V

CARTA A FREI FRANCISCO TEBALDI DE FLORENÇA,
na ilha de Gorgona, monge cartuxo


Caríssimo e dulcíssimo filho em Cristo, doce Jesus. Eu, Catarina, serva e escrava dos servos de Jesus Cristo, escrevo a vós no seu precioso sangue, com desejo de ver-vos habitar na casa do conhecimento de vós, para adquirirdes cada virtude. Sem isto vivereis em todo mal, e sem nenhuma razão.

Mas, podereis dizer-me, de que modo poderia eu entrar? E como poderia conservar-me dentro?

Respondo.

Vós sabeis que sem a luz em nenhum lugar poderíamos ir, se não em trevas, pelas quais seríamos prejudicados e nas quais não poderíamos conhecer as nossas necessidades do que seria necessário para a vida.

Ora, nós somos todos viajantes e peregrinos, colocados na estrada da doutrina de Cristo crucificado. Há quem caminhe com os mandamentos da caridade comum, e há quem caminhe com os conselhos da caridade perfeita, não descuidando, porém, dos mandamentos. Por estes caminhos ninguém pode andar sem luz perfeita senão tendo a luz: não poderia ver o lugar onde conviria repousar, aquele lugar em que o homem pode discernir quem o quer destruir e quem o quer ajudar.

Este lugar é a casa do conhecimento de si, casa na qual a alma vê com a luz da santíssima fé que ela está na estrada da doutrina do Cristo crucificado. Isto é, aquele que o deseja seguir, logo entra em si mesmo e nesta casa encontra o seu principal inimigo que o quer destruir, isto é, a própria sensualidade, coberta com o manto do amor próprio, um inimigo que tem dois companheiros principais, com muitos outros vassalos em volta.

O primeiro companheiro da sensualidade é o mundo com as suas vaidades e as suas delícias, o qual se faz amigo do apetite sensorial que deseja desordenadamente.

O outro companheiro é o demônio, com seus enganos, com seus falsos e diversos pensamentos e ilusões, aos quais a vontade sensorial se inclina e, pelo modo como o demônio nos oferece tais pensamentos e ilusões, nos quais também voluntariamente se deleita.

Estes inimigos principais tem muitos servidores, todos os quais querem destruir a alma, se esta, através da luz, não se decide a colocar remédio. E por isso a razão traz a luz da santíssima fé, entra em casa e domina a própria sensualidade, porque viu que esta não busca nem quer outra coisa senão a sua morte, tendo para isto a companhia de seus inimigos. Tudo isto a alma conheceu pela luz. Por isto levanta-se com ímpeto, toma a espada do ódio contra esta sensualidade e do amor das verdadeiras e reais virtudes, e com esta espada mata a sensualidade.

Morta a sensualidade, todas os demais inimigos são derrotados, e nenhum poderá destruir a luz, se a alma não o quiser.

Com esta luz o homem vê quem é aquele que o ajudou e amparou, e que verdadeiramente o salvou da morte, trazendo-o à bem aventurada vida. O homem vê que foi o fogo da divina caridade, porque Deus por amor deu a virtude e a potência à alma, a qual com a força do intelecto e da razão subiu sobre a cadeira da consciência de onde, com a sabedoria do Sapientíssimo Verbo de que lhe foi permitido participar, deu a sentença de morte à sensualidade. Com a espada da vontade, que participa da clemência do Espírito Santo e da doce vontade de Deus, a sensualidade foi morta pela mão do livre arbítrio.

Vendo a alma, portanto, que Deus é o seu remédio, o seu sustento e o seu auxílio, cresce naquela casa do conhecimento de si, na luz da verdade e em um fogo inestimável e incompreensível que arde e consome aquilo que se encontra nesta casa contra a razão, consumindo na fornalha da caridade de Deus e do próximo a água do amor próprio espiritual e temporal, pois que nenhuma coisa mais busca o afeto da alma que não Cristo crucificado, querendo-o seguir pela via do sofrimento ao modo de Deus, e não ao seu modo, deixando-se guiar pela doce vontade de Deus.

Assim os inimigos não podem mais destruí-lo. Mas a estes é dada licença, pelo justo Senhor, que batam à porta, o que é permitido para que sejamos solícitos na guarda e para não dormir no leito da negligência, vigiando prudentemente.

E também Sua Divina Majestade o permite para provar se aquela casa é forte ou não, para que, não encontrando-se forte, tenha matéria para mortificar-se e para que, através da luz, possa ver quem a faz forte e perseverante. E para que, depois de assim o ver, possa, com grande solicitude, estreitá-la a si.

Qual é a coisa que nos torna fortes e perseverantes? É a oração humilde e contínua, feita na casa do conhecimento de si e da bondade de Deus em si. Por isso, fazendo-a fora desta casa, a alma teria pouco fruto.

Esta oração tem por fundamento a humildade, a qual se adquire na casa já mencionada, e deve vestir-se do fogo da divina caridade, a qual se encontra no conhecimento que temos de Deus quando, com a luz, a alma vê ser amada inestimavelmente por Ele. Deste amor ela prova e é certificada na primeira criação, vendo-se criada por amor à imagem e à semelhança de Deus; e na segunda criação, vendo-se recriada na graça do sangue do Cordeiro imaculado.

Estas são as duas graças principais que contém em si todas as demais graças espirituais ou temporais, particulares e gerais.

E assim, com esta luz, revestindo-se a alma do fogo da divina caridade, seguem-se as lágrimas, porque o olho, quando sente a dor do coração, quer satisfazê-lo e por isso geme e chora como a madeira verde que é posta ao fogo, a qual expele água pelo grande calor. Assim também, quando a alma sente o fogo da divina caridade e que o seu desejo e afeto estão neste fogo, o olho chora, mostrando externamente aquela partícula que lhe é possível mostrar do que está dentro. Isto procede de diversos sentimentos interiores, segundo são trazidos pelo afeto da alma, como vós sabeis estar descrito no Tratado das Lágrimas. Por isso não me detenho mais sobre este assunto.

Quero, todavia, falar-vos brevemente sobre a oração.

Brevemente falando, dizemos que a mente possui três modos pelos quais pode orar.

O primeiro é chamado de oração contínua, à qual toda criatura dotada de razão é obrigada. Esta é fruto do verdadeiro desejo fundamentado na caridade de Deus e do próximo, que faz pela honra de Deus todas as operações em si e no seu próximo. Este desejo sempre ora, isto é, o afeto ora continuamente diante de seu Criador, em todo lugar e em todo tempo que o homem encontra.

Que fruto o monge recebe disto? Recebe uma serena tranqüilidade de dentro da alma, de uma vontade acordada e submetida à razão, de modo a não escandalizar-se com nenhuma coisa. Não lhe é pesado trazer o jugo da verdadeira obediência, quando lhe são colocados pesos e exercícios manuais, ou quando lhe é ordenado servir ao seu irmão, segundo os casos e os tempos que ocorrem. O monge não se entristece, nem se lhe aflige a mente por estas coisas, não se deixando enganar pelo desejo da alma que apetece a cela, a sua consolação e a sua paz. Tampouco se deixa enganar com um sofrimento melancólico e aflitivo quando quer orar atualmente mas lhe convém fazer diversamente; em vez disso, aflora nele o odor da verdadeira humildade e o fogo da caridade do próximo. A esta oração nos convida o Apóstolo São Paulo quando diz que devemos orar sem interrupção, e quem não possui esta oração não pode ter nenhuma que lhe dê vida. Quem deixasse esta para ter a sua paz, perderia a paz.

Eis uma outra oração que se chama vocal, quando vocalmente o homem recita o ofício divino ou outras orações. A oração vocal é ordenada para que alcancemos a oração mental. E este é o fruto que o homem recebe, se esta for fundamentada na primeira, e se persevera nela com exercícios, esforçando sempre a mente a pensar, a colocar e a receber em si mais o afeto da caridade de Deus do que o som das palavras, advertindo com prudência que, quando sentir-se afervorado em sua mente, ponha fim às palavras, exceto no ofício divino, se ele é obrigado a recitá-lo.

Porque no momento em que se observam tais coisas isto é sinal que alcançamos a terceira, isto é, a oração mental, a qual se realiza levantando a mente e o seu desejo acima de si, a uma consideração do afeto da caridade de Deus e de si mesmo, em que conhece a doutrina da verdade, saboreando o leite da divina doçura, leite que brota do seio da caridade por meio de Cristo padecente, isto é, não se deleitando o homem em nenhuma outra coisa senão na cruz com Ele. Daqui nasce e se recebe o fruto do estado unitivo, onde a alma alcança tanta união que ela não vê mais a si por si, mas por Deus, e o próximo por Deus, e Deus pela sua infinita bondade, vendo ser digno de ser amado e servido por nós, e O ama sem modo. A alma corre inflamada, morta a toda vontade perversa, deleitando-se em estar no cubículo de seu esposo, onde Deus se lhe manifesta a si mesmo, e onde vê diversas moradas que estão na casa do Rei Eterno. A alma, porém, goza de um modo diverso do que observa nas criaturas, julgando em cada coisa a vontade de Deus e não a vontade dos homens. Ela é assim libertada do falso julgamento, pelo que não julga nem se escandaliza nas operações de Deus nem nas de seu próximo. Deus vos faça provar por sua infinita misericórdia o amor e a vida eterna que saboreia esta alma, porque nem com a língua nem com a tinta eu o quereria ou poderia descrever.

Por conseguinte, se entendestes o que é que nos faz perseverar na casa do conhecimento de nós mesmos, e quem é que vos conduz, e onde o encontramos, e qual é a luz que nos guia na doutrina de Cristo crucificado, e qual é a oração que nos tranca e nos conserva dentro, isto é a verdade.

Quero ainda, caríssimo e dulcíssimo filho, para que possas cumprir o voto da santa obediência ao qual recentemente fostes admitido, que sempre estejais na casa do conhecimento de vós mesmos, porque de outro modo não o podereis observar.

E foi por isso que disse que eu desejava ver-vos nesta casa do conhecimento. Esta casa em que os vossos inimigos foram expulsos, e onde foi morto o principal inimigo da vontade sensorial, esta casa que se enche e se adorna com o ornamento das virtudes. A isto quero que vos apliqueis a estudar, porque não seria suficiente que a casa estivesse vazia e não se enchesse. Quero que vós sempre insistais em estar neste cohecimento de vós, isto é, conhecer em vós o fogo e a bondade grandíssima da caridade do benfeitor e nosso Senhor Deus.

Esta é aquela cela que quero que, seja na ilha como em qualquer outro lugar, leveis convosco, em tudo o que tiverdes que fazer, e não a abandoneis jamais, no coro, no refeitório, na congregação e em tudo o que tiverdes que fazer vos estreiteis nela.

Quero também que na oração atual sempre se dirija o vosso intelecto à consideração do afeto da caridade de Deus, mais do que no dom que vos parecesse receber dEle, para que o amor seja puro e não mercenário.

E quero que a cela atual seja visitada por vós, o quanto vos permita a obediência, e que mais vos deleite estar na cela com guerra que fora dela na paz, porque o demônio usa esta arte com os solitários para conduzi-los ao tédio na cela, dando-lhes mais trevas, batalhas e moléstias por dentro do que por fora, para que se aproximem da cela com terror, como se ela fosse a ocasião dos seus pensamentos. Não quero, portanto, que volteis a cabeça para trás por isso, mas que sejais constante e perseverante, não estando nunca ocioso, mas exercitando o tempo com a oração, com a santa lição ou com o exercício manual, estando sempre a memória repleta de Deus, para que a alma não seja tomada pelo ócio.

Quero ainda que em cada coisa julgueis a vontade de Deus, como disse acima, para que nem o desgosto, nem a murmuração, vos coloquem contra vossos irmãos.

Assim também não quero menos que a pronta obediência brilhe totalmente em vós. Não em parte, nem pela metade, mas completamente, de tal modo que em coisa alguma recalcitreis à vontade da Ordem nem de vosso prelado, tornando-vos espelho da observância e dos costumes da Ordem, estudando como observá-los até a morte, desprezando e tendo por vil a vós mesmos, matando a própria vontade e mortificando o corpo com aquela mortificação que estabelecida pela Ordem.

Semelhantemente, quero que caritativamente vos esforceis por suportar com paciência os costumes perversos e as palavras malévolas e ultrajantes, as quais às vezes, ou por ilusão do demônio, ou pela própria fragilidade, ou ainda se fossem verdadeiras, vos parecessem intoleráveis. Deste modo guardareis as palavras de Cristo que diz que o Reino dos Céus é daqueles que fazem força a si mesmo com violência.

Quanto à memória, quero que se encha com o sangue de Cristo crucificado, com os benefícios de Deus, e da lembrança da morte, para que cresçais no amor em tanto temor e fome do tempo, olhando a tudo isto com os olhos do intelecto, com a luz da santíssima fé, para que a vontade corra prontamente, sem nenhum laço de amor desordenado que poderíeis ter com qualquer coisa que não seja Deus.

Além disso quero que quando o demônio invisível, ou visível, ou a frágil carne, oferecessem batalha ou rebelião ao espírito acerca de qualquer coisa, vós o manifesteis abrindo o vosso coração ao Prior, se lhe é possível, e que lhe possas falar. E se isto não for possível, a algum outro em quem sentísseis a mente mais disposta a manifestá-lo, e que vejais que seja mais capaz de dar remédio.

Quero ainda que observeis que o movimento da ira não se estenda à língua, gritando palavras feias e desprazerosas, as quais dão escândalo e perturbação, com o que a repreensão e o ódio se voltariam contra vós mesmos.

Estas são aquelas coisas as quais Deus e a perfeição que escolhestes vos exigem e que eu, indigna e miserável mãe vossa, ocasião de mal e não de qualquer bem, desejo ver em vossa alma.

Rogo-vos, portanto, e insisto da parte de Cristo crucificado, que estudeis como oferecer-vos até a morte para que sejais a minha glória, e vós recebais a coroa da bem aventurança pela longa perseverança, a qual é a única que é coroada.

Mais não vos digo. Fazei de modo que eu não tenha que chorar, e que eu não possa reclamar de vós diante de Deus, o qual vos dê na vida presente a sua divina graça, e na outra a eterna glória.