NECESSIDADE DE EXERCER SERIAMENTE A VIRTUDE

9.

-E que necessidade - dizes - têm meus filhos de filosofia e perfeição de vida?

- Isto - respondo eu - é o que se perdeu: que coisa tão necessária e que forma o sustento da nossa vida seja considerado como algo supérfluo e acessório. Se alguém vê o seu filho doente fisicamente, não lhe ocorrerá dizer : Que necessidade tem meu filho de uma saúde limpa e completa? Não, o que faz é colocar todos os meios para que ele a recobre tão robusta que não possa mais voltar a enfermidade. Ao contrário, se a alma está enferma, dizem que não lhe falta nenhum remédio, e depois de falar desse modo, ainda se atrevem a chamar-se de pais.

- Por que - perguntas - vamos professar todos a filosofia e deixar que se percam as coisas da vida?

Não, amigo; não é a filosofia que faz perder e corromper tudo, mas justamente o não professa-la. Se não, dize, quem são os que prejudicam a ordem estabelecida: os que vivem moderada e sobriamente ou os que inventam novos e perversos modos de prazer? Os que se empenham em apoderar-se de todos os bens do mundo ou os que se contentam com o que têm? Os que levam atras de si um exército de criados e se rodeiam com enxames de aduladores ou os que crêem que lhes basta um só criado (pois ainda não falo da mais alta filosofia, mas daquela que é acessível a todos)? Os humanos e mansos e que não necessitam da honra do povo ou os que exigem de seus semelhantes esta honra com mais rigor do que uma dívida e são capazes de produzir mil desgraças, porque fulano não se levantou ou o outro não saudou primeiro, nem se inclinou e nem se portou como se fosse um vil escravo? Os que só pensam em obedecer ou os que ambicionam poder e mandos e estão dispostos a tudo para conseguirem o que querem? Os que se declaram melhores que os demais e evidenciam isto com todo tipo de ação ou os que se põem em último lugar e refreiam desse modo o ímpeto louco de suas paixões? Os que constróem lindas residências e se sentam a mesas opulentas ou os que não buscam nas comidas e nas residências nada mais do que o necessário? Os que demarcam léguas e léguas de terra ou os que crêem não necessitar da possessão sequer de um torrão de terra? Os que acumulam interesses e mais interesses e não perdem nenhuma oportunidade de negócio sujo ou os que rasgam essas escrituras injustas e ainda socorrem os necessitados com seus próprios haveres? Os que consideram a vileza da natureza humana ou os que não querem nem saber disto, e pelo excesso de sua arrogância, deixaram até de se considerar homens? Os que alimentam as rameiras e enodoam os leitos alheios ou os que se abstêm até da própria mulher? Não é verdade que os primeiros aparecem sobre a ordem ou a constituição da terra como os tumores no corpo ou as tormentas furiosas no mar e perturbam pela sua intemperância aqueles que por si poderiam se salvar; e os outros, como faróis brilhantes em meio às trevas, convidam os náufragos para sua própria segurança e, acendendo, como sobre um promontório, as tochas da filosofia, conduzem ao porto da vida tranqüila a quem os queira seguir? Não é verdade que pelas culpas dos outros se originam as revoltas, guerras e batalhas, os extermínios de cidades, a escravidão e a servidão, os cativeiros e as matanças e todos os males sem conta da vida, não só os que vêem dos homens para os homens, mas os que descem do céu: secas, inundações, terremotos, ruínas, demolições de cidades, fome e pestes e todos os outros males que, enfim, dali nos vêem?