14.

Viagem de S. Domingos a Espanha e França. Suas vigílias na gruta de Segóvia. Seu modo de viajar e de viver.

Depois de Domingos à custa de um ano de trabalhos ter fundado S. Sixto e Santa Sabina, volveu os olhos para os países longínquos por onde dispersara os seus primeiros filhos. Sentiu um grande desejo de os tornar à ver, de os fortalecer pela sua presença e de com eles bendizer a Deus pelos males e bens que lhes havia enviado. Partiu pois para Roma no outono de 1218, acompanhado de alguns religiosos da sua ordem e de um frade menor chamado Alberto, que no caminho se juntou a eles. Chegados não sei a que ponto da Lombardia, pararam em uma hospedaria e sentaram- se à mesa com os outros viajantes que já ali se achavam. Serviram-lhes um prato de carne; mas Domingos e os seus companheiros recusaram comê-la. Vendo a estalajadeira que eles se contentavam só com pão e um pouco de vinho, encheu-se de cólera contra o santo, e cobriu-o de injúrias. Domingos debalde se esforçou por apaziguá-la com paciência e boas palavras, mas nem ele nem as pessoas presentes conseguiram suster a torrente das suas invectivas, até que por fim Domingos disse-lhe com doçura:

“Minha filha,
para aprenderes a receber
com caridade os servos de Deus,
por consideração pelo amo que servem,
rogo a Jesus Nosso Senhor
que vos imponha silencio”.

Pedro Celi
Vida de S. Domingos, n. 20

Apenas acabou de falar ficou muda a estalajadeira. Oito meses depois, quando à volta de Espanha passou pelo mesmo sítio, essa mulher reconheceu-o e, lançando-se-lhe aos pés, pediu-lhe perdão, debulhada em lágrimas. Domingos fez-lhe o sinal da cruz na boca, e imediatamente se lhe soltou a língua. Frei Alberto, por quem se soube esta história, contava também que tendo-lhe um cão rasgado a túnica, o Santo juntou os bocados com um pedaço de barro, e assim a concertou.

Tendo atravessado os Alpes, Domingos achou-se de novo nessas estradas de Languedoc que tão suas conhecidas eram. Tudo estava porém completamente mudado, nem mesmo teve a consolação de poder orar sobre a sepultura do seu magnânimo amigo, o conde de Montfort. Os seus restos mortais haviam sido transportados para a abadia de Fontevraud, longe do país onde fôra coroado duque e conde e onde a sua espada, morta com ele, não podia já proteger o seu caixão. Após uma rápida visita a S. Romão de Toulouse e a Notre Dame de Prouille, Domingos dirigiu-se imediatamente para a sua pátria, cujo solo havia quinze anos não pisara. De lá saíra simples cônego de Osma, para lá voltava apóstolo, taumaturgo, fundador de uma ordem, legislador, patriarca, destruidor das heresias do seu tempo, e um dos mais potentes servos da Igreja e da verdade. Esta glória, porém, era o seu único cortejo e a sua única bagagem. Quem o encontrasse nos desfiladeiros dos Pirineus, dirigindo-se para Espanha, toma-lo-ia por um mendigo estranho que vinha aquecer-se ao ardente sol da Ibéria. Para onde se encaminhou primeiro? Seria para o vale do Douro? Esperavam-no porventura no palácio de onde seu pai e sua mãe haviam sido expulsos pela morte? Iria orar sobre a sua sepultura em Gumiel de Izan, ou sobre a de Azevedo em Osma ? Contemplá-lo-ia porventura a abadia de S. Domingos de Silos, ajoelhado sobre aquelas lajes onde sua mãe alcançara consolação, por meio de enigmáticos presságios? Nada nos diz a história a respeito de tudo isto, nem carecia a história dizer-nos o que o coração do santo por si próprio nos revela. Com Jesus Cristo aprendera a enaltecer todos os sentimentos naturais sem destruir nenhum. O primeiro lugar certo onde o encontramos em Espanha dá-nos uma prova da ternura que conservara pelo seu país natal. Torna a historia. a pô-lo em cena em Segóvia, cidade próxima de Osma, e uma das principais de Castela a Velha. Hospedara-se em casa de uma pobre mulher, que não tardou em descobrir o tesouro que possuía. Desde a sua estada no Languedoc, Domingos tinha por costume trazer sempre vestido um duro cilício de lã ou de crina. Estando pois em Segóvia, em casa dessa pobre mulher, desfêz-se da camisa de lã que trazia por dentro para pôr uma de tecido mais áspero. A dona da casa, notando isso, por um sentimento de veneração escondeu num cofre a túnica que o Santo abandonara. Dali a algum tempo, pegou fogo o quarto quando ela lá não estava e todos os seus móveis foram pasto das chamas, menos o cofre que com a relíquia continha os seus objectos mais preciosos.

Outro milagre provocou o público reconhecimento de todos os habitantes de Segóvia. Estavam próximas as festas do Natal do ano de 1218 e uma persistente seca impedira até então que se semeassem as terras. O povo todo reunira-se fora da cidade para, em preces publicas, implorar de Deus a terminação do flagelo. Domingos levantou-se no meio da multidão e, depois de umas palavras que não conseguiram dissipar a inquietação geral, exclamou:

“Cessai de vos afligir,
meus irmãos,
confiai na misericórdia de Deus ;
porque Ele hoje mesmo vos enviará
uma chuva abundante,
e a vossa tristeza se transformará em alegria”.

Gérard de Frachet
Vida dos Frades, L. II, c. 6

Embora não tivesse havido sinal algum prévio de mudança de tempo, o céu começou logo a escurecer, as nuvens a amontoaram-se e o discurso do santo foi interrompido por uma chuva fortíssima que dispersou a assembléia. Os habitantes de Segóvia comemoraram este milagre levantando uma capela no próprio sítio em que ele se dera.

Em outra ocasião, assistindo Domingos a uma reunião onde se achavam os principais habitantes da cidade, depois de se lerem umas cartas do rei, tomou ele a palavra nos seguintes termos:

“Acabais de ouvir, meus irmãos,
a vontade do rei terrestre e mortal:
escutai agora as ordens do Rei celeste e imortal”.

Ouvindo isto um dos fidalgos, irado, disse alto:

“Porventura quererá este falador
prender-nos aqui todo o dia
e impedir-nos de ir jantar?”

E ao mesmo tempo virou o cavalo para casa. O servo, de Deus disse-lhe então:

“Retirai-vos agora;
porém antes de acabar o ano,
neste mesmo lugar onde agora estais,
o vosso cavalo ficará sem cavaleiro,
e debalde para escapar aos vossos inimigos
fugireis para a torre que fizestes edificar
na vossa casa”.

Gérard Frachet,
Vida dos Frades, L. II, c. 7

Verificou-se plenamente esta profecia; antes do fim do ano, esse fidalgo foi assassinado, assim corno o seu filho e um dos seus parentes, no próprio local onde ele se encontrava quando Domingos lhe dirigiu a palavra.

Segovia está situada entre duas colinas separadas por um rio. Sobre a colina do norte onde não chegam os muros da cidade descobrira Domingos uma gruta solitária adequada aos mistérios da penitência e da contemplação. Foi aí que ele lançou os fundamentos de um convento a que deu o nome de Santa Cruz. Enquanto se construíam os seus muros nas modestas proporções que o santo afeiçoava, fêz da gruta vizinha o seu oratório noturno, porque tinha por costume dedicar uma parte da noite à oração e a toda a espécie de exercícios espirituais. Dava o dia aos homens, à pregação, às viagens e aos negócios, mas quando o sol se punha convidando ao descanso, ele também se retraía do mundo e procurava em Deus as forças de que a sua alma e o seu corpo careciam. Ficava no coro no fim de completas tendo cuidado de que nenhum dos religiosos o imitasse, ou porque lhes não quisesse impor um exemplo acima das suas forças, ou porque um santo pudor lhe fizesse recear que se descobrissem os segredos das suas comunicações com Deus. Mas a curiosidade mais de uma vez foi superior a estas precauções; os religiosos escondiam-se nas partes sombrias da igreja para espreitarem as suas vigílias, e foi desse modo que se chegou ao conhecimento de muitas tocantes particularidades sobre elas. Logo que se sentia só, protegido no seu amor pelas sombras e silêncio da noite, começavam suas inefáveis expansões com Deus. O templo, símbolo da cidade permanente dos anjos e dos santos, tornava-se para ele como que um ser animado, que procurava enternecer com suas lágrimas, com seus gemidos e com seus clamores. Andava em volta dele, parando diante de cada altar a fazer oração, umas vezes curvado profundamente, outras prostrado ou de joelhos. Era geralmente por uma inclinação profunda que ele começava a venerar a Jesus Cristo, como se o altar, símbolo e recordação do seu sacrifício, fosse a própria pessoa dele. Prostrava-se depois com a face no chão e ouviam-no repetir alto estas palavras do Evangelho:

“Senhor, tende piedade de mim,
porque sou um pecador”,

e estas de Davi:

“A minha alma está presa à terra,
concedei-me a vida
segundo a Vossa promessa”;

e outras semelhantes. Tornando-se a levantar, contemplava fixamente o crucifixo. Depois ajoelhava um certo número de vezes, ora contemplando, ora adorando. De vez em quando interrompia esta contemplação muda com grandes brados, dizendo:

“Senhor a vós clamei.,
não vos afasteis de mim,
não sejais surdo às minhas preces”,

e outras expressões tiradas da Escritura. Outras vezes demorava-se mais tempo de joelhos, as palavras deixavam então de lhe subir do coração aos lábios; parecia entrever o céu com os olhos da inteligência e enxugava as lágrimas que lhe corriam pelas faces; o seu peito arquejava como o do viajante que se aproxima da pátria. Outras vezes conservava-se de pé, com as mãos abertas diante de si como um livro, que parecia estar lendo com atenção; ou então erguia-as ambas até aos ombros, na atitude de um homem que está à escuta ; ou cobria com elas os olhos para poder meditar mais profundamente. Viam-no também erecto na ponta dos pés, o rosto voltado para o céu, com as mãos postas por cima da cabeça em forma de flecha, separando-os depois como para implorar, e pô-las outra vez como se tivesse obtido o que desejava, e nesse estado, em que parecia não ser já deste mundo, costumava dizer:

“Senhor, atendei-me enquanto que vos rogo,
enquanto que ergo as mãos
para a vossa santíssima morada”.

Uma das formas de oração que ele empregava raras vezes, e só quando queria obter de Deus alguma graça extraordinária, era conservar-se de pé, com os braços estendidos em cruz, à imitação de Jesus Cristo moribundo e dirigindo a seu Pai esses brados potentes que salvaram o mundo. Dizia então num tom de voz grave e distinto:

“Senhor, a vós bradei,
para vós ergui as mãos todo o dia,
para vós ergui . as mãos;
minha alma está diante de vós,
como uma terra sem agua,
atendei-me sem tardar”.

Orara assim quando ressuscitou o jovem Napoleão; porém os que se achavam presentes não ouviram as palavras que ele pronunciou, e nunca se atreveram a perguntar-lhe o que dissera.

Além das preces particulares que as necessidades e acontecimentos de cada dia inspiravam a Domingos, tinha ele sempre presente na mente a causa da Igreja universal. Orava pela extensão da fé nos corações dos cristãos, pelos povos ainda imersos na escravidão do erro, pelas almas expiando no purgatório o resto dos seus pecados!

“Tinha um tal amor pelas almas”,

diz uma das testemunhas no processo da sua canonização,

“que se estendia não só a todos os fiéis,
como aos infiéis e àqueles mesmos
que estavam sofrendo os tormentos do inferno,
e por eles vertia abundantes lagrimas”.

Atas de Bolonha,
Depoimento de Frei Ventura, n. 9

Porém as lágrimas não o satisfaziam; três vezes por noite juntava o seu sangue às suas preces, satisfazendo desse modo tanto quanto podia essa sede de imolação, que é a parte generosa do amor. Ouviam-no disciplinar- se com nós de ferro, e a gruta de Segóvia, testemunha de todos os excessos da sua penitência, conservou durante séculos vestígios do sangue que nela vertera. No íntimo do seu coração, dividia este sangue em três partes: a primeira pelos seus pecados, a segunda pelos pecados dos vivos; a terceira pelos pecados dos mortos. Mais de uma vez mesmo, obrigou um dos Religiosos a dar-lhe a disciplina para assim aumentar a humilhação e dor do seu sacrifício.

“Um dia virá em que
na presença do céu e da terra os anjos do Senhor
colocarão sobre o altar do julgamento duas taças cheias;
uma mão irrefutável as pesará a ambas;
e então se verá, para a glória eterna dos santos,
que cada gota de sangue vertida por amor
terá salvo torrentes dele”.

Depois de Domingos ter por largo tempo velado, orado, derramado lágrimas, oferecendo em sacrifício a sua alma e o seu corpo, se o toque de matinas o não avisava do despertar dos religiosos ia ele próprio vê-los, como se uma longa ausência os houvesse separado. Entrava muito de mansinho nas suas celas, fazia sobre eles o sinal da cruz e compunha a roupa àqueles a quem se tivesse desarranjado durante a noite. Voltava depois para o coro a esperar por eles. Às vezes surpreendia-o o sono nestes seus piedosos mistérios noturnos ; encontravam-no então encostado a um altar ou estendido no chão. Quando tocava a matinas, juntava-se aos religiosos, e indo de um. lado do coro ao outro exortava-os a que salmodiassem com todas as suas forças e alegremente. Depois do ofício retirava-se para dormir em algum. canto da casa; porque não tinha, como os outros frades, uma cela própria e deitava-se mesmo vestido no primeiro sítio que encontrasse, em cima de um banco ou sobre a palha no chão e às vezes no esquife dos defuntos. Dormia tão pouco durante a noite que muitas vezes adormecia à mesa no meio de alguma refeição.

Quando saíu de Segóvia, onde deixou como prior frei Corbalan, Domingos foi a Madri. Ali encontrou um convento já começado. Supõe-se que tivesse sido por Pedro de Madrid, um dos que Domingos enviara para Espanha quando os frades se dispersaram. Esse convento ficava fora dos muros da cidade. Mudou-lhe Domingos o fim a que fôra destinado; em lugar de frades instalou nele freiras, e dedicou-o a S. Domingos de Silos. Porém o nome de Silos desapareceu com o tempo e ficou o convento dedicado ao seu fundador, por uma insensível transformação em que todos foram cúmplices. E' digno de nota que tanto em Espanha como em França, e na ltalia o Santo Patriarca mostrava tanto zelo em fundar casas para freiras como para frades, lembrando-se sempre de que Nossa Senhora de Prouille fôra a primeira das suas instituições. Ficou-nos um documento da sua solicitude pelas religiosas de Madri numa carta que lhes escreveu pouco depois da sua fundação, concebida nos seguintes termos:

“Frei Domingos, prior dos Pregadores,
à Madre Prioresa
e a todo o convento das Freiras de Madri,
saúde e aperfeiçoamento de vida
pela graça de Deus, Nosso Senhor.

Muito nos regozijamos
e muitas graças damos a Deus
pelo vosso progresso espiritual,
e por vos haver retirado da lama deste mundo.
Combatei, minhas filhas,
o vosso antigo inimigo com orações e jejuns,
porque só será coroado
o que tiver legitimamente combatido.
Até aqui faltava-vos uma casa capaz
onde pudésseis seguir todas as regras
da nossa santa religião;
mas agora não tendes motivo de desculpa,
porque pela graça de Deus
estais de posse de um edifício
onde essa prática regular se pode fielmente observar.
Eis a razão porque eu desejo
que de hoje em diante se observe silêncio
em todos os lugares designados
pelas constituições da ordem, a saber :
no coro, no refeitório e nos corredores,
e que em todos os outros lugares
vivais segundo as vossas regras.
Que nenhuma de vós transponha
as portas do convento
e que ninguém entre dentro
senão o bispo ou qualquer prelado para pregar,
ou para fazer uma visita pública.
Não abandoneis a disciplina e as vigílias;
sede obedientes à vossa prioresa;
não percais tempo em conversas ociosas
. E como nos é impossível prover
às vossas necessidades temporais,
não querendo por outro lado agravá-las,
proibimos a todo e qualquer religioso
que aceite noviças que fiquem ao vosso encargo;
esse poder só pertence à prioresa
de acordo com o conselho do convento.
Recomendamos ao nosso caríssimo irmão Manés,
que tanto tem trabalhado pela vossa casa
e vos fez abraçar esse santo estado,
que disponha, regule e ordene as coisas
como melhor lhe parecer,
para viverdes santa e religiosamente.
Concedemos-lhe também o poder de vos visitar,
de vos corrigir e mesmo,
se assim o julgar necessário,
de demitir a prioresa
ainda que não sem o consentimento
da maior parte das religiosas;
poder-vos-á também conceder dispensas,
conforme o julgar prudente.
Adeus em Jesus Cristo”.

Marnachi, Anais dos
Frades Pregadores, V.1, Ap.p.60

Muitos outros conventos de Espanha reclamam a honra de haverem sido fundados ou preparados por Domingos. Estando os primitivos historiadores calados a esse respeito, não julgamos nós a propósito mencionar essas pretensões, que de resto a pequena demora de Domingos em Espanha, não confirma assaz. Não mencionaremos senão Valência, onde o Santo passara dez anos da sua mocidade, e onde parece certo que estabeleceu uma confraria do Rosário e um convento sob o nome de S. Paulo.

Em Guadalajara, não longe de Madrid, viu-se Domingos abandonado pelos religiosos que levava consigo. Só três se lhe conservaram fiéis, frei Adão e dois conversos. Voltando-se para um deles, perguntou-lhe se não queria também deixá-lo:

“Deus não permita”,

respondeu o Irmão,

“que eu abandone a cabeça
para seguir os pés!”

Gérard de Frachet
Vida dos Frades L.II, c.5

Esta deserção fôra predita a Domingos em uma visão. Sem se alterar começou a orar pelas ovelhas desgarradas e teve a consolação de ver quase todas voltar ao aprisco. Foi provavelmente em seu favor que próximo de Toulouse, não havendo para o jantar dos oito que então eram senão um copo de vinho ele o acrescentou milagrosamente,

“movido de compaixão”,

dizem os historiadores,

“por alguns dos frades
tratados com muito mimo
quando viviam no mundo”.

Vicente de Beauvais
Miroir histor., L. XXX, c. 77

Em Toulouse Domingos encontrou Bertrand de Garrigue, um dos seus discípulos mais antigos. Partiram juntos para Paris, visitando de passagem o célebre lugar de peregrinações Roc-Amadour, antigo santuário dedicado à Bem-aventurada Virgem, em uma escarpada e selvagem solidão do Quercy.

“Na madrugada da noite
que tinham consagrado a essa devoção
foram alcançados na estrada
por uns peregrinos alemães,
que ouvindo-os recitar salmos e ladainhas
os foram seguindo devotamente.
Na primeira povoação a que chegaram,
os seus novos companheiros convidaram-nos
a jantar e o mesmo fizeram
quatro dias consecutivos.
No quinto dia disse o bem-aventurado Domingos,
cheio de aflição,
a Bertrand de Garrigue:

`Irmão Bertrand,
pesa-me na consciência ver
que nos aproveitamos dos bens temporais destes peregrinos
sem poder desenvolver neles os espirituais.
Por conseguinte ajoelhemo-nos
e peçamos a Deus a graça
de compreender e falar a sua língua,
para que lhes possamos anunciar o Senhor Jesus’.

Assim que acabaram de rezar,
começaram a expressar-se em alemão,
com grande admiração dos peregrinos,
e durante os quatro dias mais
que estiveram juntos até Orléans
falaram sempre sobre Jesus Nosso Senhor.
Em Orléans os peregrinos tomaram a estrada de Chartres,
deixando Domingos e Bertrand na de Paris,
depois de se despedirem deles
e de se recomendarem às suas orações.
No dia seguinte o bem aventurado Padre
S. Domingos disse a Bertrand:

`Irmão, eis-nos quase em Paris,
se os religiosos sabem do milagre
que o Senhor fez,
considerar-nos-ão santos,
ao passo que nós somos pecadores,
e se chega aos ouvidos das pessoas de qualidade,
a nossa humildade corre grandes riscos;
por conseguinte proíbo-vos de falar nisso
seja a quem fôr,
antes da minha morte”.

Gérard de Frachet
Vida dos Frades L. II, cap. 10

Uma das primeiras casas que atraíu as vistas de Domingos quando entrou em Paris pela porta de Orléans foi o convento de Saint-Jacques. Nele havia já trinta religiosos. O santo patriarca só se demorou aí poucos dias, durante os quais deu o hábito a esse jovem Guilherme de Montferrat que conhecera em Roma em casa do Cardeal Ugolino, e que lhe prometera fazer-se Frade Pregador assim que tivesse estudado dois anos teologia na Universidade de Paris. Cumpriu, nessa ocasião, a sua palavra. Aconteceu também nesse tempo Domingos encontrar-se com um bacharel saxônio chamado Jordão. Era um mancebo hábil, eloqüente, afável e temente a Deus. Nascera na diocese de Paderborn da ilustre família dos condes de Ebernstein e viera a Paris para se instruir nos princípios da ciência divina. Estimulado por Deus, que o destinara para ser o primeiro sucessor de Domingos no governo geral dos Pregadores, sentiu-se logo atraído para o grande homem, cujo herdeiro havia de ser e expôs-lhe a impressão ardente que Jesus Cristo fizera sobre o seu coração. Não quiz Domingos, cujo contato era geralmente decisivo, apressar a marcha desta alma predestinada; somente aconselhou ao jovem saxônio que experimentasse o jugo de Deus, recebendo as ordens do diaconato, e deixou-o lutar com as inspirações do céu, enquanto não chegasse a mão que o colheria em plena maturação.

Nada manifesta melhor o arrojo e impetuosidade do gênio de Domingos do que a ação exercida no convento de Saint-Jacques pela sua curta aparição. Havia perto de um ano que o trabalho pertinaz de alguns homens de mérito conseguira ali reunir trinta religiosos, e todos os esforços dessa recente comunidade se limitavam a procurar aumentar o seu número por meio de uma penosa multiplicação. Chega Domingos, lança os olhos sobre a pequena comunidade francesa, e julga-a suficiente para povoar a França de Pregadores. Por sua ordem, parte Pedro Celani para Limoges, Felipe para Reims, Guerric para Metz, Guilherme para Poitiers, alguns outros Religiosos para Orléans, todos incumbidos da missão de pregarem nessas cidades e de nelas estabelecerem conventos. Pedro Celani expõe a sua ignorância, e a penúria de livros em que está; Domingos responde-lhe com uma intrépida confiança em Deus:

“Vai filho, vai sem receio;
duas vezes por dia
pensarei em ti diante de Deus;
não duvides.
Conquistarás multas almas,
produzirás frutos,
crescerás e multiplicar-te-ás,
e o Senhor será contigo”.

Bernardo Guidonis,
Catálogo dos Mestres de Ordem

Contava Pedro Celani mais tarde na intimidade, que cada vez que se sentia aflito, interior ou exteriormente, se lembrava desta promessa e invocando a Deus e a Domingos, tudo lhe correra bem.

Domingos saíu de Paris pela porta de Borgonha. Em Chatillon-sur- Seine, ressuscitou o sobrinho de um eclesiástico em cuja casa se hospedara. Caíra esta criança de um andar superior, e levantaram-no meio morto. Seu tio deu um grande banquete em honra do santo. Vendo Domingos que a mãe da criança não comia, porque estava com febre, ofereceu-lhe um pedaço de enguia que benzera, dizendo-lhe que comesse pela virtude de Deus, e esse remédio curou-a imediatamente.

“Depois disto voltou o glorioso padre para a Itália,
acompanhado de um irmão converso chamado João.
Este irmão caíu doente por efeito da fome
no meio dos Alpes Lombardos,
e não podia andar
nem mesmo levantar-se do chão.
O piedoso padre Domingos perguntou-lhe:

`Que tendes filho,
por que ficais parado?’

`Santo Padre,
é porque me sinto morrer
de inanição’.

Redarguiu-lhe o santo:

`Coragem, andemos mais um pouco
e chegaremos a algum sítio
onde encontraremos alguma coisa
para restaurar as nossas forças’.

Como, porém, o irmão respondesse
que lhe era impossível dar mais um passo,
o santo, com toda a sua bondade e comiseração,
recorreu ao seu habitual refúgio
que era a oração.
Dirigiu uma breve súplica ao Senhor e,
voltando-se para o irmão, disse-lhe:

`Levantai-vos, filho;
ide a esse lugar que se avista daqui
e trazei o que lá encontrardes’.

Levantou-se o irmão
com extrema dificuldade,
e arrastou-se até o lugar
que lhe fôra indicado,
a uma distância aproximadamente
de um tiro de pedra.
Encontrou um pão de uma extraordinária alvura
embrulhado em um pano de um branco puríssimo;
trouxe-o e comeu dele por ordem do santo
até lhe voltarem as forças.
Quando acabou,
perguntou-lhe o homem de Deus
se podia andar,
agora que já matara a fome,
e ele respondeu que sim.

`Levantai-vos então’,

disse-lhe,

`e pegai no resto do pão,
embrulhai-o no pano
e ponde-o onde o encontrastes’.

Obedeceu o irmão,
e foram continuando o seu caminho.
Um pouco mais adiante o irmão,
caindo em si,
disse consigo mesmo:

`Ó meu Deus!
Quem poria ali aquele pão
e de onde viria?
Por força que não estou em mim
pois nem sequer ainda tinha pensado nisso!’

E voltando-se para o santo, disse-lhe:

“Santo Padre,
de onde veio aquele pão
e quem o pôs ali?”

Então esse verdadeiro amante
e guarda da humildade disse-lhe:

`Filho, não comestes
quanto quisestes?’

Ele respondeu:

`Sim’.

`Pois então’,

acrescentou o santo,

`visto que comestes quanto quisestes,
dai graças a Deus,
e não vos inquieteis do resto’”.

Gérard de Frachet,
Vida dos Frades, L. II, c. 6

Paremos aqui neste atalho dos Alpes Lombardos onde faltou a coragem ao companheiro de Domingos, e seguindo nós mesmos o rastro de tão santas pegadas, não nos furtemos a ventura de as contemplar de mais perto.

Domingos viajava a pé, encostado a um bordão, e com uma trouxa às costas. Quando estava fora das povoações, tirava os sapatos e caminhava descalço. Se alguém se feria em alguma pedra do caminho, dizia a rir-se :

“Esta é a nossa penitência”.

Atas de Bolonha
Depoimento de João de Navarra, n.3

Uma vez, indo com Frei Bonvis, e passando num lugar cheio de pedras agudas, disse-lhe:

“Ai! desgraçado de mim!
tive de me calçar uma vez neste sitio”.

E perguntando-lhe o religioso por que, respondeu:

“Porque tinha chovido muito”.

Id., Depoimento de
Bonvisi de Plaisance, n.2

Quando chegava perto de qualquer cidade ou aldeia, tornava a calçar-se até sair de lá. Se encontrava no seu caminho algum rio ou torrente, fazia o sinal da cruz sobre as águas e atravessava-as corajosamente, dando o exemplo aos seus companheiros. Se começava a chover entoava hinos em voz alta, o Ave Maris Stella, o Veni, Creator Spiritus. Nunca trazia consigo nem ouro, nem prata, nem cobre, cioso de em tudo se sentir à mercê dos homens e da Providência. Hospedava-se de preferência nos mosteiros, nunca parando quando queria, mas sempre conforme a fadiga e o desejo dos religiosos que o acompanhavam. Comia de tudo que lhe apresentavam, exceto carne; porque mesmo em viagem observava rigorosamente a abstinência e os jejuns da ordem, posto que dispensasse os seus companheiros de jejuar. Quanto pior o tratavam, mais contente se sentia. Viam-no, estando doente, comer raízes e fruta e não provar comidas finas. Quando tinha de se hospedar em casa de pessoas de qualidade, saciava primeiro a sede em alguma fonte, com receio de que a necessidade o fizesse exceder a modéstia de um religioso na bebida e assim escandalizar as pessoas presentes. Algumas vezes ia mendigar o seu pão de porta em porta agradecia sempre com grande humildade àqueles que lhe davam, a ponto de em certas ocasiões se pôr de joelhos. Dormia sempre vestido em cima de palha ou de uma tábua.

Em viagem nunca interrompia nenhuma das suas práticas de piedade. Todos os dias, a menos que onde estivesse não houvesse igreja, oferecia a Deus o santo sacrifício com grande abundância de lágrimas; porque era-lhe impossível celebrar os divinos mistérios sem se comover. Quando, à medida em que as cerimonias progrediam, se aproximava a vinda dAquele a quem amara de preferência desde os mais tenros anos, conhecia-se logo pela comoção que se apoderava de todo o seu ser e corriam-lhe as lágrimas pela sua face pálida e radiante. Pronunciava a Oração Dominical num tom que a todos tornava sensível a presença do Pai que está nos céus. Guardava e fazia guardar silencio aos seus companheiros, de manhã até ás nove horas e de tarde depois de completas. Nos intervalos falava de Deus, quer em forma de discurso, quer em forma de controvérsia teológica, e de todos os modos que podia imaginar. Algumas vezes, sobretudo em lugares solitários, pedia aos seus companheiros que se conservassem a uma certa distância dele, dizendo- lhes com um ar benigno como o profeta Oséias:

“Eu o conduzirei para a solidão
e aí lhe falarei ao coração”.

Precedia-os então ou seguia-os meditando sobre passagens da Escritura. Notavam os religiosos que ele, nessas ocasiões, fazia muitas vezes um gesto diante do rosto como se quisesse afastar algum inseto importuno e atribuíam a esta meditação familiar dos sagrados textos o admirável conhecimento que deles adquirira. O seu hábito de viver com Deus era tão forte que quase nunca levantava os olhos do chão. Nunca entrava em qualquer casa onde lhe dessem hospitalidade sem ter ido fazer oração a uma igreja se a havia nesse lugar. Depois das refeições retirava-se para um quarto para ler o Evangelho de S. Mateus ou as Epístolas de S. Paulo que trazia sempre com sigo. Sentava-se, abria o livro, fazia o sinal da cruz e lia com atenção. Mas não tardava que a palavra divina o fizesse sair fora de si. Fazia gestos como se estivesse falando com alguém; parecia estar escutando, disputando e a lutar; ora sorria, ora chorava; olhava fito, depois abaixava os olhos, falava em voz baixa e batia no peito. Passava sem interrupção da leitura para a oração, da meditação para a contemplação; de vez em quando beijava o livro com amor, como para lhe agradecer a felicidade que lhe proporcionava, e mergulhando sempre mais nessas sagradas delícias cobria o rosto com as mãos ou com o capuz. Quando chegava à noite ia para a igreja fazer as suas vigílias e penitências habituais, ou se por acaso não tinha igreja ao seu dispor ia deitar-se em algum quarto afastado, de onde os seus gemidos vinham, ainda a seu pesar, interromper o sono dos seus companheiros. Acordava-os a horas de matinas para recitarem o ofício em comum, e quando se hospedava em algum convento, mesmo que não fosse da sua ordem, ia bater à porta dos religiosos animando-os a levantarem-se e a virem para o coro.

Pregava a todo e qualquer que encontrasse nas estradas, nas cidades, nas aldeias, nos castelos e mesmos nos mosteiros. A sua palavra era ardente. Iniciado, pelos seus longos estudos em Valência e Osma, em todos os mistérios da teologia cristã, estes saíam. do seu coração em torrentes de tanto amor que mesmo os mais endurecidos se convenciam da sua verdade. Um mancebo, maravilhado com a sua eloqüência, perguntou- lhe em que livros estudara.

“Filho”,

respondeu ele,

“foi mais no livro do amor
do que em qualquer outro,
porque esse tudo ensina”.

Gérard de Frachet
Vida dos Frades, L. II, c. 25.

Por isso a miúdo prorrompia em lágrimas no púlpito e em geral sentia-se possuído dessa melancolia sobrenatural que causa o sentimento profundo das coisas invisíveis. Quando ao longe avistava uma aglomeração de telhados de qualquer cidade ou povoação, a lembrança das misérias dos homens e dos seus pecados mergulhava-o em uma meditação triste, cuja repercussão se lhe notava logo no rosto. Assim se sucediam nele rapidamente as expressões mais diversas: o amor e a alegria, a inquietação e a serenidade manifestavam-se a cada passo nas rugas da sua fronte e elevavam nele a majestade do homem a um incrível poder de sedução. Era afável para com todos, diz uma das testemunhas no processo da sua canonização, para com os ricos e pobres, para com os judeus e infiéis, muito numerosos na Espanha, onde era querido de todos, menos dos hereges e dos inimigos da Igreja, que ele refutava nas suas controvérsias e pregações.