DEUS NOS MANDA ATENDER À SALVAÇÃO DO NOSSO PRÓXIMO NÃO MENOS QUE A NOSSA

2.

Na verdade, de coisas que agora nos parecem miúdas, nos pedirão então depois a mais espantosa conta. Com o mesmo rigor nos exigirá o Juiz nossa própria salvação como a salvação de nosso próximo. Por isso Paulo nos exorta a cada momento que não busquemos os nossos interesses, mas o de nosso próximo. Por esta razão repreende vivamente os coríntios de não haverem tomado nenhuma providência e nem se preocupado com o assunto do incestuoso (1 Cor. 10, 24), mas de permitirem que se inflamasse mais a ferida. E escrevendo aos gálatas, dizia:

"Irmãos, se algum homem for surpreendido em algum delito, vós, que sois espirituais, admoestai-o".
Gal. 6,1

E antes que aos gálatas fez a mesma recomendação aos tessalonicenses, dizendo:

"Consolai-vos uns aos outros, como já o fazeis".

E outra vez:

"Corrigi os indisciplinados, consolai os pusilânimes, apoiai os débeis".
1 Tes 5,11-14

Talvez alguém dissesse: O que tenho eu a ver com os demais? O que se perde que se perca, e o que se salva que se salve. Eu em nada me importo com isto; só me importo comigo. Pois para que se corte tão desumano e feroz pensamento, o Apóstolo nos impôs a muralha destas leis, ordenando-nos em muitas ocasiões largar nossos próprios interesses para buscar o interesse do próximo, e com isso afirma e define, em toda parte, a perfeição da vida. Também, escrevendo aos Romanos, manda que se tenha em muita conta este ponto, estabelecendo os fortes como pais dos débeis e encarecendo que se preocupem com a sua salvação (Rom 15,17). E ainda aqui fala em tom de exortação e de conselho, mas em outras passagens sacode energicamente a alma de seus ouvintes, afirmando que aqueles que se descuidam da salvação de seus irmãos pecam contra o próprio Cristo e arruinam o templo de Deus (1 Cor 8,12). E não disse isto da sua autoria, mas por ter aprendido com o seu Mestre. E é deste modo que o Unigênito de Deus, querendo nos ensinar quanto é necessário este dever e o quanto são grandes os males que esperam a quem não os quiser cumprir, disse:

"Ao que escandalizar a um desses pequeninos, mais lhe valeria que lhe pendurassem uma pedra de moinho ao pescoço e o jogassem no fundo do mar".
Mt 18, 6

E aquele que apresentou o talento recebido, não foi daquele modo castigado porque descuidara do que não lhe pertencia, mas por não haver se importado com a salvação dos demais. De maneira que, mesmo se, no que se refere a nossa própria vida, tenhamos sido perfeitos, isso em nada nos aproveitará, dado que este pecado é suficiente para irmos para o fundo do inferno. Porque se não existe desculpa possível para aqueles que não querem socorrer a seus próximos nas necessidades corporais e, mesmo se tiverem praticado a virgindade, serão excluídos da câmara nupcial, como não pensar que há de sofrer todos os tormentos aquele que faltar em coisa tão mais importante quanto a alma em relação ao corpo? Deus não constituiu o homem de maneira que fosse útil só para si mesmo, mas que também o fosse para os demais. Por isso Paulo chama também aos fiéis 'luminares' (Flp 2,15), com o que dá a entender que serão também úteis aos demais. Um luminar, enquanto só a si mesmo ilumina, não pode ser chamado luminar. Por esta razão disse ele que aqueles que se descuidam dos seus são piores que os próprios gentios. Eis as suas palavras:

"Se alguém não provê aos seus, e principalmente aos seus criados, negou a fé e é pior que um infiel".
1 Ti 5, 8

Porque o que tu pensas que se entende aqui por prover? Por acaso administrar o que é necessário para a vida? De minha parte, opino que o Apóstolo fala do cuidado da alma. Mas se te obstinas em teu parecer, isto não faz senão fortalecer a minha tese. Porque se disse isso em relação ao corpo e se tal castigo é determinado contra quem não procura este sustento diário e afirma ser pior do que um gentio, aonde colocaremos aquele que se descuida do que é mais necessário e excelente?