II

DESCRIÇÃO DA CELA

por parte do Padre F. Ferdinando de Castilho,
segundo sua História de São Domingos,
Parte 2, Livro 2, capítulos 3 e 4.


Os parentes tiraram à virgem o lugar e o tempo que costumava ter para a sua oração, e a ocuparam em todos os afazeres mais baixos e vis da casa. O mais honroso foi tê-la colocado na cozinha, onde a toda hora era gritada, desonrada e martirizada com expressões e palavras horríveis, todas ditas com o propósito de cansá-la e triturá-la até que, aflita e esgotada, se rendesse ao que queriam.

Mas isto era como golpear uma rocha com agulhas e alfinetes.

A tudo se mostrava surda, às injúrias muda, e aos desprezos sereníssima e, diante de toda a cólera de seu pai e de sua mãe, uma ovelha, e frente a um casamento que lhe ofereceram, como se fosse de pedra.

Em tudo se comportava bem, com a fortaleza que o Espírito Santo lhe dava, e a todas estas tormentas correspondiam novas determinações no seu primeiro voto.

E o Senhor, que como diz São Paulo, guarda tantas leis com os seus servos, que não consente que sejam tentados mais do que o que podem e, ao contrário, com as tentações e as adversidades opera que neles cresça o fruto copioso da vitória, da fortaleza, da prudência e de tantas virtudes, concedeu então novas graças a esta virgem.

E como supremo artífice da santidade a inspirou, já que seu pai e sua mãe lhe retiraram o quarto onde se recolhia, que trabalhasse dentro de sua alma um outro cômodo interior e secreto, onde pudesse recolher-se continuamente e pudesse tratar intimamente com seu esposo Jesus, mais fechada e guardada que sob chaves e muros.

Ela sabia bem o que o Senhor diz no Evangelho: "O Reino de Deus está dentro de vós", e disto ela pensava, e não erroneamente, que se tratasse de nosso coração, o qual é seu verdadeiro Templo, e coisa feita para a sua morada, não por mãos humanas, mas pelo Espírito Santo.

Ele não é pedra, nem cal, nem pregos, nem madeira, nem muitos cômodos trabalhados por vaidade e cerimônia.

Toda a construção é fundamentada no conhecimento de Deus e de nossa pequenez e baixeza. E tudo aquilo que ali se utiliza é amá-Lo, considerá-Lo, e com solicitude e freqüentes orações e suspiros, invocá-Lo e chamá-Lo, fechando todas as portas e as potências da alma com as chaves do amor divino.

E esta foi a nova cela, que Catarina encontrou na casa de seu pai, onde permanecia tão contente, que nenhuma coisa do que estava aqui fora a tocava, nem pensava que falassem com ela, tão verdadeiramente estava ocupada consigo mesma e com Deus.

E assim se tornou uma mestra tão grande que a todas as horas e em todas as ocasiões costumava ensinar e dizer que o remédio de nossos males consistia em fugir deles e bater com a porta sobre os olhos deles, fechando-se cada um em seu quarto e cela interior da mente, sem a qual nenhum cômodo de nenhuma fortaleza, ou nenhum muro de nenhum mosteiro em tempo algum podiam valer alguma coisa para defender-nos do mal e manter-nos em tranqüilidade, e somente este edifício e cela, ainda que esteja o homem no meio do mundo, basta para mantê-lo recolhido e guardado.

Conhecimento de Deus e conhecimento de mim mesmo, conversação com Deus e conversação comigo mesmo. Olhos voltados para a Sua grandeza, e estes mesmos olhos para as minhas baixezas. Fugir de mim mesmo para entregar-me, tudo isto se faz nesta cela, sem deixar tempo nem lugar para outra coisa.