15.

Quinta viagem de S. Domingos a Roma. Morte do bem-aventurado Reinaldo. O bem aventurado Jordão de Saxe entra para a Ordem.

Foi na força do estio de 1219 que Domingos, descendo pela última vez o declive escarpado dos Alpes, avistou de novo a rica e vasta planície destinada a possuir uma das maiores partes da sua vida. Fôra em Castela a Velha, que se criara a sua infância e a sua mocidade; o Languedoc devorara os melhores anos da sua idade madura, Roma era o centro para onde o conduzia sem cessar o ardor da sua fé; a Lombardia havia de ser o seu túmulo. Não se sabe qual o caminho que tomou para tornar a ali entrar; os primitivos historiadores nada dizem sobre o seu itinerário até Bolonha. Foi recebido no convento de Saint-Nicolas com imenso júbilo pela multidão de religiosos que nele viviam sob o governo de Reinaldo. O seu primeiro ato foi um ato de desinteresse. Oderico Gallicani, cidadão de Bolonha, tinha recentemente dado aos religiosos, por forma legal, terras de um valor considerável. Domingos rasgou a escritura na presença do bispo, declarando que queria que os seus religiosos mendigassem o seu pão de cada dia, e que não consentiria que acumulassem bens. E de fato, nenhuma virtude lhe era mais cara do que a pobreza. Usava sempre, qualquer que fosse a estação, uma única túnica de rude estamenha, com a qual se não envergonhava de aparecer diante dos maiores fidalgos. Queria que os religiosos andassem vestidos como ele, que habitassem casas pequenas, que mesmo ao altar não se servissem de sedas nem púrpuras, e que à exceção dos cálices, não tivessem nenhum vaso de ouro nem de prata. A mesa tinha o mesmo espírito de mortificação e penitencia. Serviam-se sempre aos religiosos dois pratos, mas ele não comia senão de um. Contava Rodolfo de Faenza, procurador do convento de Bolonha, que tendo às vezes durante a estada de Domingos ali, acrescentado alguma coisa à comida habitual dos Frades, o santo o chamara e lhe dissera ao ouvido:

“Porque matais os irmãos
com essas comidas extraordinárias?”

Atas de Bolonha,
depoimento de Rodolfo de Faenza, n.2

Quando, no convento de Saint-Nicolas, faltavam o pão e o vinho, frei Rodolfo ia ter com Domingos. O santo mandava-o fazer oração; acompanhava-o mesmo à igreja para orar com ele, e a Providência dispunha as coisas de modo que deparava jantar para os seus filhos. Num dia de jejum, estando toda a comunidade já sentada no refeitório, Frei Bonvisi veio dizer a Domingos que não havia absolutamente nada para comer. O santo com ar alegre, ergueu os olhos e as mãos ao céu e deu graças a Deus por ser tão pobre. Imediatamente porém entraram no refeitório dois mancebos desconhecidos, um trazendo pães e o outro figos secos, que distribuíram entre os religiosos. Noutro dia em que não havia senão dois pães no convento todo, Domingos mandou partí-los em bocadinhos, e benzendo o cabaz, disse ao que estava a servir que fosse de roda do refeitório dando a cada religioso dois ou três desses pedacinhos. Quando acabou, Domingos mandou-lhe dar outra volta e continuar até que os religiosos estivessem saciados. Os religiosos em geral só bebiam água; mas procurava-se ter sempre algum vinho para os doentes. Um dia veio o enfermeiro queixar-se a Domingos de que faltava o vinho dos doentes, trazendo-lhe a vasilha vazia. O servo de Deus pôs-se a rezar segundo o seu costume e exortou os outros, por humildade, a fazer o mesmo; quando o enfermeiro foi pegar na vasilha, ela estava cheia. Os historiadores pouco dizem sobre a alegria dos religiosos de Bolonha à chegada de Domingos; mas compreende-se sem dificuldade o efeito da sua presença no meio de todos esses homens que não o conheciam ainda e que, no entanto, eram seus filhos. Viam com seus próprios olhos o Espanhol que os atraíra a Deus pela boca de um francês, e que ressuscitando as primitivas maravilhas da Igreja, reunira numa comunidade de apóstolos cristãos de todas as nações. Contemplavam-no, e as suas virtudes, os seus milagres, a sua palavra e sua fisionomia formavam um espetáculo como a sua imaginação nunca pudera realizar. Nesse pouco tempo que estêve com eles Domingos ainda aumentou mais a sua santa e numerosa família pelo ascendente que exercia, tanto fora como dentro do convento. Nada de mais extraordinário do que a tomada de hábito de Estêvão de Espanha. Ele próprio faz essa narração nos seguintes termos:

“Quando eu estava estudando em Bolonha,
chegou mestre ,Domingos,
e começou a pregar aos estudantes
assim como a outras pessoas.
Fui-me confessar a ele,
e pareceu-me perceber
que ele se afeiçoara a mim.
Uma noite quando me preparava
para ir à minha hospedaria
cear com os meus companheiros,
ele mandou dois religiosos dizer-me:

`Frei Domingos chama-vos,
e deseja que venhais imediatamente’.

Respondi que iria assim que tivesse ceado.
Replicaram que ele me esperava
naquele mesmo instante.
Levantei-me então,
deixando tudo para os seguir,
e cheguei a Saint-Nicolas,
onde encontrei mestre Domingos
no meio de muitos religiosos, a quem disse:

`Ensinai-lhe corno se faz a prostração’.

Depois de mo ensinarem,
prostrei-me efetivamente com docilidade,
e ele deu-me o hábito de Frade Pregador,
dizendo-me:

`Quero-vos fornecer com as armas
com que combatereis o demônio toda a vossa vida’.

Maravilhou-me muito então,
e nunca pensei depois, sem admiração,
no instinto que levou Frei Domingos
a assim me chamar
e me revestir do hábito de Frade Pregador;
porque nunca lhe falara em abraçar a vida religiosa,
e ele procedeu sem dúvida desse modo
por inspiração ou revelação divina”.

Atas de Bolonha,
Depoimento de Estevão de Espanha, n. 2

O mesmo que Domingos fizera anteriormente em, Paris, fê-lo então em Bolonha, isto é, enviou religiosos para as principais cidades do norte da Itália para aí pregarem e fundarem conventos. Nunca se afastava da sua máxima predilecta, de que

“deve-se espalhar a semente,
e não guardá-la amontoada”.

Milão e Florença receberam então colônias de Frades Pregadores. Também julgou. oportuno que Reinaldo saísse de Bolonha e fosse para Paris. Contava muito com. a sua eloqüência e com a sua fama para acabar de implantar a Ordem em França. Os religiosos de Bolonha viram-no partir com amarga saudade, chorando por tão cedo os aparatarem dos peitos de sua mãe. São estas as expressões do bem aventurado Jordão de Saxe que imediatamente acrescenta:

“Mas todas estas coisas
aconteciam por vontade de Deus.
Havia um não sei que de prodigioso na maneira
como o bem aventurado servo de Deus, Domingos,
espalhava os religiosos
por todas as regiões da Igreja de Deus,
apesar das representações
que por vezes lhe dirigiam,
e sem que nunca a menor sombra de hesitação
diminuísse a sua confiança.
Dir-se-ia que ele conhecia de antemão o resultado
porque o Espirito Santo lho revelava.
Efetivamente, quem ousa duvidar disso?
Ao princípio não tinha consigo
mais que um número resumido de religiosos,
simples e na maior parte ignorantes,
que ele enviara em pequenos grupos pela Igreja toda,
de forma que os filhos deste século,
que julgam segundo a sua prudência,
acusavam-no mais depressa de destruir
o que estava apenas começado
do que de levantar um grande edifício.
Mas ele acompanhava com as suas preces
os que assim mandava,
e a virtude do Senhor auxiliava e multiplicava-os”.

Vida de S. Domingos, c. XI, n. 45

O próprio Domingos partiu de Bolonha nos fins do mês de outubro. Atravessou os Apeninos em direcção a Florença, demorando-se algum tempo nas margens do Arno, onde mais tarde a sua Ordem havia de levantar os célebres conventos de Santa-María-Novella e de S. Marcos. Os frades já aí se serviam de uma igreja, ao pé da qual vivia uma mulher chamada Benê, conhecida pela sua vida desregrada e que Deus castigara, abandonando-a aos ataques sensíveis do espírito maligno. Esta mulher, ouvindo Domingos pregar, converteu-se, e as orações do santo livraram-na das obsessões que a atormentavam. Mas essa mesma paz foi para ela uma ocasião de recaída e quando um ano depois Domingos voltou para Florença, ela confessou-lhe os maus efeitos que lhe produzira a sua cura. Perguntou-lhe com bondade Domingos se queria voltar ao seu antigo estado e, respondendo-lhe ela que se entregava a Deus e a ele, o santo suplicou ao Senhor que fizesse o que fosse melhor para a sua salvação. Passados alguns dias, de novo a atormentou o espírito maligno, e o próprio castigo das suas culpas passadas tornou-se para ela uma fonte de merecimentos e de perfeição. Mais tarde Benê tomou o véu e ficou-se chamando Sóror Benedita. Sabe-se mais a seu respeito que quando Domingos voltou para Florença ela queixou-se amargamente de um eclesiástico que a importunava por causa de sua dedicação pelos Frades Pregadores. Este eclesiástico estava irritado contra eles porque lhes haviam dado a igreja de que ele anteriormente era capelão. Domingos respondeu a Benê:

“Tende paciência, minha filha,
aquele que vos atormenta
será em breve dos nossos
e quando ele tiver entrado na Ordem,
sofrerá grandes e longos trabalhos”.

Constantino de Orvieto,
Vida de S. Domingos, n. 37

Domingos encontrou-se com o Soberano Pontífice em Viterbo. Honório III concedeu-lhe umas cartas datadas de 15 de novembro de 1219, nas quais recomendava os religiosos aos bispos e prelados da Espanha. A 8 de dezembro seguinte estendeu essa recomendação aos arcebispos, bispos, abades e prelados de toda a cristandade. A 17 do mesmo mês, estando ele em Civita Castelana, fêz a Domingos e aos seus religiosos doação legal do convento de São Sixto no monte Celio, porque até então a Ordem só estava de posse de S. Sixto por uma concessão verbal. Não se faz no documento menção das religiosas de S. Sixto, certamente porque formavam com os religiosos uma só e mesma ordem, cuja administração espiritual e temporal pertencia ao mestre geral.

Não era a primeira vez que o Santo patriarca via Viterbo. Três anos antes, quando voltara para França depois da confirmação da sua Ordem, estivera lá com o cardeal Capocci, que lhe deu uma capela e um mosteiro denominado de Santa Cruz, situado sobre uma eminência próxima da cidade e uma igreja que se estava, por sua ordem, construindo ao lado. Fôra o cardeal avisado em sonhos que levantasse essa igreja à Santa Virgem, e a amizade que o ligava a Domingos levara-o a oferecer-lha mesmo antes de acabada, com medo que o tempo atraiçoasse a sua boa vontade. Não teve de fato a satisfação de ve-la concluída; contudo, antes de morrer confirmou à Ordem a sua posse, e ela veio a ser sob o nome de Nossa Senhora dei Gradi, um dos mais ilustres conventos da província romana. Ainda ali se vêem restos da antiga capela de Santa Cruz, na qual Domingos passava as. suas noites, e que até ao ultimo século conservava os vestígios do seu sangue.

Celebrou Domingos em Roma o começo do ano 1220. Uma frase de um historiador diz-nos que ele distribuíu pelas religiosas de S. Sixto colheres de ébano que lhes trouxera da Espanha. Tal era a simplicidade deste grande homem! A idéia de dar gosto às pobres religiosas preocupara-o no meio das fadigas e dos afazeres de uma longa viagem, e trouxera-lhes às costas, num percurso de seiscentas a setecentas léguas, uma lembrança da sua pátria. Digo às costas, porque não consentiu nunca que outra pessoa lhe levasse a sua bagagem.

Entretanto chegara Reinaldo a Paris e ai anunciava o Evangelho, com toda a autoridade da sua eloqüência e da sua fé. Era ele então, depois de Domingos, o mais brilhante astro da nova Ordem. Todos os religiosos tinham os olhos postos nele e, sem preverem a morte muito próxima do seu fundador, viam com júbilo que ele não era o único capaz de poder com o peso da sua obra. Deus porém breve iludiu estes sentimentos de amor e de admiração. Reinaldo foi atacado de uma doença mortal na ocasião mesmo em que mais se esperava dele. O prior de Saint Jacques, Mateus de França, veio avisá-lo de que estava próxima a hora do seu último combate e perguntar-lhe se não queria receber a unção.

“Não temo o combate”,

respondeu Reinaldo,

“antes com alegria o aguardo.
Espero também na Mãe de Misericórdia
que em Roma me ungiu com as suas próprias mãos,
e em quem me confio;
mas para não parecer que desprezo a unção eclesiástica,
apraz-me também recebê-la, e peço-a”.

Gérard de Frachet,
Vida dos Frades, Liv. V, cap. 2

Não sabiam então os religiosos, pelo menos a maior parte, a maneira misteriosa como Reinaldo fora chamado para a Ordem; porque ele pedira a Domingos que não falasse nisso enquanto ele fosse vivo. Porém, occorrendo-lhe à memória à hora da morte a lembrança desse insigne favor, não pôde deixar de aludir a ele e a gratidão arrancou-lhe o segredo que a sua humildade até aí ocultara. Já anteriormente se servira, fosse com Mateus de França, de umas expressões que a história nos conservou. Este que o conhecera outrora no mundo, vivendo com todo o luxo da celebridade e da efeminação, manifestara-lhe a sua admiração por ele ter entrado para uma instituição tão severa.

“Não tenho merecimento algum nisso”,

respondeu,

“porque sempre nela me senti feliz extremamente”.

B. Jordão de Saxe,
Vida de S. Domingos, C. III, p. 46

Não se sabe o dia certo da sua morte; foi nos fins de janeiro ou princípios de fevereiro de 1220. Não tendo ainda os religiosos o direito de sepultura nas suas casas, enterraram-no na igreja de Notre-Dame-des-Champs, próximo de Saint Jacques. Os seus restos, sobre os quais se erigiu um monumento, operaram milagres e foram durante quatrocentos anos objeto de um culto cuja tradição parecia dever ser eterna. Porém no ano de 1614, sendo a igreja de Notre-Dame-des-Champs dada às carmelitas reformadas de Santa Teresa, as religiosas transportaram para o interior do seu claustro o corpo de Reinaldo e, apesar da sua hereditária veneração por ele, a sua memória cessou pouco a pouco de ser popular; torno-se, como a sua sepultura, o segredo só daqueles que conhecem e habitam em espírito a antigüidade. Hoje já nem mesmo o túmulo existe; desapareceu com a igreja e o claustro de Notre-Dame-des-Champs; e o fundador do convento de Bolonha, aquele que os religiosos chamavam o seu esteio, que a Santíssima Virgem chamara com a sua própria boca à religião, que recebera dela sobre os seus membros uma unção milagrosa, que dera ao nosso hábito a sua última e sagrada forma, numa palavra, o bem- aventurado Reinaldo não goza de culto em parte alguma, nem mesmo na Ordem dos Frades Pregadores. Estas palavras, no entanto, devem ser entendidas apenas enquanto aplicadas ao culto ratificado pela igreja; porque o B. Reinaldo nunca deixou de ser na sua ordem objeto de um culto verdadeiramente eclesiástico que se espera ser em breve confirmado pela Santa Sé. Foi ele para a Ordem um de seus mais belos ornamentos, pela santidade da sua vida, pelo poder da sua palavra, e pela grande quantidade de filhos ilustres que lhe atraíu. Esta sua fecundidade só acabou com a morte. Na própria véspera da sua última e curta doença ainda brotaram do seu tronco sublimes rebentos.

Recorda-se por certo o leitor do estudante saxônio que Domingos conheceu em Paris, e cuja vocação ele não quisera precipitar, posto que fosse já bastante visível. Estava reservado a Reinaldo o colher essa preciosa flôr, que a mão de Domingos respeitara por uma espécie de pressentimento delicado, para glorificar e consolar o prematuro fim de um dos seus mais dignos filhos. Eis Como Jordão de Saxe narra a sua entrada para a Ordem, assim como a de Henrique de Colônia, seu amigo:

“Na própria noite em que a alma
do santo homem voou para o Senhor,
eu que ainda não era religioso pelo hábito,
mas que fizera voto de o receber das suas mãos,
vi em sonhos os religiosos dentro de uma nau.
De repente submergiu-se a nau,
mas os religiosos não pereceram no naufrágio;
pensei que essa nau representava Frei Reinaldo,
nesse tempo considerado pelos religiosos como seu arrimo.
Houve outro que viu em sonhos
uma límpida fonte secar-se repentinamente
e ser logo substituída por dois rios caudalosos.
Supondo que esta visão representasse uma coisa real,
conheço demasiado a minha indignidade
para me atrever a interpretá-la.
Sei só que Reinaldo apenas recebeu em Paris
a profissão de dois religiosos,
a minha e a de frei Henrique,
que depois foi prior de Colônia,
homem que eu amava em Cristo
de um afeto como nunca dediquei
a nenhum outro homem,
vaso de honra e de uma tal perfeição,
que me não lembro nesta vida
de ter visto criatura mais cheia de graça.
Teve o Senhor pressa em o chamar para si,
por conseguinte não será ocioso
dizer alguma coisa sobre as suas virtudes.

Tivera Henrique no mundo
um nascimento ilustre,
e fôra muito novo ainda
nomeado cônego de Utrecht.
Um outro cônego da mesma igreja,
homem de bem e de grande religião,
educara-o desde os seus mais tenros anos
no temor do Senhor.
Ensinara-lhe com o seu exemplo
a vencer o século,
crucificando a carne e praticando boas obras;
fazia-lhe lavar os pés aos pobres,
freqüentar a igreja,
evitar o mal, desprezar o luxo,
amar a castidade;
e sendo este mancebo
dotado duma índole excelente,
mostrava-se dócil ao jugo da virtude;
nele cresceram as boas obras a par com a idade,
e quem o visse toma-lo-ia por um anjo
cujo nascimento e bondade se igualavam.
Veio para Paris, onde o estudo da teologia
não tardou a roubá-lo a todas as outras ciências,
sendo, como era, dotado de um talento natural
e de uma razão perfeitamente bem equilibrada.
Encontramo-nos na hospedaria onde eu estava,
e não tardou que a nossa convivência corporal
se transformasse em uma suave
e estreita união das nossas almas.
Frei Reinaldo, de venturosa memória,
vindo também nessa mesma época a Paris,
e pregando com energia,
senti-me movido pela graça,
e fiz interiormente o voto
de entrar para a sua Ordem;
pois julgava nela encontrar
o caminho seguro da salvação,
tal como a miúdo mo representara a mim mesmo,
antes de conhecer os religiosos.
Tomada esta resolução,
comecei a desejar ligar pelo mesmo voto
o companheiro e amigo da minha alma,
em quem eu via todas as disposições
da natureza e da graça
necessárias a um pregador.
Ele recusava-se e eu continuava a insistir.
Consegui que ele fosse confessar-se a Frei Reinaldo e,
quando ele voltou,
abrindo o profeta Isaías,
como se o quisera consultar,
dei com a seguinte passagem:

`O Senhor deu-me uma língua sapiente
para que eu ampare com a minha palavra
os que pecam;
desperta-me de manhã
a fim de que eu ouça a sua voz.
O Senhor Deus fêz-me ouvir a sua voz,
e eu não lhe resisto,
não volto para tráz’.

Interpretando-lhe eu esta passagem,
que tão bem correspondia ao estudo do seu coração,
apontando-lha como um aviso do céu,
e exortando-o a submeter
a sua pouca idade ao jugo da obediência,
notamos algumas linhas mais abaixo
estas duas palavras:

`Conservemo-nos juntos’,

que pareciam avisar-nos
a que não nos separássemos um do outro
e a consagrarmos a nossa vida
a um igual sacrifício.
Foi aludindo a esta circunstancia que,
estando ele na Alemanha, e eu em Itália,
ele me escreveu um dia perguntando-me:

`O que é feito do conservemo-nos juntos?
Estais em Bolonha e eu na Colônia!’

Respondi-lhe então:

`Que maior merecimento pode haver,
que mais gloriosa coroa,
do que tornarmo-nos participantes
da pobreza do Cristo e de seus apóstolos,
e abandonar o mundo pelo seu amor!’

Mas por mais que a sua razão
o fizesse concordar comigo,
a sua vontade persuadia-o a resistir-me.
Na mesma noite em que tivemos essa conversa,
foi ele ouvir matinas
à igreja da bem aventurada Virgem,
e ali ficou até de madrugada,
rogando a Mãe do Senhor
que lhe fizesse vencer a revolta
que sentia dentro de si.
E como visse que a dureza do seu coração
se não abrandava com as suas súplicas, pôz-se a dizer:

`É agora, ó Bem aventurada Virgem,
que sinto que não tendes de mim compaixão,
e que não tenho lugar marcado
na corporação dos pobres de Cristo!’

Isto dizia cheio de dor,
porque sentia dentro de si
um grande desejo da pobreza voluntária,
e porque o Senhor lhe manifestara uma vez
a grande importância que ela terá no dia de juízo.

O caso passara-se assim.

Viu em sonhos a Cristo no seu tribunal,
e duas prodigiosas multidões,
uma que estava sendo julgada
e a outra que julgava com Jesus Cristo.
Enquanto que, com a sua consciência segura,
ele contemplava tranquilamente este espetáculo,
um dos que estavam ao lado do juiz,
apontando de repente para ele,
disse-lhe:

`Tu que aí estás em baixo,
o que abandonaste tu pelo Senhor?’

Ficou consternado ao ouvir esta pergunta,
porque não sabia o que havia de responder e,
sendo por esse motivo
que ele desejava a pobreza,
posto que não tivesse coragem de a abraçar,
saíu da igreja de Notre-Dame,
triste por não ter obtido a força que solicitara.
Nesse mesmo momento, porém,
Aquele que lá do alto acode aos humildes
operou uma completa transformação
nos sentimentos do seu coração;
rios de lágrimas correram aos seus olhos;
a sua alma abriu-se e expandiu-se perante o Senhor,
toda a dureza que o oprimia desfez-se,
e o jugo de Cristo,
tão duro até ali na sua imaginação,
apresentou-se-lhe tal qual realmente é,
suave e ligeiro.
No primeiro momento de transporte
levantou-se e correu a procurar Frei Reinaldo,
e na sua presença pronunciou os seus votos.
Em seguida veio ter comigo e,
notando eu no seu angélico rosto vestígios de lágrimas,
e perguntando-lhe onde estivera,
respondeu-me:

`Fiz ao Senhor um voto,
e hei de cumprí-lo’.

Demorámos contudo a nossa tomada de hábito
até ao tempo da quaresma,
e adquirimos nesse intervalo mais um companheiro,
frei Leão,
que depois sucedeu a frei Henrique
no cargo de prior.
Chegado o dia em que a Igreja,
pela imposição das cinzas,
adverte os fiéis da sua origem
e de que hão de voltar ao pó de que foram feitos,
decidimo-nos a cumprir o nosso voto.
Os nossos outros companheiros
nada sabiam do nosso projeto e um deles,
vendo o Fr. Henrique sair da hospedaria,
disse-lhe:

`Onde ides Sr. Henrique?’

`Vou’,

respondeu ele,

`a Betânia’,

aludindo ao sentido hebraico dessa palavra,
que quer dizer casa da obediência.
Dirigimo-nos efetivamente todos os três
para Saint-Jacques,
e entramos no momento em que os Frades cantavam

`Immutemur habitu’.

Eles não contavam com a nossa visita;
mas, posto que imprevista,
não deixou de ser oportuna,
e nos despojamos do velho homem
e nos revestimos do novo,
enquanto os Frades cantavam
o mesmo que nós fazíamos”.

Vida de S. Domingos, C.III, n. 47 ss.

Não viu Reinaldo com os olhos da carne a tomada de hábito de Jordão de Saxe e Henrique de Colônia; voltara para Deus antes de haver completado este útimo trabalho, semelhante ao aloés que ao dar flor morre e não chega nunca a ver os seus frutos.