IV

CARTA A FREI NICOLAU DE GHIDA,
da Ordem do Monte das Oliveiras


Caríssimo filho em Cristo, doce Jesus. Eu, Catarina, serva e escrava dos servos de Jesus Cristo, escrevo a vós, no seu precioso sangue, com o desejo de ver-vos morador da cela do conhecimento de vós e da bondade de Deus em vós.

Esta cela é uma habitação que o homem carrega consigo, onde quer que ele vá. Nesta cela adquirem-se as virtudes reais e verdadeiras, e especialmente a virtude da humildade e da ardentíssima caridade, porque no conhecimento de nós mesmos a alma se humilha, conhecendo a sua imperfeição e o seu não ser, mas vê o seu ser recebido de Deus.

Depois disso, tendo conhecido a bondade de seu Criador em si, retribui a Ele o ser e cada graça que é colocada sobre o ser. Assim, adquire a perfeita caridade, amando a Deus com todo o seu coração, com todo o afeto e com toda a sua alma.

E como ela ama assim, concebe um ódio para com a própria sensualidade e alegra-se que Deus puna, como quiser, a própria iniqüidade. Ela se torna imediatamente paciente em toda tribulação que tenha, dentro ou fora de si. De onde que se ela as tem interiormente por diversas cogitações, as carrega voluntariamente, considerando-se indigna da paz e da tranqüilidade da mente que possuíam os demais servos de Deus, e se considera digna da pena e indigna do fruto que se segue à pena.

De onde isto procede? Do santo conhecimento de si. Aquele que se conhece, conhece Deus e a bondade de Deus em si, e por isso se recolhe nAquele que ama. Esta alma se alegra de trazer sem culpa cada pena por Cristo, e não se preocupa com as perseguições do mundo, nem com as detrações dos homens, mas o seu desejo é de carregar os defeitos do seu próximo e procurar suportar verdadeiramente as fadigas da Ordem, preferindo antes morrer do que subtrair-se ao jugo da obediência. De onde que é súdito sempre, não apenas ao prelado, mas ao mínimo que seja, porque não presume de si mesmo, reputando-se alguma coisa. Por isto ele se torna verdadeiramente súdito de cada pessoa por Cristo crucificado, não com a intençãoo de agradar ou de não pecar, mas com humildade, por amor da virtude.

E foge da conversação do século, e dos seculares, assim como da lembrança dos parentes, não tanto para não ter conversaçaõ com eles, mas como de serpentes venenosas. Torna-se amante da cela, agrada-se de salmodiar com humilde e contínua oração, e faz desta cela um céu. Mais quererá permanecer na cela, com penas e muitas batalhas de demônios, do que fora da cela, com paz e quietude.

De onde obteve este conhecimento e este desejo? Obteve-o na cela do conhecimento de si, porque se antes não tivesse tido esta habitação da cela mental, não teria o desejo, nem amaria, a cela atual. Mas porque viu e conheceu em si quanto era perigoso discorrer e ficar fora da cela, por isso a ama.

E verdadeiramente o monge fora da cela morre, assim como o peixe fora da água. Quanto é perigoso o monge vagar a esmo! Quantas colunas vimos cair por terra pelas distrações ou pela permanência fora de sua cela além do tempo devido e ordenado! Quando o tivesse mandado a obediência ou uma estrita e expressa caridade, isto não causaria dano à alma. Mas não é o que ocorre quando é feito por uma leviandade do coração ou por uma simples caridade, em que o demônio ilude o ignorante para fazê-lo sair fora da cela. A alma não vê que a caridade deve mover-se primeiro por si, isto é, que por nenhuma utilidade que possa fazer ao seu próximo deve fazer a si o mal da culpa ou coisa que lhe impeça a sua perfeição.

Por que motivo estar fora da cela atual é tão nocivo? Porque antes que tivesse saído da cela atual, terá saído da cela mental, do conhecimento de si, porque se a alma não tivesse saído, teria conhecido a sua fragilidade, por cuja fragilidade não teria sido o caso de sair para fora, mas permanecer dentro.

Sabeis que fruto consegue por sair fora? Fruto de morte, porque a mente se esvai ao tomar a conversação dos homens e abandonar a dos anjos. A mente se esvazia de tantos pensamentos de Deus e se enche do gosto das criaturas com muitos variados e maldosos pensamentos. Diminui a solicitude e a devoção do of[icio e esfria o desejo da alma. Em seguida abre as portas de seus sentimentos, isto é, abre os olhos para ver o que não deveria, e os ouvidos para ouvir aquilo que está fora da vontade de Deus e da salvação do próximo. A língua passa a falar palavras ociosas e a esquecer de falar de Deus. De onde causa dano a si e ao próximo, tirando-lhe a oração, porque no tempo em que deveria orar por ele, vai discorrendo e retirando a edificação. A língua não seria suficiente para narrar quantos males daí resultam e a alma, se não tiver cuidado, não perceberá que pouco a pouco esgorregará tanto que se afastará do redil da santa religião.

Aquele que conhece a si mesmo vê este perigo e por isso foge para a cela e ali refaz a sua mente, abraçando-se com a cruz e com a companhia dos santos doutores, os quais falam da grandeza da bondade divina e da vileza da alma, embriagados com a luz sobrenatural, enamorando-nos da virtude e alimentando-nos da honra de Deus e da salvação das almas sobre a mesa da Cruz santíssima, sustentando suas penas com verdadeira perseverança até a morte. Desta companhia se regozija o verdadeiro monge.

Quando a obediência o enviasse para fora, isto lhe pareceria duro, mas estando fora, permaneceria dentro por um santo e verdadeiro desejo, alimentando-se nesta cela do sangue de Cristo e unindo-se ao supremo e eterno bem por afeto de amor. Não foge nem recusa fadigas, mas como verdadeiro cavaleiro permanece na cela no campo de batalha, defendendo-se dos inimigos com a espada do ódio e do amor, e com o escudo da santíssima fé, sem voltar nunca a cabeça para trás, perseverando com a esperança e a luz da fé, até que, pela perseverança, alcance a coroa da glória.

Este monge alcança a riqueza da virtude, mas estas mercadorias não as adquire nem as compra em outro lugar que não no conhecimento de si e da bondade de Deus em si. Por este conhecimento torna-se habitante da cela mental e atual, porque de outra maneira nunca as teria adquirido.

De onde que, considerando eu que não há outro modo, disse que desejava de ver-vos morador do conhecimento de vós mesmos e da bondade de Deus em vós.

Mas sabei que fora da cela não as adquirireis jamais.

E por isso quero que vós regresseis rigorosamente a vós mesmos, permanecendo na cela, e que estar fora da cela se vos torne tedioso além daquilo que exija a obediência e a extrema necessidade.

Que dirigir-se à terra vos pareça ir ao fogo, e a conversação dos seculares vos pareça um veneno. Fugi de vós mesmos e não queirais ser cruel para com a vossa alma.

Filho caríssimo, não quero que durmais mais, mas despertemos pelo conhecimento de nós mesmos, onde encontraremos o sangue do Cordeiro imolado e imaculado.

Mais não vos digo. Permenecei no santo e doce amor de Deus. Recomandai-me ao prior e a todos os demais.