me impossível acreditar que a sua historia se prestasse tão pouco a isso. Forçoso me foi desenganar-me e adquirir uma prova do quanto é preciso muita providência da parte de Deus e muito trabalho e virtude da parte dos homens para neste mundo se poderem conservar alguns. vestígios da verdade. Narrei fielmente tudo quanto encontrei; não pude, contudo, reproduzir o amor que nesses velhos escritos superabunda pela pessoa de S. Domingos, nem os inexauríveis pleonasmos com que os escritores do século treze falam da sua doçura, da sua bondade, da sua misericórdia, da sua compaixão, e de todas as graduações que tomava no seu coração a caridade. O seu testemunho nunca pode ser suspeito, e seguramente nenhum deles pensou em escrever segundo o ponto de vista dos nossos tempos. Se eu não pude igualar a ternura da sua pena descrevendo S. Domingos, conforme os seus escritos, eles fizeram-me ao menos envergonhar da idéia de transformar a sua historia em uma apologia. A apologia é um insulto de que não carece este grande homem. Termino pois a sua vida sem o defender. Nisto imito os seus filhos, que não puseram sobre a sua sepultura epitáfio algum, certos de que ela por si só falaria bem alto. Contudo como os seus primeiros historiadores, antes de se separarem dele, reuniram piedosamente os principais traços do seu caráter, imitá-los-ei também e, reconhecendo-me incapaz de igualar a força e a singeleza do seu pincel, reproduzo o retrato venerando do meu pai, feito pelo mais antigo e ilustre dentre todos eles.

“Havia nele”,

diz o bem aventurado Jordão de Saxe,

“uma tal honestidade de costumes,
um tal ímpeto de fervor divino,
que se via logo que era um vaso de honra e de graça,
a quem não faltava nenhum adorno de valor.

Nada perturbava a igualdade da sua alma,
a não ser a compaixão e a misericórdia.

E como quando o coração está satisfeito,
esse sentimento se reflete no rosto do homem,
não era difícil,
ao ver a bondade e alegria do seu semblante,
advinhar-se a sua serenidade interior
nunca imperturbada pelo menor ímpeto de cólera.

Era firme nos seus propósitos,
e raro era mudar de parecer sobre qualquer assunto,
depois de o haver maduramente ponderado
na presença de Deus.

Por esse motivo,
posto que no seu rosto brilhasse
uma luz afável e suave,
essa luz não se prestava a ser desprezada;
antes suavemente conquistava os corações de todos,
e quem o contemplasse sentia-se logo atraído para ele.

Em qualquer parte em que se encontrasse,
quer caminhando com os seus companheiros,
quer numa casa estranha
com os donos dela e a sua família,
quer no meio dos grandes,
dos príncipes e dos prelados,
abundava em discursos e exemplos
que incitavam ao desprezo do mundo
e ao amor de Deus.

Revelava-se em toda a parte
o homem evangélico,
pelas suas palavras como pelas suas obras.
Durante o dia,
com os seus religiosos ou companheiros,
ninguém, era de um convívio mais suave e agradável;
durante a noite
também ninguém o igualava
em vigílias e orações.

Consagrava as lágrimas para de noite
e a alegria para de dia.

Dedicava o dia ao próximo,
a noite a Deus,
sabendo que Deus consagrou o dia à misericórdia
e a noite à ação de graças.

Derramava lágrimas em abundância e a miúdo;
eram as suas lágrimas
o seu pão de cada dia e de cada noite;
de dia quando oferecia o santo sacrifício;
e de noite, quando velava!

Tinha por costume passar na igreja
o tempo de descanso e não se lhe conheceu cama
em que se deitasse, senão raríssimas vezes.

Orava e velava de noite
tanto quanto o permitia
a fragilidade do seu corpo,
e quando por fim o cansaço
o forçava a dormir,
dormia um instante diante de um altar
ou em qualquer outra parte,
com a cabeça encostada a uma pedra
como o patriarca Jacó,
depois do que recomeçava a sua vida
e o fervor do seu espírito.

Compreeendia todos os homens
numa imensa caridade,
e como a todos amava,
por todos era amado.

Nada lhe era mais natural
do que regozijar-se com os que sentiam a alegria,
chorar com os que choravam,
e entregar-se todo ao próximo e aos infelizes.

Possuía ainda mais uma outra qualidade
que o tornava querido de todos.
Era a simplicidade do seu proceder,
onde nunca transpareceu a menor sombra
de artificio ou fingimento.
Amante da pobreza,
nunca andava senão com trajes pobres;
sempre senhor do seu corpo,
guardava um extremo recato
no beber e no comer,
contentando-se com qualquer comida simples,
e usando tão moderadamente de vinho
que satisfazia a necessidade da natureza,
sem embotar a fina e delicada sensibilidade da sua alma.

Quem poderá jamais atingir a virtude deste homem?
De boa vontade o admiramos
e compreendemos à vista do seu exemplo
a inércia do nosso tempo;
mas poder o que ele pôde
só é dado a uma graça especial,
se por ventura Deus a conceder mais alguma vez
a outro homem
que Ele queira elevar
ao auge da santidade.

Imitemos contudo, meus irmãos,
no limite das nossas fracas forças,
os exemplos de nosso pai,
e demos graças ao Redentor,
que nesta mesma senda que trilhamos,
deu um chefe como este a seus servos.

Imploremos o Pai das Misericórdias para que,
auxiliados por esse espírito
que rege os filhos de Deus
e caminhando no rasto de nossos antepassados,
cheguemos pelo caminho direito
à pátria eterna
onde este bem aventurado Domingos
nos precedeu.”

Vida de S. Domingos
c. 4, n. 74 ss