CAPÍTULO DÉCIMO QUINTO

1.

Agora, se te parece, o olhar de nossa inteligência vai descansar do esforço que faz para chegar às alturas solitárias da contemplação própria dos anjos. Baixemos às planícies da divisão e da multiplicidade, à diversidade de formas que tomaram os anjos em suas aparições. Em seguida voltaremos sobre nossos passos, partindo destas imagens, e nos ergueremos às inteligências celestes.

Porém, antes de tudo, tem em muita conta que as explicações dos símbolos sagrados indicam que as mesmas ordens de seres celestes algumas vezes dirigem nas coisas sagradas e outras vezes são dirigidas; que as de ínfimo grau dirigem, e as de primeiro são dirigidas; que, como já disse, todos eles têm poderes superiores, intermediários e inferiores.

Esta maneira de explicar as coisas não implica em nenhum absurdo. Seria total absurdo e estúpida confusão que tal ou qual hierarquia em relação aos mistérios sagrados sejam dirigidas exclusivamente por suas superiores e que ao mesmo tempo estas últimas sejam dirigidas pelas inferiores. Ou que a superior instrui à inferior e esta, por sua vez, à superior sob o mesmo aspecto. Ao afirmar que os mesmos seres dirigem e são dirigidos não quero dizer que o diretor seja dirigido por aquele mesmo a quem dirigiu. O que significa é que cada ordem é dirigida por aquela que a precede e que esta dirige às que lhe seguem como inferiores. Portanto, não há nenhum inconveniente em dizer que as representações sagradas das Escrituras podem às vezes ser atribuídas com propriedade e correção aos poderes superiores, outras aos intermedi rios e também aos inferiores.

O poder de elevar-se em constante movimento de retorno, o poder de voltar-se incessantemente sobre si mesmos enquanto conservam os próprios poderes, a capacidade de participar no plano providencial de comunicar-se sucessivamente com as ordens inferiores é, sem dúvida, característico dos seres celestes, próprio de alguns, conforme disse com freqüência, de modo inteiramente transcendente, de outros de modo parcial e inferior.

2.

Agora vamos abordar o tema proposto. Nossa explicação começa com a questão de por que a Escritura parece preferir a alegoria do fogo a todas as demais. Observarás que não apenas representa rodas inflamadas (Dn. 7, 9), como também animais em chamas (Ez.1, 13; II Re. 2, 11) e homens em certo modo incandescentes (Mt. 28, 3; Lc. 24, 4; Ez. 1, 4-7; Dn. 10, 1). Põe montes de tições acesos em torno aos seres celestes (Ez. 1, 13; 10, 2), e rios de fogo com ruído imponente (Dn. 7, 10). Tronos de fogo (Dn. 7, 9). Evoca a etimologia da palavra "serafim" descrevendo-os como incandescentes, atribuindo-lhes propriedades do fogo (Is. 6, 6). Geralmente a Escritura prefere a imagem do fogo ao falar das hierarquias, sejam de ordem superior ou inferior. Na realidade, em meu parecer, o símbolo do fogo é a melhor maneira de expressar a semelhança que têm com Deus os seres-inteligências do Céu.

Praticamente é esta a razão pela qual os santos teólogos representam com a imagem do fogo ao Ser supraessencial, que não admite figura (Ex. 3, 2-6; 14, 24; 19, 18; Is. 4, 5; 29, 6; 30, 30; Dt. 4, 24; Sl. 89, 47; Ez. 1, 4; I Re. 19, 11). Como imagem de coisas sensíveis, o fogo representa, para assim dizê-lo, muitas propriedades da Deidade. O fogo, na realidade, está sensivelmente presente em todas as coisas. A tudo penetra sem manchar-se e continua ao mesmo tempo separado. A tudo ilumina e permanece, por sua vez, desconhecido, pois não o percebemos mais do que pela matéria onde opera. É incontenível. Ninguém o pode contemplar fixamente. A tudo domina e transforma em si mesmo ao que alcança. Entrega-se aos que se lhe aproximam. Renova com o seu calor vivificante. Ilumina com seu esplendor e permanece puro, sem misturar-se. Produz mudanças, mas em nada se altera. Sobe ao mais alto e penetra ao mais profundo. Arrasta-se pelos solos e caminha pelo mais elevado. Sempre movendo-se a si mesmo e movendo aos demais. Estende-se por todas as direções sem que possa ser encerrado em nenhuma parte. Não necessita de ninguém. Cresce escondido e manifesta sua grandeza onde quer que seja recebido. Dinâmico, poderoso, invisível, presente em todo ser. Se não lhe fazemos caso, parece que não existe. Porém quando há atrito, como se lhe fizéssemos uma súplica, sai em busca de algo. Surge repentinamente, naturalmente e por si só; imediatamente se levanta incontenível e sem prejuízo próprio, alegremente se comunica com suas vizinhanças.

Poderiam descobrir-se muitas outras propriedades do fogo que, como imagens tomadas do sensível, podem aplicar-se às atividades da Deidade. Os que entendem da sabedoria divina manifestam seus conhecimentos representando pelo fogo as coisas celestiais. Deste modo manifestam a proximidade com que estas imagens se parecem com o divino as quais, de certo modo, imitam a Deus.

3.

Para representar seres celestes utilizam também figuras antropomórficas (Dn. 10, 1; Ez. 1, 5-10; Mc. 16, 5; Lc. 24, 4; Ap. 4, 7; 10, 1), pois o homem, apesar de tudo, é inteligente e capaz de olhar para o alto. Firme e direito, é por natureza chefe e governante. Comparado com os animais irracionais, é o menor na escala da força e das sensações; porém ele domina a todos com o poder superior de sua inteligência, pela sabedoria de seu saber racional e a natural liberdade e independência de seu espírito.

Penso também que cada uma das partes do corpo humano nos subministra imagens perfeitamente aplicáveis aos poderes celestes. Poderia dizer-se que as faculdades visuais (Ez. 1, 18; 10, 12; Dn. 10, 6; Ap. 4, 6-8) sugerem o poder de olhar diretamente as luzes divinas e ao mesmo tempo a capacidade de receber as iluminações de Deus com suavidade, claridade, sem resistência, docilmente, pura e abertamente, sem paixão.

O poder de distinguir odores (Tb. 6, 17; 8, 13) indica a capacidade de acolher plenamente as fragrâncias que o entendimento não alcança. Discernimento também para entender o que está corrompido e rejeitá-lo absolutamente.

A faculdade do ouvido (Sl. 103, 20) significa a capacidade de participar de algum modo na inspiração divina.

O gosto (Gen. 18, 5-8; 19, 1-3; Is. 25,6) tem relação com a satisfação do entendimento quando bebe até a saciedade nos rios da Deidade.

O tato (Gen. 32, 35; Jz. 6, 21) significa discernir entre o proveitoso e o nocivo.

Pálpebras e sobrancelhas simbolizam o cuidado em guardar o que a mente conheceu de Deus.

Adolescência e juventude (Mc. 16,5) indicam a força vital, sempre vigorosa.

Os dentes referem-se à habilidade com que dividem o alimento que recebem, pois, de fato, todo ser-inteligência, tendo recebido de outro que é superior o dom da inteligência unitiva, passa a dividí-lo e distribuí-lo para que o inferior se eleve o mais possível.

Os ombros, braços (Dn. 10, 6; II Sam. 24, 16) e mãos (Jz. 6, 21; Sl. 91, 12; Ez. 1, 8; 8, 3; 10, 8; 10, 21; Dn. 10, 10; 12, 7; Ap. 10, 5) representam a propriedade de atuar e aperfeiçoar.

O coração (Jer. 7, 24; Sl. 41, 4) é símbolo de uma vida deiforme, que compartilha sua força vital com aqueles por quem se interessa.

O peito significa a fortaleza inexpugnável onde se localiza o coração, fonte de vida.

As costas (Ez. 1, 18; 10, 12) representam o conjunto de poderes que contém energias vitais.

Os pés (Is. 6, 2; Ez. 1, 7; Dn. 10, 5; Ap. 10, 1) significam o movimento acelerado da corrida perpétua que os conduzem às realidades divinas. Por isso as Escrituras puseram asas nos pés (Is. 6, 2; Ez. 1, 6; 1, 22; 10, 5-16) dos seres-inteligências, pois as asas dão a entender rapidez para elevar-se no caminho do Céu, constante impulso que ergue acima dos apetites terrenos. Asas rápidas simbolizam a libertação das atrações mundanas, o puro e desimpedido subir aos cumes.

Pés descalços e nudez (Gen. 18, 4; 19, 2; Is. 20, 2-4) significam desprendimento, libertação, independência, purificação de toda a exterioridade, a maior identificação possível com a simplicidade de Deus.

4.

Aquela simples, porém "multiforme sabedoria" (Ef. 3, 10) veste os nús e fala de como estão vestidos. Devo explicar agora, o quanto me seja possível, o vestuário e os instrumentos sagrados atribuídos aos seres-inteligências no Céu. Penso que os vestidos luminosos e incandescentes (Ap. 9, 17; 15, 6; Lc. 24, 4; Ez. 1, 27) simbolizam a deiformidade. Estão em conformidade com o simbolismo do fogo. O poder de iluminar é conseqüência da herança do Céu, que é morada de luz. Ilustra a mente e na mente todas as coisas se ilustram.

As vestimentas sacerdotais (Ez. 9, 2; 10, 6-8; Ap. 1, 13; 4, 4; Dn. 10, 5-6) significam a disponibilidade para encaminhar-se espiritualmente até a divina e misteriosa visão, consagrando-lhe toda a vida. Os cintos (Ez. 9, 2; 10, 2-6; Ap. 15, 6; Dn. 10, 5) indicam o domínio que os seres-inteligências possuem de suas forças reprodutoras. Significam também o poder destes seres para recolherem-se, sua concentração unificante, o dobrar-se harmonioso e incansável em torno à própria identidade.

5.

Os cetros (Jz. 6, 21; Is. 10, 5) simbolizam o poder e a soberania com que conduzem à perfeição todas as coisas.

As lanças (II Mc. 5, 1-3; Jer. 6, 22-23; Is. 49, 2) e os machados (Ez. 9, 2; Gen. 3, 24; Num. 22, 23; Jos. 5, 31; I Cron. 21, 15; Ap. 19, 21) representam a habilidade de separar as coisas dessemelhantes, a aguda claridade e eficácia de seus poderes de discernimento.

Os instrumentos geométricos e de arquitetura indicam o poder de colocar cimentos, edificar, acabar e, de modo geral, tudo o que se refere à elevação espiritual e conversão providencial de seus subordinados (Ez. 40, 3; Am. 7, 7; Zac. 2, 1; Ap. 21, 15).

Às vezes os instrumentos (Ap. 8, 6; 14, 14-17; 20, 1) empregados para representar aos santos anjos simbolizam os julgamentos de Deus em relação a nós. Uns representam a disciplina que corrige ou o reto castigo, outros a libertação do perigo, o da disciplina ou repercussão da felicidade anterior, a concessão de novos dons, grandes ou pequenos, dons sensíveis ou intelectuais. Em suma, a uma inteligência perspicaz não seria muito difícil encontrar a correlação entre os sinais visíveis e as realidades invisíveis.

6.

São também chamados de "ventos" (Sl. 104; Heb. 1, 7; Apoc. 6, 1), para indicar a quase instantânea rapidez com que operam em todas as partes, sem ir nem vir de cima para baixo ou de baixo para cima, quando levantam a seus inferiores até o mais alto cume e quando induzem aos superiores a que desçam para comunicarem-se com os inferiores e exercer sua providência com estes últimos.

Poderíamos acrescentar que a palavra "vento" significa espírito do ar e mostra como os seres-inteligências vivem em conformidade com Deus (Jo. 3, 8). Vento é imagem e símbolo da atividade divina que move naturalmente e dá vida, empurrando para diante reta e incontenivelmente. E isto por razões desconhecidas e invisíveis; isto é, fica oculto para nós o princípio e o fim de seu movimento.

"Não sabes",

diz a Escritura,

"de onde vem, nem para onde vai".

Disto tratei com mais pormenores na Teologia Simbólica, ao explicar os quatro elementos.

A Escritura os representa também em forma de nuvem (Ex. 33, 9; Num. 12, 5; Sl. 18, 12; 109, 7; Ez. 1, 4; 10, 3; Ap.10, 3), significando com isto que os santos seres-inteligências estão, de modo transcendente, cheios de luz, e como intermediários a transmitiram generosamente aos seguintes na medida em que estes a possam receber. Possuem o poder de dar a vida, de fazer crescer e levar à perfeição porque derramam chuvas de entendimento e chamam ao seio que os recebe para que dê à luz criaturas novas.

7.

A Sagrada Escritura, ademais, atribui aos seres celestes forma de bronze (Ez. 8, 2; 40, 3; Dn.10, 5-8; Ap. 1, 5), de âmbar (Ap. 4, 3; 21, 19-21; Ez. 1, 26; Ap. 21, 18-20) e de pedras multicores. Porque o âmbar, que contém ouro e prata (Ez. 1, 7; 40, 3; Dn. 10, 6), simboliza por um lado o incorruptível, inesgotável, indefectível e puríssimo do ouro; por outro, a claridade brilhante e celeste da prata. O bronze, pelas razões indicadas, representa o fogo e o ouro. Quanto às pedras multicores, deve-se entender o seu simbolismo como se segue: o branco é a luz; o vermelho, o fogo; o amarelo, o ouro; o verde, a vitalidade juvenil.

Encontrarás que cada espécie leva consigo um significado elevador por cada imagem representativa. Porém, como creio ter tratado suficientemente destes temas, passemos agora à santa explicação das figuras animais que a Escritura atribui aos seres-inteligências do Céu.

8.

A figura do leão (Ez. 1, 10; 10, 14; Ap. 4, 7; 10, 3; Sl. 77, 19; Dn. 7, 4; Is. 31, 4; Ez. 19, 2-7; Sl. 57, 5) indica o domínio poderoso e indomável. Os seres celestes se aproximam o mais que podem ao mistério da inefável Deidade cobrindo as pegadas da própria inteligência. Humilde e misteriosamente, colocam um véu sobre o caminho que os leva à divina iluminação.

O símbolo do boi (Ez. 1, 10) indica a força e o poder, a capacidade de abrir profundos sulcos de conhecimento onde caiam as fecundas chuvas dos céus. Os cornos são sinal do poder que guarda e é invencível.

A águia (Ex. 19, 4; Dt. 32, 11; Ez. 1, 10; Dn. 7, 4; Ap. 4, 7) significa a realeza, o rápido lançar-se ao mais alto, o vôo veloz, a agilidade, a disposição, rapidez e agudeza para descobrir o alimento. É símbolo da contemplação que livremente, de modo direto e sem rodeios, dirige o olhar vigoroso em direção aos abundantes raios que prodigaliza o Sol divino.

Os cavalos (II Re. 2, 11; 6, 17; Zac. 1, 8-10; 6, 1-5; Ap. 6, 1-8; 19, 14) significam obediência e docilidade. Sua brancura é brilho comparável à luz de Deus; sua cor marrom significa a profundidade dos mistérios; o vermelho é o poder e a eficácia do fogo; os de pelo branco e preto designam a aliança de extremos opostos e o poder passar de um a outro, a adaptação do superior ao inferior e do inferior ao superior, que procede da conversação de uns e da providência de outros.

Se não tivesse que conservar as devidas proporções deste tratado, poderia deter-me em considerar cada uma das partes e dos pormenores físicos dos animais que mencionei. Poderia fazer razoavelmente a aplicação aos poderes celestes, sob o aspecto das semelhanças e dessemelhanças. Assim, a ira dos animais representaria a fortaleza espiritual, da qual a ira é o último vestígio. A concupiscência animal corresponderia ao desejo que sentem os anjos pela presença de Deus. Em resumo, de todos os sentidos e múltiplas partes dos animais irracionais pode-se fazer referência às inteligências imateriais e aos poderes unificantes dos seres celestes.

Estas coisas bastam para os entendidos. Ademais, com a explicação de uma destas imagens comparativas esclarecem-se, por semelhança, os símbolos do mesmo gênero.

9.

Vou examinar agora por que se aplicam aos seres celestes os nomes de rios, rodas e carros (Dn. 7, 10; Ez. 47, 1; Ap. 22, 1). Rios de fogo significam os canais divinos que não cessam de fluir copiosamente sobre os anjos alimentando sua fecundidade vital. Os carros (II Re. 2, 11; 6, 17; Sl. 104, 3; Zac. 6, 1-8) significam a aliança entre os que constituem a mesma ordem. Quanto às rodas com asas (Ez. 1, 15-21; 10, 1-13; Dan. 7, 9), que avançam sem voltar atrás nem desviar-se, significam o poder de caminhar diretamente ao longo do caminho, sem desviar-se, graças ao que a roda de sua inteligência é guiada de modo nada comum a este mundo. Porém poderíamos fazer outro comentário sobre a iconografia das rodas da mente dela tirando um ensinamento espiritual. Porque, conforme disse o profeta, chamam-se "Gelgel" (Ez. 10, 13 in LXX), que em hebraico quer dizer revolução e revelação. Estas rodas flamígeras, à semelhança de Deus, "giram" em torno de si mesmas em seu movimento incessante em torno do Bem. "Revelam", na medida em que declaram mistérios ocultos, elevam as mentes desde os graus inferiores e transmitem a estas as luzes mais altas.

Resta-me, finalmente, explicar o que a Escritura entende por alegria das ordens celestes. Não é possível que estas hierarquias experimentem os prazeres das paixões. Por isso, o que aqui se diz refere-se ao gozo divino que experimentam por achar o que se havia perdido (Lc. 15, 7-10; Jo. 16, 22-24). Experimentam uma dita serena e verdadeiramente divina, alegria pura, sem inveja, pela providência e salvação dos convertidos a Deus. Felicidade inefável que se observa às vezes quando alguns santos recebem a visita iluminadora de Deus (Jo. 16, 22; 17, 13).

Isto é o que me propus a dizer sobre as representações sagradas. Quem sabe tenha sido muito breve em minhas explicações. No entanto, creio que isto terá evitado que nos estanquemos erroneamente em meras representações simbólicas. Talvez se nos repreenda não haver mencionado todos os poderes, todos os atos e alegorias com que as Escrituras se referem aos anjos. É certo. Porém ter omitido a algumas coisas prova o fato de que encontro-me perdido quando deve-se entender as realidades transcendentes. Eu realmente necessitaria da luz de um guia. Omissões de temas análogos aos que tratei podem explicar-se, porque eu tinha esta dupla preocupação: não fazer um tratado demasiadamente grande e tributar um respeitoso silêncio aos mistérios onde não chega o meu conhecimento.