VIDA DE SÃO BERNARDO

1090 - 1153

Escrita pelo Revmo. Pe.
Pedro de Ribadeneira, S. I.

1526 - 1611

Segunda Parte



VII


Havia desejado o santo abade permanecer toda a sua vida naquele lugarejo desconhecido dos homens; mas o Senhor o trouxe à luz para que repartisse ao mundo os tesouros e as graças que em sua cela havia alcançado. Foi necessário que dela saísse para reconciliar com a Igreja Romana os cismáticos, para convencer publicamente os hereges e para promover o bem e estabelecer a paz entre os católicos.

Levantou-se no tempo de São Bernardo, depois da morte de Honório, Sumo Pontífice, um perigoso cisma na Igreja porque um romano ilustre, chamado Pierleone, tomou com má fé o nome de Anacleto e usurpou a cadeira de São Pedro, opondo-se ao verdadeiro Pontífice, Inocêncio, o segundo deste nome. Houve grande escândalo e uma divisão muito perigosa na cristandade, porque no início não era possível distingüir-se tão facilmente qual dos dois deveria ser tido como legítimo sucessor de São Pedro e vigário geral do Senhor. Celebravam- se em várias partes sínodos nacionais sobre este artigo, e especialmente na França foi convocado um concilio na cidade de Etampes. E para poder, com maior luz e assistência do Espirito Santo, decidir uma dificuldade tão grande, pareceu bem ao rei de França e aos demais principais prelados que antes de tudo se chamasse ao Concílio o abade de Claraval, pelo grande conceito que todos tinham de sua sabedoria e santidade. Chamaram-no e o santo abade, obrigado pela obediência aos seus prelados e pela importância do assunto, veio cheio de tremor e temor, considerando a gravidade e o perigo do que haveria de ser tratado, embora tivesse tido grande consolação no caminho e ficado muito animado com uma visão e revelação do Senhor. Chegando ao local do Concílio, foi recebido como a um anjo do céu e, na primeira sessão, por consentimento e unanimidade gerais, determinou-se que fosse posta aquela controvérsia nas mãos de São Bernardo para que a determinasse e todos seguissem o seu parecer, coisa grandíssima e grande argumento da estima que todos tinham do espirito do Senhor que habitava e falava nele, ainda que ele próprio procurasse desculpar-se com sua modéstia, por parecer-lhe carga intolerável e além de suas forças. Finalmente, vencido pelos pedidos e pela autoridade daquela sagrada congregação, o aceitou, confiado tanto em Deus quanto desconfiado de si. E depois de haver invocado o favor do céu e feito todas as diligências para acertar, declarou Inocêncio como o sumo e verdadeiro Papa e pastor da Igreja, sem que houvesse em todo aquele concílio uma única pessoa que o contradissesse ou se opusesse a tal declaração; e com isto foi Inocêncio obedecido no reino de França. E porque o rei Henrique da Inglaterra se mostrava duro e de parecer contrário, o glorioso abade foi até ele, persuadindo-o a que se conformasse com o que se havia determinado na França, tomando sobre a sua consciência qualquer culpa que em fazê-lo pudesse haver, e o rei o fêz, e para honrar mais ao Pontífice veio à França, onde havia chegado como que fugindo da Itália. Inocêncio, o qual com grande alegria de todos o recebeu em Chartres e lhe deu a sua bênção apostólica.

Mas, porque na província de Gasgonha ainda durava o cisma pela ambição de Gerardo, bispo de Anguleme, o qual, favorecido por Guilherme, conde e príncipe poderoso, fazia grandes desaforos, o santo abade foi enviado pelo Papa para trazer o conde à razão e refrear a tirania do mau bispo. Foi São Bernardo à Gasgonha, falou ao conde Guilherme e procurou reconduzi-lo à obediência do verdadeiro pastor, o mesmo fazendo-o alguns bispos e pessoas religiosas; mas, ainda que ele se tivesse aproximado, nunca quis se conformar com que voltassem para suas igrejas os bispos que com tanta violência haviam sido afastados delas. Vendo o santo a obstinação do conde e que os meios humanos para nada adiantavam, recorrei aos divinos e fêz o que aqui direi. Foi à igreja, celebrou missa, tomou o santíssimo sacramento nas mãos sobre uma patena e saiu para onde estava o conde, o qual, por estar excomungado, não podia entrar na igreja e estava junto à porta, do lado de fora. Com o rosto inflamado, lançando chamas, com os olhos faiscando e uma voz terrível e espantosa, falou- lhe desta maneira:

"Nós te rogamos,
e tu nos tens desprezado;
todos estes servos de Deus te suplicaram,
e tu não fizeste caso deles.
Eis aqui o filho da Virgem,
Cabeça e Senhor da Igreja que tu persegues,
que vem à tua presença.
Eis o teu juiz,
para cujas mãos há de retornar a tua alma.
Veremos se fazes caso dEle,
se lhe voltas as costas,
como o fizeste conosco".

Diante destas palavras tremeu o conde. Caíu ao chão, tornou a levantar-se. Voltou a cair de novo sem poder falar, soltando saliva e espumando pela boca, espantado e atônito. Finalmente, fêz tudo o que o santo mandou, e dispensou depois tão estreita amizade com ele, que com seus santos conselhos e doces palavras modificou-se de tal maneira que, deixando o Estado, retirou-se, fez penitência muito rigorosa e fêz-se santo, disto fazendo menção o Martirológio Romano no dia 11 de fevereiro. Quanto ao bispo Gerardo, este ficou obstinado em sua malícia, tendo sido encontrado pouco depois, pela manhã, morto em sua cama, sem confissão nem viático.

Depois disto, persuadiu São Bernardo ao Imperador Lotário, que na cidade de Lièje havia se encontrado com o Papa, que deixasse uma vã e ambiciosa pretensão que tinha de recobrar a investidura dos bispados que havia sido retirada ao Imperador Henrique, seu predecessor. Voltou o Papa à Itália, tendo resolvido os assuntos de França e celebrado um concilio em Reims, e quis passar pela Borgonha para visitar Claraval e ser hóspede do santo abade naquele mosteiro, onde viviam seus monges mais como anjos do céu que como homens vestidos com um saco de carne. Ali teve o Sumo Pontífice grande consolação pelo que viu. Saíram os monges em procissão, não com evangelhos dourados nem com cruz de prata, que não havia, mas com cruz de madeira e pobres ornamentos; com tanta devoção, porém, e tanta modéstia, que o Papa, os cardeais e os bispos não puderam conter as lágrimas. O Papa comeu no refeitório, e toda a comida consistiu em alface e legumes, e como grande regalo houve um pouco de suco de frutas, e para o Papa um peixe que com só muita dificuldade se pôde achar.

Na Itália as coisas estavam ainda tumultuadas, e para acalmá-las convocou o Pontífice outro concílio na cidade de Pisa, no qual, entre outras coisas, Anacleto foi declarado excomungado, assistindo sempre São Bernardo a todos os assuntos que ali se tratavam, não somente como ajudante e participante, como também, de certo modo, na qualidade de árbitro e ministro principal do Papa. Concluído este, foi o servo do Senhor à cidade de Milão, que estava separada do verdadeiro Sumo Pontífice, unindo-a sob a sua obediência.

Foram com o santo para Milão dois cardeais legados `a latere': Guido, bispo de Pisa, e Mateus, bispo albanês e, por vontade de São Bernardo, também Gofredo, bispo carnotense, grande amigo seu e homem de grande prudência e autoridade. Quando estavam a sete milhas de Milão saíu toda a cidade para recebê-los, eclesiásticos e seculares, ricos e pobres, cavaleiros e oficiais e, sem repararem nos cardeais que vinham com ele, lançavam-se aos seus pés, beijando-os e considerando ser grande felicidade poderem vê-lo, ouvi-lo, falar-lhe e cortar-lhe de seu pobre hábito pedaços de pano como relíquias, com as quais curavam-se muitos enfermos; e por mais que o santo repreendesse ao povo pela honra que lhe faziam e o exortava a honrarem e reverenciarem àqueles prelados que, por serem cardeais da santa Igreja Romana e legados do Vigário de Cristo, eram dignos de toda veneração, não houve remédio e assim, com este aplauso e regozijo e multidão de gente, entrou em Milão. Dali voltou à Claraval guiado sempre pela mão do Senhor,com extraordinário regozijo de todos os seus filhos e satisfação de sua alma; porque pensava que se haviam acabado os trabalhos daqueles assuntos complicados e distrações, e que podia naquele lugar repousar e cuidar de seu aproveitamento com maior sossego. Mas não sucedeu conforme pensava, porque o Papa, achando-se ainda cercado de trabalhos por toda a parte e pressionado por Rogério, rei da Sicília, o qual favorecia o anti- papa, ordenou-lhe que se dirigisse de novo a Roma, porque não encontrava quem melhor o pudesse ajudar do que São Bernardo, como a experiência o havia ensinado. Obedeceu o grande servo do Senhor como verdadeiro filho da obediência. Foi Roma, e dali a encontrar-se com o rei, e conduziu a muitos para a obediência de Inocêncio, inclusive ao próprio Pedro de Pisa, famoso jurista que representava os interesses de Anacleto, convencendo também o rei Rogério tão manifestamente que ele não podia mais alegar ignorância. Este, porém, cego pela paixão e cobiçando os bens da Igreja que havia usurpado, não quis fazer demonstração pública, como São Bernardo o aconselhava. Mas, pelas orações do santo abade, Deus deteve o cisma e os males que dele resultavam com a morte do falso pontífice Anacleto, o qual, assaltado por uma pestilenta enfermidade que durou três dias, impenitente, passou desta vida para dar conta na outra ao eterno juiz dos danos que com sua ambição e tirania havia causado à Igreja. Logo que morreu Anacleto os de seu partido elegeram-lhe outro sucessor; mas este, com menor conselho, se dirigiu à noite até São Bernardo e, largadas as insígnias de sumo pontífice que havia tomado, conduzindo consigo o próprio santo, lançou-se aos pés do verdadeiro pontífice Inocêncio, pelo qual foi benignamente recebido. E com isto se acabou aquele cisma tão longo e tão lastimoso, dando todos, depois do Senhor, a honra e o louvor deste final tão desejado ao santo abade que, havendo gastado sete anos nesta empreitada, pôde concluí-la com o favor do céu.


VIII


Não podendo, porém, sofrer os louvores dos homens e a reverência que toda a corte romana lhe fazia, ao fim de cinco dias pediu licença ao Papa para voltar à sua pobre casa, como o fêz, de onde enviou alguns religiosos ao Papa para que habitassem no mosteiro que Sua Santidade havia reparado no lugar das Três Fontes, que é onde Paulo foi decapitado e hoje em dia tem o título de São Vicente e Anastácio.

Entre os demais monges, para lá se dirigiu como abade Bernardo de Pisa, discípulo do santo abade, grande religioso e pessoa que havia sido muito estimada no século; o qual, morto Inocêncio, Celestino e Lúcio, seus sucessores, foi eleito com total aprovação como Sumo Pontífice. Chamou-se Eugênio III, e foi para ele que depois São Bernardo escreveu aqueles divinos livros conhecidos pelo nome De Consideratione.

Não pôde, porém, o amigo de Deus sossegar outra vez em seu mosteiro como anelava. Foi, ao contrário, necessário que saísse dali apressadamente para reprimir e confundir alguns hereges que se haviam levantado naquela ocasião, como já o havia feito com os cismáticos, vendo os membros desunidos e apartados da Igreja com sua cabeça. Um destes foi Pedro Abelardo, homem de agudo engenho, mas orgulhoso e vão. Enganado pelo pai da mentira, começou a disseminar novas doutrinas e algumas opiniões falsas e perniciosas. Avisou-o o santo benigna e secretamente para que as revogasse. Vendo que com os meios brandos não alcançava êxito, em um concílio que se celebrou em Sens, na França, na presença de muitos prelados e doutores, arguíu-o e convenceu-o de tal maneira que o pobre homem, cheio de vergonha e de confusão, não soube o que responder às objeções do santo.

Também teve outro encontro com Gilberto Porretano, bispo de Poitiers, homem muito versado nas Letras Divinas, mas temerário e arrogante, o qual com mais sutileza que verdade ensinava nova doutrina no mistério da Santíssima Trindade. Disputou com o santo dois dias no Concílio de Reims, celebrado pelo Papa Eugênio III, e o fêz retratar-se dos erros que havia ensinado.

Não foi de menor dano a impiedade de um falso e perverso mestre chamado Henrique, vilíssimo apóstata, que colocou sua boca no céu e declarou guerra contra Jesus Cristo, contestando os santos sacramentos e deitando por terra os antigos usos da hierarquia eclesiástica. E porque era falador e sagaz, havia feito grande progresso pelas partes da Gasgonha, onde por sua detestável doutrina viam-se as igrejas sem sacerdotes e sem a devida reverência e, para resumi-lo em uma palavra, os cristãos sem Cristo. Enviou o Papa um legado para remediar tão graves danos, o qual passou por Claraval, levando consigo a São Bernardo, que foi recebido com incrível devoção por todos aqueles povoados. Com sua vida, doutrina e milagres arrancou dos corações daquela gente enganada a semente má que o demônio , por intermédio de Henrique, seu ministro, havia semeado; e os que haviam sido pervertidos se submeteram à fé, prendendo e entregando o herege ao bispo.

Em outra ocasião teve que sair de seu recolhimento para apaziguar os cidadãos de Metz na Lorena e alguns príncipes da comarca, que faziam guerra crua e perigosa entre si, porque não pôde negar ajuda ao arcebispo de Treveris que, como bom pastor, desejava impedir os danos de suas ovelhas e os males que aquela discórdia poderia trazer; havia vindo a Claraval em pessoa e, atirando-se aos pés do santo abade, suplicou-o humildemente, pelas chagas de Jesus Cristo, que tomasse a iniciativa para pacificar os ânimos desunidos e ferozes que com suas inimizades tão fortes ameaçavam a Igreja. O santo achava-se já velho, próximo do final de sua vida e acamado devido à enfermidade. Deu, no entanto, pela sua caridade, maior importância à saúde espiritual de seus filhos do que à sua própria. Colocando-se imediatamente a caminho com o mesmo arcebispo, o Senhor concedeu-lhe subitamente novas forças para aquela jornada, porque feita para o seu serviço. E, embora tenha encontrado dois exércitos inimigos prontos para a guerra, aplacou-os de tal maneira que, deixadas as armas de comum acordo, colocaram todas as suas diferenças em suas mãos, e ele as julgou com grande paz e contentamento das partes que aquela tempestade e turbilhão converteu-se em uma serena concórdia e tranquilidade.

Coisa maravilhosa parecerá a alguns que um pobre religioso, vestido com um saco vil e desprezível, fizesse coisas tão grandes e tão insólitas, e que tivesse tão grande autoridade e força, não apenas para converter do século ao Senhor tantas pessoas de todos os estados, como também para unir a Igreja desunida, submeter os reis, atemorizar os príncipes, confundir os hereges e persuadir os povos em tudo o que ele queria, como se fosse o senhor dos corações.


IX


Mas não há por que admirar-se, entretanto, se considerarmos que não há quem possa resistir ao Espirito Santo e ao braço do Todo Poderoso. A opinião da santidade de Bernardo era grandíssima; suas palavras eram como setas agudas lançadas pela mão do Senhor; sua oração, tão eficaz e poderosa, que alcançava do céu tudo o que desejava, e os milagres que Deus operava obrava por meio dele eram tantos, tão contínuos e tão grandes que só eles já eram suficientes para dobrar o mundo à sua vontade. Gofredo, monge de Claraval, companheiro e secretário do santo, afirma como coisa certa e notória que em uma aldeia da cidade de Constança, na presença de muitas testemunhas, com a imposição de suas mãos em um só dia iluminou onze cegos, curou dez defeituosos e dezoito cochos, e que na cidade de Colônia, em apenas três dias, doze cochos, dois estropiados, três mudos e dez surdos recuperaram completamente a saúde, de modo que alguns homens piedosos, querendo pela sua devoção deixar uma memória escrita dos milagres que o santo fazia e começaram-nos a escrever para pouco depois verem-se obrigados a desistir de o fazer, vencidos pela multidão e grande quantidade deles. O próprio santo se admirava com os milagres que Deus operava por ele, não sabendo ao que atribuí-los, porque pela sua profunda humildade conhecia e dizia que não se deviam à santidade que não possuía nem tampouco aos seus méritos, mas que eram concedidos para a salvação e para o aproveitamento de muitos, para que estimassem e honrassem a virtude que supunha-se que ele teria. E também para que conhecessem que Deus não faz milagres para o bem daqueles através dos quais os realiza, mas para o proveito daqueles que podem vê-los e daqueles que o acabam sabendo, nem tampouco para que os que fazem mais milagres sejam tidos por mais santos, mas para que todos sejam amigos e imitadores da santidade. E este também é o motivo pelo qual faremos silêncio sobre muitos, somente mencionando aqui a alguns poucos, dos quais esperamos que aqueles que os lerem possam aproveitar-se.

Comecemos pelo primeiro milagre que o santo fez ao voltar da fundação do mosteiro chamado das Três Fontes.

Foi avisado que um parente seu, chamado Gisberto, estava para morrer. Já estava impossibilitado de falar e não havia podido confessar-se. Era homem nobre e rico, mas de má vida e usurpador do bem alheio. Entrou o servo de Deus na igreja para celebrar missa e encomendá-lo a Deus e no mesmo instante o enfermo volta a si e começa a confessar e a chorar os seus pecados. Quando, porém, São Bernardo acaba a missa, o doente torna a perder a fala. Foi o santo visitá-lo e encontra-o naquele estado; rogam-lhe para que faça oração por ele e São Bernardo, levantando os olhos ao céu e movido pelo Senhor, responde com grande liberdade aos que estavam ali presentes:

"Vós sabeis as más obras
que fez este homem,
e que ele é possuidor
de muitos bens mal ganhos.
Restitua, ele e seus filhos,
aquilo que não é seu;
abandone os maus tratos
e os modos injustos de que
tem feito uso contra os pobres.
Se assim o fizer,
morrerá como cristão".

Tudo isto o enfermo o fêz tal como o santo o havia mandado. Logo a língua, muda e presa, ficou solta e livre. Já podendo falar, confessou-se com muita contrição e, recebidos os outros sacramentos da Igreja, faleceu com muita edificação de todos e esperança de eterna salvação.

Quando pregava, na região de Tolouse, contra o herege Henrique de quem já falamos, certo dia, acabado o sermão, aquela boa gente trouxe uma grande quantidade de pães para que o santo os abençoasse. Ao fazê-lo, o santo lhes disse:

"Nisto podereis ver,
meus filhos,
se é verdade o que vos prego
e se é falso o que vos ensinam
e aquilo de que vos querem persuadir
os vossos adversários.
Isto é, se todos os vossos enfermos
que comerem destes pães
ficarem curados".

Estava ali presente o bispo de Chartres e, parecendo-lhe que aquela proposta do santo era demasiadamente ampla, querendo modificá-la, acrescentou:

"Haveis de entender
que ficareis curados
se for com fé
que comerdes deste pão".

Então respondeu São Bernardo:

"Não foi isto o que eu disse, senhor,
mas exatamente o que minhas palavras disseram,
isto é, que todos os enfermos que provarem deste pão
haverão de recuperar a saúde,
para que se entenda que somos legítimos
e verdadeiros mensageiros de Deus".

Tal como o disse, assim o foi. Todos os que comeram daquele pão curaram-se, sem exceção alguma.

A fama deste milagre espalhou-se imediatamente por toda a província e foi de muito proveito para estancar a heresia. Despertou e inflamou o coração do povo à devoção do santo abade. Concorriam em tão grande número de todas as partes para vê-lo e prestar-lhe reverência que foi necessário, para escapar a todas estas homenagens, mudar o caminho de Salat, onde havia sido o milagre, para a cidade de Tolouse.

Naquela mesma comarca, com a mesma finalidade e para confirmação da fé, curou um clérigo do Colégio de São Saturnino, paralítico incurável, o qual que também se chamava Bernardo, tão debilitado e consumido que muitas vezes parecia haver entrado em artigo de morte. Vendo-o o santo, abençoou-o e partiu. Naquele momento confortaram-se-lhe os nervos e, recobrando as forças, levantou-se da cama onde estava, correu atrás do santo abade, deteve- o e jogou-se a seus pés, beijando-os com grande devoção e afeto. Mais ainda, acompanhou-o e, para ser agradecido a Deus, tomou o hábito em Cister, submetendo-se à obediência de São Bernardo. Tendo dado bom exemplo mostras de religião e prudência, foi escolhido pelo próprio São Bernardo para ser abade de outro mosteiro chamado Valdaqua.

E quem poderá narrar o domínio que teve este grande santo sobre os demônios e o império com que os expulsava das pessoas a quem cruelmente atormentavam? Não somente estando presente, impondo-lhes as mãos, fazendo o sinal da cruz ou dando-lhe um pouco de água benta para beber, mas também estando ausente, fugiam os espíritos infernais da estola do santo como de um espantoso suplicio. Deixando de lado outros milagres que dizem respeito a este assunto, mencionarei somente dois memoráveis.

Estando na cidade de Milão para reconduzi-la à unidade da Igreja e à obediência do Romano Pontífice, conforme dissemos acima, entre outros muitos e assinalados milagres que o santo fêz houve o de uma mulher honrada e de idade madura, em que Satanás havia entrado e possuído por muitos anos, tendo-a maltratado de tal maneira que ela já não podia ver, ouvir ou falar e mostrava uma língua que mais parecia uma tromba de elefante ou de algum outro horrível monstro do que de uma mulher. Tinha o rosto muito feroz e espantoso; o alento, hediondo, insuportável e digno do hóspede que a atormentava. Foi pela força que tiveram que conduzí-la. certa manhã, ao santo, quando celebrava missa no templo de Santo Ambrósio. Olhou-a com olhos brandos e piedosos e logo entendeu que aquele demônio era rebelde e que havia tomado posse, por permissão do Senhor, tão fortemente daquela mulher, que dificilmente poderia deixá-la. Voltando-se para o povo, que era enorme, ordenou que todos orassem atentamente, e aos clérigos que mantivessem a mulher firme e imóvel.

Chegando ao mistério da consagração, quantas cruzes fazia sobre a hóstia, outras tantas, dirigindo-se para a endemoninhada, fazia sobre ela, com incrível raiva e dor daquele espírito maligno, que o mostrava com o ranger dos dentes, com os gestos, os gritos e os movimentos de todo o corpo. Finalmente, tendo dito o Pai-nosso, tomou o corpo do Senhor na patena e esta sobre a cabeça da triste mulher, falando com o demônio, lhe disse:

"Eis aqui, espírito maligno,
o teu juiz.
Eis aqui o Senhor todo poderoso.
Contradize-o, se podes.
Este é o sagrado corpo
que se formou nas entranhas da virgem,
pendeu da cruz,
foi sepultado,
ressuscitou da morte,
subiu triunfante aos céus.
Pelo poder desta soberana majestade,
eu te ordeno que deixes esta sua serva
e que não mais te atrevas
a molestá-la daqui em diante".

Saiu aquele espirito infernal e pertinaz que possuía aquela pobre mulher, louvando todos ao Senhor e confessando que o Santíssimo Sacramento do Altar é eficacíssimo e poderosíssimo contra todo o poder do inferno quando a ele nos dirigimos com a pureza e com a fé convenientes. Este é o primeiro milagre.

O segundo é que, estando em Pavía, um pobre lavrador trouxe sua mulher endemoninhada para que a curasse, e o demônio começou a ridicularizar o santo e a dizer:

"Não me expulsará de minha casa
este comedor de cachorros e de cebolas".

Dizia-lhe também outras palavras injuriosas para irritá-lo. Mas ele, verdadeiro humilde, não se perturbou, e mandou que levassem a mulher para igreja de São Ciro, que havia sido bispo de Pavia e resplandecia com muitos milagres. Levaram-na até a igreja, e não quis Deus que São Ciro a curasse, para guardar aquela honra para São Bernardo, a cuja presença voltaram-na a trazer. O demônio começou a escarnecê-lo e a dizer:

"Não me expulsou Cirinho,
muito menos me expulsará Bernardinho".

Ao ouvir isto, disse São Bernardo:

"Não te expulsou Ciro,
nem te expulsará Bernardo,
mas quem te expulsará será Jesus Cristo".

Fêz uma oração pela mulher e esta ficou curada.


X


Não foi menor o dom que havia-lhe sido concedido em outros milagres mais interiores e espirituais no que diz respeito ao bem das almas, como se verá por algumas coisas que passo a referir.

Havia no convento de Claraval um monge menos perfeito que os demais, ao qual o santo abade havia ordenado, por causa de uma culpa cometida em segredo, que não comungasse. Ele, porém, em uma festa solene, vendo todo o convento comungar e temendo a vergonha e a infâmia, aproximou-se junto com os demais ao altar. Era São Bernardo quem celebrava a missa, e foi de sua mão que o monge, juntamente com os demais, recebeu o Santíssimo Sacramento. O santo, por se tratar de uma causa oculta, não o quis negar. Voltou-se, porém, ao Senhor, pedindo-lhe que castigasse aquela temeridade. Havendo tomado o monge a hóstia sagrada, não podia engoli-la por mais que tentasse, até que depois, prostrando-se aos pés de seu prelado, com muitas lágrimas lhe disse em segredo o que se passava e lhe mostrou a hóstia na boca. O santo padre, repreendendo-o pelo seu atrevimento e dando-lhe uma salutar penitência, o absolveu, e com isto o monge conseguiu engolir aquele celestial manjar, para que se veja o quanto se deve prezar a obediência aos superiores no uso dos Santos Sacramentos.

Houve outro monge que, no mesmo convento, achando-se árido e sem devoção para chorar os pecados que havia cometido no século, pediu ao santo com grande afeto que lhe alcançasse do Senhor espírito de ternura e de devoção e, pela sua oração, conseguiu-o tão copiosamente que dali em diante seus olhos foram uma fonte de lágrimas.

Tratava uma vez São Bernardo na corte do rei de França uma paz de grande importância e a rainha, ainda que no demais se mostrava muito devota, no tratar da paz era-lhe contrária. Casada por muitos anos com o rei sem que tivessem filhos, era tida por isto como estéril, o que era para ela causa de grande aflição e de descontentamento para o rei. Tendo a rainha certo dia manifestado seu desconsolo e angústia ao servo de Deus, ele aconselhou-a a que não impedisse aquela paz, mas que a incentivasse, porque desta maneira o Senhor cumpriria o seu desejo. A rainha assim o fêz e, ao fim de um ano, pelas orações do santo, deu à luz um filho.

Quando estava São Bernardo para partir pela segunda vez de Roma, desejou levar consigo algumas relíquias. Ofereceram-lhe a cabeça inteira de São Cesário mártir mas ele, por sua modéstia, não quis senão um dente. Quiseram retirá-lo das arcadas utilizando alicates, mas não o conseguiram, quebrando, em vez disso, os próprios alicates. Então São Bernardo disse:

"É preciso rogar ao santo mártir
que se digne conceder-nos
tão grande presente".

Fêz oração e, aproximando com reverência da sagrada cabeça, facilmente retirou com os dedos o dente que os outros não o haviam conseguido fazer com ferros.

Em outra ocasião, estando enfermo e muito debilitado, ordenou a um de seus monges que havia ficado com ele, porque os outros estavam em outras tarefas, que fosse à igreja fazer oração por ele. Fê-lo o religioso em três altares diversos que ali estavam, o da gloriosa Virgem Maria Nossa Senhora, o de São Lourenço mártir e o de São Bento abade. Logo em seguida entrou na cela de São Bernardo a Rainha dos anjos acompanhada dos outros dois santos e, com uma suavidade e uma serenidade impossíveis de imaginar, tocou-o com a sua grande mão onde lhe doía e curou-o completamente. Pois entre os dons que teve este santo abade um deles foi o de ser devotíssimo da Sacratíssima Virgem, e ela o presenciou e favoreceu singularmente. E diz-se que certa fez molhou-lhe os seus lábios com um jorro de leite saído de seu sagrado peito, e que dali veio a doçura e a suavidade de estilo que está espalhada por todas as suas obras.

Ainda em outra ocasião, entrando na igreja maior de Espirra, cidade da Alemanha e câmara do Império, acompanhado de todo o clero e de grande multidão de povo, ajoelhou-se três vezes em três lugares diversos e disse no primeiro

"Ó clemente!",

no segundo

"Ó piedosa",

e no terceiro

"Ó doce Virgem Maria!".

E em memória desta devoção e saudação do santo, hoje em dia na mesma igreja encontram-se três placas de metal, nelas gravadas estas palavras, e cada dia se canta a Salve Regina com grande solenidade e música. E os próprios hereges, dos quais há muitos naquela cidade, vêm para ouvi-la.

Não é justo que, entre tantos milagres, nos esqueçamos de um muito notável que lhe aconteceu ao escrever uma carta. Estava no convento de Claraval um monge, sobrinho de São Bernardo, chamado Roberto. Sendo jovem, enganado por falsos amigos, abandonou a religião em que havia começado a servir ao Senhor, mudando-se para a de Cluny. Determinou-se o santo abade, como bom pastor, a recuperar sua ovelha e, para isto, decidiu escrever-lhe uma carta. Chamando a Guilherme Rieval, que depois foi abade de Claraval, ordenou-lhe que pegasse papel e tinta e que saísse com ele para o campo, onde seria possível escrever com mais quietude. Enquanto São Bernardo ditava a carta e Guilherme a escrevia, iniciou-se subitamente uma chuva forte. Querendo o secretário levantar-se de onde estava e recolher o papel para que não se molhasse, o santo lhe disse:

"Obra é de Deus;
escreve e não temas".

E assim escreveu e acabou sua carta, no meio da água, sem molhar-se, porque a caridade que movia o santo padre a ditar a carta foi tão poderosa que cobriu o papel e o defendeu da água. E por causa deste milagre se costuma colocar-se esta carta como a primeira das de São Bernardo, todas elas admiráveis, a qual assim começa:

"Roberto, filho amadíssimo,
há bastante tempo,
e mais ainda do que pude suportá-lo,
estive aguardando que a piedade de Deus
se dignasse visitar tua alma por si
e a minha por ti".


XI


Teve o dom de profecia, e pelo espírito divino conhecia as faltas que faziam os seus monges, ainda que estivessem muito distantes, as tentações que padeciam e as perseguições que os seculares levantavam. Também é coisa certa que lhe apareciam as almas de alguns monges que morriam nos conventos de sua Ordem, pedindo-lhe a sua bênção e a sua permissão para se dirigirem à outra vida.

Certa vez veio a Claraval um monge do mosteiro Fusnaciense e, querendo voltar à sua casa, São Bernardo o chamou à parte e lhe disse:

"Diga a tal monge
que se emende de tal e tal coisa,
pois, se não se emendar,
logo virá sobre ele o juízo de Deus".

Ficou assombrado o monge. São Bernardo havia nomeado pessoas e faltas muito ocultas. Disse então ao santo:

"Padre, quem foi
que vos disse estas coisas?"

Respondeu-lhe Bernardo:

"Seja quem for,
dize-lhe o que eu te digo.
Se não o fizeres,
serás participante do castigo".

Outra vez, ao dirigir-se a Catalanno, ganhou grande número de estudantes para Deus. Estes haviam sido discípulos de um grande doutor, chamado Estevão de Vitry. Estando um dia fazendo uma prática com eles antes de dar-lhes o hábito, o porteiro o avisa que Estevão, o mestre daqueles moços, estava esperando na porta e que com eles queria também receber o hábito. Alegraram-se muito os discípulos ao verem que seu mestre os seguia mas o santo, iluminado com a luz do céu, deu um grande grito e disse, de modo que todos o puderam ouvir:

"O espírito maligno o trouxe para cá.
Veio só, e voltará só".

Ficaram todos espantados com aquelas palavras e o santo, para não ferir as novas plantas, ainda que de má vontade, o recebeu com os outros noviços e o exortou à perseverança. Ao cabo de seis meses, porém, acabou saindo, confessando ele mesmo que quando estava na cela dos noviços via um negrinho que o retirava do oratório. E, ainda que o demônio o tivesse trazido para que fosse um laço para os demais, não alcançou o seu objetivo, porque os demais, com a sua saída, foram confirmados na sua vocação e ele saíu só.

Um monge chamado Gofredo para quem, estando muito desconsolado e sem remédio, o santo havia alcançado com sua oração grande serenidade e singular alegria de consciência, sendo noviço e desejando ao extremo a salvação eterna de seu pai carnal, pediu ao santo com grande afeto que o encomendasse a Deus. São Bernardo lhe respondeu:

"Não duvides, meu filho,
que teu pai há de ser um bom religioso
e que eu o terei que enterrar com estas mãos".

E assim aconteceu, porque o velho entrou para a religião e, tendo progredido na virtude, caíu doente estando São Bernardo distante de Claraval. Passou cinco meses contínuos lutando contra a doença, até que voltou o santo que o encontrou em seu leito de morte e com suas mãos o enterrou, conforme o havia profetizado.

Estando em Claraval gravemente enfermo outro monge chamado Roberto, foi desenganado pelos médicos. São Bernardo estava em Roma, apareceu-lhe uma noite em espírito e o visitou amorosamente, cantando matinas na companhia dos outros monges. Naquela manhã Roberto ficou completamente curado.

Em outra ocasião enviou um monge alemão chamado Henrique às regiões mais remotas da Alemanha. Temendo que antes que pudesse voltar daquela longa jornada o santo padre passasse desta vida, pois estava muito fraco e debilitado, ia muito desconsolado pelo desejo de receber naquele momento a sua santa e última bênção. Entendeu São Bernardo o desejo e a pena de seu filho e, dando-lhe a bênção na partida, disse-lhe:

"Vás com alegria,
porque voltarás são
e me encontrarás vivo
conforme desejas".

Sucedeu ao bom monge que, passando por um rio gelado perto da cidade de Argentina, caiu nele e, afogando-se, viu diante de si o santo abade, por intermédio do qual salvou-se e voltou ao convento são e alegre, encontrando o santo padre também são, como este o havia profetizado.

Tendo três moços entrado para o convento de Claraval e tomado o hábito, um deles, por instigação de Satanás, pouco depois o deixou. Temendo os monges que os outros dois noviços seus companheiros fizessem o mesmo, o santo, olhando-os na face, disse que um deles não teria jamais tentação grave e que o outro seria combatido por muitas mas que, no fim, prevaleceria e se sairia vencedor e, como o disse, assim aconteceu.

Em outra ocasião o rei de França, Luís, irritou-se contra alguns bispos e os removeu de suas igrejas, sem querer reconsiderar, nem com as muitas e graves cartas que escreveu São Bernardo para acalmá-lo, nem com a humildade dos próprios bispos os quais, lançando-se aos pés do rei, pediam-lhe o perdão. Disse-lhe o santo, ameaçando-o:

"Senhor, esta vossa obstinação
custará a vida a Felipe,
vosso filho primogênito
e príncipe jurado".

O santo disse e Deus o cumpriu. O rei, reconhecendo a sua culpa, humilhou-se e reconsiderou.


XII


Seria coisa para nunca acabar se quiséssemos prosseguir esta matéria. Bastam os exemplos que mencionamos para entender os merecimentos, os dons e as excelências deste grande servo do Senhor, enviado por Deus ao mundo para que o iluminasse com seus raios como por um sol resplandecente, para que os papas, os reis, os imperadores, os príncipes e as repúblicas usufruíssem de sua luz e recorressem a ele nas questões mais obscuras e emaranhadas, e ele as ilustrasse e resolvesse. Não somente as províncias mais próximas aproveitaram com sua santidade, sua doutrina, seus conselhos e seus milagres, mas também as da Dácia, da Suécia e outras o reverenciaram e lhe escreveram cartas com extraordinária devoção. Qualquer coisa que tivesse trazido consigo era considerada como preciosa relíquia, e até um prato de barro, por nele haver comido certa vez São Bernardo, bastou para curar um bispo que havia comido uns bocados de pão e bebido um pouco de água que havia mandado deixar nele.

Seu cajado, colocado junto à cabeceira da cama de uma pobre mulher muito atormentada pelo demônio, bastou para espantá-lo e para que a deixasse em paz. O afluxo de pessoas, por onde quer que passasse, era tão grande que não há modo de o descrever. Em Roma não conseguia sair de casa sem que toda a corte e todo o povo fosse atrás dele. Em Milão e em outros lugares da Lombardia, devido à inumerável multidão que vinha vê-lo e receber a sua bênção, fazia-se necessário que se trancasse e aparecesse somente por uma janela para que dali desse a sua bênção. Quando passava pelos Alpes, vinham a ele pastores e homens selvagens em quantidade, os quais ficavam fazendo festa por terem-no visto.