CAPÍTULO DÉCIMO TERCEIRO

1.

Há algo mais que devemos considerar do melhor modo possível. Por que se diz que um dos teólogos recebeu a visita de um serafim (Is. 6, 6-7)? Qualquer um poderia estranhar o fato de que tivesse vindo purificar ao intérprete um dos seres superiores e não dos anjos inferiores.

2.

Alguns, de acordo com a teoria anteriormente exposta, sobre a reciprocidade dos seres-inteligências, dizem que a Escritura não afirma expressamente que tivesse vindo purificar ao teólogo um dos seres-inteligências dos mais próximos a Deus dentro da primeira hierarquia. Ela refere-se aqui, dizem, a um daqueles anjos encarregados de nós, que tinha a missão de purificar ao profeta. Chamaram-no de serafim pela semelhança de ter-lhe que apagar os pecados mediante o fogo e reestabelecer ao recém purificado na obediência a Deus. Por conseguinte, segundo esta interpretação, a passagem do serafim não se referiria a um dos que assistem ao trono de Deus; tratar-se-ia de alguns dos poderes encarregados de purificar-nos.

3.

Alguém me apresentou outra solução razoável a este problema. Diz que aquele anjo poderoso, seja quem ele for, apareceu ao profeta para iniciá-lo nos mistérios divinos. Em seguida o mesmo anjo disse que havia sido Deus ou um dos anjos mais próximos a Ele quem havia realizado aquela purificação. É isto verdade? A pessoa que fêz tal afirmação dizia que o poder da Deidade se difunde por todo lugar e penetra irresistivelmente todas as coisas sem deixar-se ver (Sab. 7, 24; Heb. 4, 12) porque é supraessencialmente transcendente e oculta misteriosamente a sua atividade providencial. Não obstante, sua atuação se manifesta proporcionalmente a todo ser inteligente. Concede o dom de sua luz aos seres superiores, que por ser da primeira hierarquia utilizam de intermediários para transmitir a luz harmoniosamente dada aos inferiores, para que retornem ao seu olhar contemplativo.

Digamo-lo mais claramente com exemplos ao nosso alcance, ainda que sejam inadequados em relação a Deus. Os raios da luz solar atravessam com maior esplendor a primeira capa material. Porém quando se chocam com corpos sólidos parecem mais escuros e difusos, porque é matéria menos apta para a passagem da luz desbordante. A obstrução se faz cada vez maior até que por fim não há mais caminho para a luz. O mesmo ocorre com o calor do fogo. Passa mais facilmente por corpos condutores que o recebem melhor e se lhe parecem mais. Porém quando bate em substâncias refratárias não produz efeito, ou apenas deixa leve rastro. Isto se observa claramente quando o fogo passa por coisas que lhe são bem dispostas e depois por outras que não lhe são afins. O mesmo quando o fogo toca primeiro coisas inflamáveis e depois, por meio destas, chega à água ou a outras que se aquecem com dificuldade.

Conforme a esta harmoniosa lei da natureza, a admirável Fonte de toda ordem visível e invisível derrama maravilhosamente (Sab. 7,13) os plenos e primordiais fulgores de sua luz esplêndida sobre os seres da primeira hierarquia. As ordens seguintes, por sua vez, participam daqueles raios através dos primeiros. Primeiros em conhecer a Deus, desejam mais que outros seres deificados; mereceram chegar a ser, dentro do possível, os primeiros operários em poder e ação semelhante a Deus. Estimulam amavelmente aos seguintes a que compitam com eles. De boa vontade distribuem aos inferiores os raios luminosos recebidos (Is. 6, 2). Estes, por sua vez, transmitem-nos a outros ainda mais baixos. Deste modo, em níveis distintos, os que precedem transmitem aos seguintes a luz divina que recebem. Luz que se reparte proporcionalmente a todos segundo a medida com que a possam receber.

Certo. Deus mesmo é realmente a fonte de luz para todos os que são iluminados, pois Ele é a verdadeira Luz. Ele é causa do ser e da visão. Porém está determinado que, à imitação de Deus, a luz passe do ser superior ao inferior. Por isso os outros seres angélicos seguem à primeira hierarquia de seres-inteligências no Céu. Depois de Deus, esta é a fonte de todo conhecimento divino e de sua imitação. Por meio desta hierarquia chega até nós toda a iluminação divina. A atividade sagrada, realizada à imitação de Deus, é atribuída, por um lado, a Ele como Causa última, e por outro, aos seres-inteligência mais próximos a Deus, deiformes, como primeiros mestres dos mistérios divinos. Os anjos da primeira hierarquia possuem melhor do que os demais a propriedade ígnea e uma participação maior na sabedoria divina que lhes é dada; o conhecimento supremo das iluminações divinas e propriedade dos "tronos", que significa o poder de estar abertos para receber a Deus. As hierarquias inferiores participam do fogo, da sabedoria, do conhecimento de Deus, e estão também dispostas a acolhê-lo. Porém em menor grau e com a condição que se fixem nos seres-inteligências da primeira hierarquia, por meio dos quais, como mais dignos imitadores de Deus, se tornam semelhantes e Ele. As hierarquias segundas participam, por meio das primeiras, nestas santas propriedades, atribuem-nas às primeira hierarquias que, depois de Deus, são as supremas.

4.

A pessoa que opinava conforme ficou dito sustentava que, na visão do profeta, era um daqueles santos anjos encarregados de nós. Sob a orientação luminosa deste anjo elevou-se a tal contemplação que, se me é lícito falar em símbolos, pôde contemplar os seres de grau superior situados debaixo, ao redor e com Deus. Mais além daqueles seres, pôde admirar o cimo, inefavelmente superior, que ultrapassa todo princípio, põe o seu trono entre eles e os domina a todos (Gen. 1, 25). Por esta visão o profeta compreendeu que a Deidade, por sua absoluta supraessência, ultrapassa todo o poder, visível e invisível.

É completamente independente de todas as coisas. Não se pode comparar nem sequer com as mais nobres. É causa e fonte de todo o ser e de que todo ser seja bom (Is. 6, 2), de seu fundamento imutável, inclusive os mais elevados.

O profeta conheceu então os poderes deificantes dos santíssimos serafins. "Serafim" significa ardente. Vou explicá-lo brevemente, o melhor que me for possível, como o poder do fogo faz elevar-se até à semelhança com Deus. A sagrada imagem das seis asas significa o impulso maravilhoso com que as hierarquias primeiras, médias e inferiores se elevam constantemente até Deus. Enquanto via os inumeráveis pés, a multidão dos rostos, as asas com que ocultava acima os rostos e abaixo os pés, as asas do meio em um bater constante, o santo profeta foi elevado à compreensão daquelas coisas. Foram-lhe mostradas as múltiplas facetas das inteligências mais excelsas, o multiforme poder de sua visão. Foi testemunha da reverência sagrada e da maneira extraordinária com que aqueles espíritos procedem na investigação dos mais altos e profundos mistérios, sem presunção, sem arrogância nem fantasias. Testemunha também do movimento harmonioso e elevado com que atuam incessantemente a imitação de Deus.

Ademais, aprendeu o santo profeta aquele cântico de louvor à Deidade, pois o anjo desta visão lhe comunicou, dentro do possível, toda a ciência sagrada que tinha. Ensinou-lhe também que toda pessoa se purifica na medida em que participa da claridade transparente da Deidade. Por razões que não são deste mundo, a própria Deidade infunde esta misteriosa e supraessencial claridade nos sagrados seres-inteligências. Recebem-na melhor, com mais humildade, como é óbvio, as hierarquias mais próximas à Deidade, pois sua capacidade é maior. Quanto ao poder da segunda e terceira hierarquia e de nossa mesma inteligência, Deus dá mais ou menos luz, dEle proveniente, para alcançar a incognoscível união com seu próprio mistério, segundo o grau de configuração com a Deidade. Ilumina as sagradas hierarquias por meio das primeiras. E, para dizê-lo brevemente, a Deidade se dá a conhecer por meio dos primeiros poderes.

O profeta aprendeu do anjo, enviado para levá-lo à luz, que a purificação e as demais atuações da Deidade, refletidas nos seres superiores, difundem-se entre os demais, segundo cada qual participa das obras divinas. Por isso o profeta atribuíu razoavelmente aos serafins, próximos a Deus, a propriedade de purificar pelo fogo. Por isso não está fora de lugar dizer que foi um serafim quem purificou ao profeta. Deus purifica todo ser porque Ele é a causa de toda purificação. Ou mais corretamente, servindo-me de um exemplo familiar, Ele é nosso bispo, que por meio de seus diáconos e presbíteros purifica e ilumina. Diz-se que o próprio bispo purifica na medida em que estas ordens recebidas dele atribuem-lhe as sagradas atividades que eles realizam.

De modo semelhante, o anjo que efetuou a purificação do profeta refere seu saber e poder de purificar primeiro a Deus, como Causa, e em seguida aos serafins como a seus ministros imediatos.

Como se o anjo, ao informar a quem purificava, lhe dissesse prudentemente:

"a purificação que se verifica em ti por meu intermédio tem como princípio, essência e causa ao Ser Transcendente que dá a existência aos seres da primeira hierarquia, os conserva e os protege junto a Ele, imutáveis e perfeitos, e os induz a tomar parte nas atuações de sua Providência".

Isto é o que eu aprendi de meu mestre a respeito da missão do serafim. Depois de Deus são os hierarcas e chefes supremos dos seres da primeira hierarquia os que me instruíram neste ofício de purificar e que, por meu intermédio, te purificam a ti. Por meio deles, Aquele que é Causa e autor de toda purificação deu a conhecer a oculta atuação de sua Providência, abaixando-se até o nível em que a possamos compreender.

Isto eu aprendi de meu mestre e deste mesmo modo o transmito a ti. Cabe agora ao teu entendimento e sentido crítico optar por uma ou outra das soluções propostas. Escolhe o que te pareça mais verossímil, razoável e conforme à verdade. A não ser que, naturalmente, tu mesmo apresentes outra solução mais objetiva e próxima à verdade ou a aprendas de algum outro. Isto é, tomando como fundamento a palavra de Deus (Sl. 68, 11) e a interpretação que dela dão os anjos. Então poderias revelar-me a mim, que amo aos anjos, uma contemplação mais clara e mais pura que eu quereria para mim.