CAPÍTULO QUARTO

1.

Creio já ter explicado o que entendo por hierarquia e devo, por isso, entoar um hino de louvor às hierarquias angélicas. Com olhos que vejam mais além do mundo, contemplarei as figuras sagradas que as Escrituras lhes atribuem para que, através destas místicas representações, possamos elevar-nos até a simplicidade de Deus. Então, com a devida adoração e ação de graças, glorificaremos a Deidade, fonte de tudo o que podemos conhecer das hierarquias.

Antes de tudo, devemos afirmar esta verdade: a Deidade supraessencial estabeleceu a essência de todas as coisas e lhes deu a existência. É próprio da Causa universal, Bondade suprema, chamar à comunhão consigo todas as coisas na medida em que for a estas possível. Por isso todo ser participa de certo modo da Providência que vem da Deidade supraessencial, Causa de tudo. Na realidade, nada pode existir sem que dependa de algum modo daquele que é fonte de todo ser. DEle participam as coisas inanimadas pelo mero fato de existirem, pois todo ser deve a própria existência à Deidade transcendente. Os viventes, por sua vez, participam do poder que dá a vida e que ultrapassa toda a vida. Os seres dotados de razão e inteligência participam da Sabedoria, perfeição absoluta, primordial, que ultrapassa toda razão e inteligência. Fica claro, portanto, que estes últimos seres estão mais próximos a Deus porque compartilham com Ele de muitas maneiras.

2.

Comparadas com as coisas que se limitam a existir, com os seres de vida irracional, e inclusive com nossa natureza racional, as santas ordens de seres celestes são evidentemente superiores pelo que receberam da prodigalidade divina. Quanto ao modo de conhecer, parecem-se a Deus. Com Ele conformam suas inteligências. Por isso entram naturalmente em maior comunhão com a Deidade, porque estão sempre direcionados às alturas, porque na medida do possível tendem a concentrar-se no indeficiente amor de Deus, porque de modo imaterial e em toda a pureza recebem a luz diretamente de sua origem, e porque sua vida, guiada por semelhante luz, é plenamente inteligente.

Estas inteligências são as que mais rica e intimamente participam de Deus, e por sua vez são as primeiras e mais abundantes em transmitir aos demais os mistérios escondidos da Deidade. Pelo que corresponde-lhes mais do que a ninguém o título de anjo ou mensageiro. São os primeiros a receber a iluminação de Deus e por meio deles se nos transmitem as revelações que excedem sobremaneira nosso alcance. Conforme diz a Escritura, a Lei nos foi dada pelos anjos (Atos 7, 38-53; Gal. 3, 19; Heb. 2, 2). Em tempos anteriores e depois da Lei foram anjos os que guiaram até Deus nossos ilustres antepassados. Faziam-no manifestando-lhes o que deviam fazer ou afastando-os do erro e da vida de pecado para trazê-los ao caminho reto da verdade. As sagradas hierarquias também lhes revelavam visões de mistérios escondidos a este mundo, ou divinas profecias (Ex. 23, 20-23).

3.

Talvez alguém diga que Deus apareceu sem intermediários a alguns santos. Deve saber que as Santas Escrituras afirmam claramente que "ninguém jamais viu a Deus" (Jo. 1, 18; Ex. 33, 30-23; I Tim. 6, 16; I Jo. 4, 12), e nunca ninguém verá o mais recôndito da Deidade. É certo que Deus apareceu a pessoas santas. Deste modo era conveniente que a Deidade se acomodasse à maneira de ser dos videntes. A sagrada teologia chama com razão teofania às visões em que Deus, que não tem figura, se manifesta em determinada semelhança e forma. Dispõe aos videntes para um plano divino. Recebem iluminação de Deus e de algum modo são instruídos sobre os mistérios divinos. Foi o poder de Deus quem dispôs os nossos antepassados para vê-lo desta maneira (Gen. 17, 1; 18, 1; Gen. 18, 10; 32, 23; Ex. 24, 9-11; 33, 19-23; Is. 6, 1-8).

Não afirma a Escritura que Moisés recebeu diretamente de Deus as sagradas ordenações da Lei (Ex. 19, 3-14; 20, 19; 24, 9-11; 25-31; 33, 12-17; 34, 9-10)? Assim podia ensinar-nos com verdade que aquela legislação era cópia exata do divino e sacrossanto. Porém a teologia nos mostra claramente que estas divinas ordenações nos foram dadas por meio dos anjos para que aprendamos a mesma ordem estabelecida por Deus, isto é, que mediante as hierarquias superiores os seres inferiores elevam-se à Deidade. Ora, na Lei dada por Ele que é princípio supraessencial de toda ordem há disposições que afetam não apenas aos graus superiores e inferiores daquelas inteligências. Ela estabelece, ademais, que dentro de cada hierarquia as ordens e potências se distribuem em três graus: o primeiro, o médio e o último, e que os mais próximos à Deidade devem instruir aos menos próximos, guiando-os até a presença de Deus, sua iluminação e comunhão.

4.

Observo também que o divino mistério do amor de Jesus aos homens foi primeiramente manifestado aos anjos e por meio deles chegou a nós a graça do seu conhecimento. Foi o santíssimo Gabriel quem declarou ao sacerdote Zacarias o mistério segundo o qual, contra toda a esperança e pela graça de Deus, ele teria um filho que seria o profeta da obra divino-humana de Jesus, o qual iria manifestar-se para o bem e a salvação do mundo (Lc. 1, 11-20). Gabriel comunicou a Maria como se cumpriria nela o mistério divino da inefável deiformação (Lc. 1, 26-39). Outro anjo explicou a José que verdadeiramente se haviam cumprido as promessas feitas a seu antepassado Davi (Mt. 1, 20-25; II Sam. 7, 12-17). Outro, igualmente, levou a boa nova aos pastores que por sua vida tranqüila e separada das gentes estavam já de algum modo purificados. Juntou-se ao anjo "uma multidão do exército celestial" para transmitir a todos os habitantes do mundo o célebre hino de louvor (Lc. 2, 8-14).

Levantemos agora o olhar às mais altas revelações das Escrituras. Observo, efetivamente, que Jesus, Causa supraessencial de todos os seres que vivem mais além do universo, veio tomar forma humana sem mudar sua própria natureza. Depois nunca abandonou a forma humana que Ele havia disposto e escolhido. Obediente, submeteu-a aos desejos de Deus Pai, os quais os anjos tornaram manifestos. Anjos foram os que instruíram a José sobre os planos do Pai para a fuga ao Egito e o retorno à Judéia (Mt. 2, 13; 19-22). O próprio Jesus recebeu ordens do Pai por meio dos anjos. Não tenho necessidade de recordar a sagrada tradição do anjo que confortou a Jesus (Lc. 22, 43; Mt. 4, 11) ou do fato que o próprio Jesus, pela superabundante bondade com que conduziu a obra de nossa salvação é enumerado entre os anjos da revelação como o nome de "Anjo do Conselho" (Is. 9, 6). Não foi Ele na verdade um anjo por ter-nos anunciado o que conheceu do Pai (Jo. 15, 15)?