VIDA DE SÃO BERNARDO

1090 - 1153

Escrita pelo Revmo. Pe.
Pedro de Ribadeneira, S. I.

1526 - 1611

Primeira Parte



I


Na província de Borgonha há um lugarejo, antigamente de pouco nome e estima, chamado Fontaines. Agora, com grande razão, é famoso e célebre, por lá ter nascido São Bernardo Abade, espelho de toda a virtude e retrato de santidade, cuja vida, tirada dos cinco livros que dele escreveram Guilherme, Abade de Bonevales, e Gofredo, monge de Claraval, companheiro e secretário de São Bernardo, é da maneira que se segue.

No dito lugarejo de Fontaines havia um cavaleiro honrado e virtuoso, de nome Tescelin, bom soldado e também servo de Deus, porque de tal maneira seguia a milícia que não se esquecia da profissão de cristão. Estava casado com Aleth de Montbard, mulher virtuosa, honesta e fecunda, de quem teve seis filhos varões e uma filha. Entre os cuidados da casa e da família não se esquecia Aleth das obras de misericórdia e do temor a Deus. Ao dar a luz a um filho, oferecia-o a Deus com suas próprias mãos e o criava em seus peitos, não tendo necessidade de damas de criação; sendo um pouco mais crescido dava-lhe manjares mais grosseiros para comer, como quem o criasse mais para o ermo do que para o século. Estes foram os pais de São Bernardo, que foi o terceiro filho.

Estando sua mãe grávida dele, viu em sonhos que em suas entranhas havia um cão branco com o lombo vermelho que latia. Consultando o caso com um servo de Deus, respondeu-lhe este que aquele filho seria um grande pregador e que ladraria contra os maus para guardar a casa de Deus, que é a Igreja, e com a sua língua medicinal curaria muitas chagas de muitas almas.

Nasceu São Bernardo, e sua mãe o criou com mais cuidado do que aos outros filhos, colocando-o o mais cedo possível nos estudos e dando-lhe bons mestres. Era um menino cuidadoso nos estudos, obediente aos mestres e aos pais, afável com todos, amigo do silêncio e da quietude e inimigo da confusão. Resplandeciam nele uma timidez virginal, uma simplicidade e um candor de ânimo mortificado para todas as coisas do mundo. Quando menino, teve uma forte dor de cabeça; trouxeram-lhe uma curandeira para que o curasse; sabendo quem era, levantou-se imediatamente da cama com grandes vozes e expulsou-a dali com grande nojo, tendo-se o Senhor servido disto para restituir- lhe a saúde, por não tê-la querido pela mão daquela mulher, com ofensa sua. Estando em uma noite de Natal na igreja para assistir as matinas e desejando saber a hora em quer o Senhor havia nascido, caiu um pouco no sono. Apareceu-lhe o menino Jesus, belíssimo, acima de tudo o que se possa dizer, alegrando-lhe a alma com uma suavidade inefável. Com este presente e favor do céu, começou a entregar-se à contemplação, na qual foi eminentíssimo, tornando-se muito devoto do sagrado mistério do nascimento do Senhor e convencido de que aquela hora de meia-noite em que o havia visto seria a própria em que o Verbo eterno e o terno menino haviam nascido. Quando tinha em mãos algum dinheiro, dava-o de esmola aos pobres, mas com grande segredo, para que não se soubesse das obras de caridade que fazia.

Sendo já rapaz, sua santa mãe morreu muito cristãmente, com não pouco sentimento de seu filho Bernardo, por faltar-lhe a partir de agora aquele seu arrimo e tão importante mestra. Era de boa constituição física e de rara beleza. Seu sangue fervia por causa da mocidade, e as companhias e ocasiões que o tentavam para que soltasse as rédeas de seus apetites eram muitas.

Teve muitas tentações do inimigo e algumas mulheres lascivas lhe armaram laços e o molestaram para que perdesse a grande jóia da castidade; mas, com o favor d Senhor, venceu a todas e conservou aquele dom da pureza celestial que, uma vez perdido, não se pode recuperar. Certa vez descuidou-se um pouco e pôs os seus olhos sobre uma mulher muito bela, sem perceber o que estava fazendo; quando se deu conta, ficou tão corado e envergonhado de si mesmo que, para envergonhar-se de si e para pagar a pena daquela culpa atirou-se nu em um tanque de água gelada, que estava ali próximo, até a altura da garganta. Era a época do inverno, e São Bernardo estêve ali tanto tempo que com o grande frio quase se extinguiu o calor natural do corpo, e o tiraram já meio morto. Mas com este ato tão fervoroso mereceu que Deus com a sua graça mortificasse a concupiscência da carne e apagasse as chamas do fogo infernal que reina em nossos membros.

Vendo, pois, o santo moço os grandes perigos em que estava, começou a pensar sobre como se livraria deles e sobre como poderia recolher-se em alguma religião como em um porto seguro. Estando a decidir estas coisas, teve grandes tentações e assaltos do inimigo e de seus ministros. Fazia-lhe guerra a flor da idade, propondo-lhe os deleites sensuais e exortando-o a não deixar o presente pelo que haveria de vir. O demônio lhe sugeria que, ainda que caísse em algum pecado, poderia na velhice fazer penitência do mesmo, e que Deus é clemente e misericordioso, como quem conhece tão bem a nossa fraqueza e derramou o seu sangue por nós na cruz. Não faltavam amigos e companheiros que tendo entrado pelo amplo caminho da perdição o exortavam com suas palavras e com seus exemplos a imitar o que eles faziam. O mundo lhe oferecia grandes esperanças de honras e bens, fundadas em sua grande inteligência, suas letras e sua gentil disposição, e seus próprios irmãos e parentes, que em semelhantes decisões são os mais cruéis e perigosos inimigos, eram os que mais atiçavam aquele fogo, alegando que o seu temperamento seria muito delicado para levar a austera e rigorosa vida de religioso, e que por outro caminho mais brando poderia servir a Deus e ser útil às almas sem enterrar os talentos que Ele lhe havia concedido, com os quais, seguindo o curso das boas letras que já havia começado, poderia alcançar o prêmio merecido por sua excelente ciência e virtude, honrando a sua casa, ilustrando a sua pátria e aproveitando ao mundo.

Achou-se turbado e afligido o virtuoso jovem com a confusão de tantos pensamentos e entendeu a cautela com que se devem tratar as coisas de Deus e que não se deve revelar a vocação de Deus, quando Ele chama à perfeição, senão a muito poucas pessoas, espirituais e escolhidas, como o fez aquele mercador no Evangelho que, tendo encontrado o tesouro no campo, escondeu-o e vendeu quanto tinha para comprar aquele campo e gozar do tesouro que nele havia. Mas ainda que São Bernardo, por tantas partes combatido, esteve vacilante, no fim, favorecido pelo Senhor, rompeu suas cadeias e saiu vencedor. Estando em uma igreja chorando com muitas lágrimas e derramando seu angustiado coração com grandes suspiros na aceitação Senhor, suplicando-lhe que o encaminhasse para o que haveria de ser para o seu maior serviço, foi iluminado pela luz do céu e, fortalecido com a sua graça, determinou-se a militar sob o estandarte da cruz como valoroso soldado e a chamar e trazer consigo todos o que pudesse para aquela gloriosa conquista. Fê-lo de tal maneira que ganhou para Deus um tio seu, irmão de sua mãe, que se chamava Viderico, grande soldado, rico e senhor de um castelo, com o qual abriu caminho aos demais, e logo o seguiram Bartolomeu e André, os dois irmãos menores de São Bernardo; o mesmo fizeram em seguida Guido e Gerardo, os dois irmãos maiores. Deste modo ficou só o menor de todos os irmãos, de nome Eduardo, a quem lhes pareceu que seria bom deixá-lo no século para o consolo de seu pai, que já era idoso, e para o governo da casa e dos bens que possuíam.

Decidiram todos os irmãos de São Bernardo, seu tio e mais outros trinta que o seguiram, que ingressariam na na religião de Cister, que pouco antes havia sido fundada pelo venerável abade Roberto sob a regra de São Bento e confirmada pelo Sumo Pontífice no ano do Senhor de 1098. Esta tinha um só mosteiro no interior de um bosque afastado. Pelo grande rigor da vida e do retiro que nela se observava, havia muito poucos que quisessem abraçá-la. Foi este lugar que São Bernardo, seus irmãos e os outros companheiros escolheram para se entregarem verdadeiramente a Deus em perfeita humildade e desprezo do mundo.

Aconteceu, porém, que Guido, o irmão mais velho, certo dia encontrou pelo caminho Eduardo, o menor de todos os irmãos, que se entretinha com outros amigos, e lhe disse:

"Eduardo, fica com Deus;
nós vamos para o mosteiro
e te deixamos como herdeiro
de todos os nossos bens".

Ouvindo estas palavras respondeu o menino, não com juízo de menino, mas de sábio ancião:

"Pois então vós ficais com o céu
e para mim deixais a terra?
Não é boa esta partilha".

E assim, depois de alguns dias, também ele seguiu a seus irmãos e ingressou no mosteiro, onde foram todos recebidos no ano do Senhor de 1113, para grande consolação do abade Estevão, que havia sucedido a Roberto, e dos poucos monges que com ele estavam e que, com grande esperança, aguardavam que Deus lhes daria copiosa e feliz descendência e que por todo o mundo se dilatariam os filhos daquela casa, conforme uma revelação que pouco antes havia recebido um daqueles santos monges, como adiante se verá.

Aquela sagrada religião não somente cresceu pelos insignes varões que teve, como também pelas santas monjas que tiveram seu princípio de um mosteiro que por ocasião da entrada de São Bernardo e de seus trinta companheiros lhes havia sido construído. De fato, como alguns deles eram casados e suas mulheres, para que o Senhor fosse melhor servido, haviam dispensado seus maridos do vínculo conjugal e queriam também elas oferecerem-se em holocausto ao Senhor, para recolhê-las, por solicitação de São Bernardo, construíu- se um mosteiro na paróquia Linganiense, que se chama Villeto. Deste mosteiro, que foi muito célebre na religião e santidade e, com o tempo, muito abastado de riquezas e posses, como que de uma raiz e planta, estendeu-se o fruto por outras partes.


II


São Bernardo iniciou seu noviciado na idade de vinte e três anos, começando com tão grande aplicação e cuidado para com o aproveitamento que não parecia que começava, mas sim que acabava. Tinha sempre no coração, e muito freqüentemente também na boca, estas palavras:

"Bernardo, Bernardo,
para que vieste à religião?"

Entregou-se tanto a mortificação, não só dos afetos interiores e das paixões desordenadas, como também dos sentidos exteriores, que parecia que não os usava senão para o estritamente necessário. Via e não via, comia e não comia, dormia e não dormia, tanto estava ele absorto e transportado em Deus. Havia estado um ano inteiro na sala de noviços, mas não sabia se o teto era abobadado ou de madeira e, havendo entrado na igreja muitas vezes, a qual tinha muitas janelas, julgava que não havia nela senão apenas uma. Tinha a carne tão sujeita e submetida ao espírito que mais parecia estar morto do que mortificado. O silêncio, perpétuo; o riso, raríssimo e em extremo modesto, dado com razão para não parecer demasiadamente austero; o hábito, pobre, grosseiro e vil, mas limpo, porque, ainda que fosse amigo da pobreza, não o era da pouca limpeza. Dirigia-se às refeições como a um tormento, e só a memória da comida já o enfastiava. Desgostava-se com o sono por julgá-lo uma semelhança da morte e quando, forçado pela necessidade, concedia-se algum descanso, este era tão superficial e leve, que a nenhum outro, senão a ele, poderia ser suficiente. E quando via algum religioso dormindo mal composto ou roncando, ressentia-se e dizia que dormia como secular e não como religioso. Com os inúmeros jejuns e vigílias, com a extrema penitência e com a austeridade da vida que levava, estragou-se tanto o seu estômago, que o pouco que comia não podia mais retê-lo e, se algo ficava, era mais para dilatar-lhe a morte do que para sustentar- lhe a vida. Veio a perder o paladar de tal maneira que algumas vezes, por descuido de quem o servia, comeu óleo cru no lugar da manteiga e bebeu azeite em vez de água, sem que se desse conta. E mesmo com tão pouca saúde, nunca foi possível convencê-lo de que nos trabalhos da comunidade admitisse alguma dispensa; antes, sendo já professo, socorria os noviços e pensava e dizia que os demais eram santos e perfeitos, pelo que podiam receber alguma dispensa, mas que no que lhe dizia respeito, como imperfeito e principiante que era, não lhe convinha senão rigor e estreiteza.

Isto foi de tal maneira que se os monges se ocupavam com algo que ele não soubesse fazer, compensava-o tomando naquele mesmo momento outra ocupação de igual ou maior trabalho e mais vil e humilde. Certa vez os monges foram por obediência ceifar em uma propriedade do mosteiro, e a ele impuseram que descansasse por causa de suas poucas forças e porque não sabia fazer o trabalho; pediu então ao Senhor que lhe concedesse a graça e a habilidade de ceifar; e Deus atendeu-o, concedendo-lhe esta graça com tamanha abundância, que acabou por se avantajar aos demais, e por toda a sua vida durou esta graça, com a admiração dos monges e por muito gosto seu pela devoção que sentia ceifando, recordando-se da mercê que o Senhor lhe havia feito.

Sendo São Bernardo tão mortificado, sua carne tão sujeita ao espírito e o espírito tão recolhido, tão interior, vivendo sempre dentro de si, veio a ser como um espelho limpo e lustroso para receber os raios da divina sabedoria. E assim não só alcançou um perfeitíssimo hábito de oração e meditação, como também um altíssimo grau de contemplação passiva, pela qual, alienado dos sentidos e das obras exteriores, derretido e empapado em uma suavidade inefável com um silêncio profundo e com abraços castíssimos, unia-se ao o Sumo Bem. E o Senhor o regalava num grau tão alto que uma vez, estando de joelhos diante de um crucifixo, o próprio crucifixo estendeu o braço e se curvou sobre ele, abraçando-o e acariciando-o com sumo amor. Nas próprias obras exteriores constituía coisa admirável o modo como chegou, por singular privilégio do Senhor, a ocupar-se de tal modo no que fazia ao mesmo tempo em que tratava interiormente com Deus. São Bernardo não era daqueles que, com o pretexto de entregar-se a contemplação, fogem do trabalho, ou que pelo seu gosto particular deixam o bem comum; antes, juntava a ação com a contemplação e antepunha as coisas publicas ou de obediência às suas próprias e voluntárias. Mas quando se achava livre e sem obrigação de acudir às coisas comuns e de obediência, desaparecia e mergulhava de tal modo na consideração das coisas invisíveis como não se tivesse sentido nem memória de coisa alguma da terra. Caminhou certa vez um dia inteiro ao longo do lago de Lausanne e à noite, comentando seus companheiros sobre aquele lago, admirou-se, afirmando firmemente que não havia visto e nem sabia que lago se tratasse. Outra vez, indo falar aos padres da Cartuxa, emprestaram-lhe um cavalo bem adestrado e com um arreio curioso; e como o Prior da Cartuxa tivesse reparado no aparato que o cavalo levava, dirigiu-se ao santo para avisá-lo e ele, abrindo os olhos para ver o que antes não havia visto, disse que ele também estava admirado e com grande sinceridade confessou que não havia reparado naquilo. De onde se vê o quão concentrado e absorto andava sempre este santíssimo homem, não só dos exercícios corporais, como também em outros negócios de muita importância, nos quais parecia impossível não distrair-se das coisas divinas. O mesmo se pode dizer da doutrina de São Bernardo, porque costumava ir ao campo e aos bosques tratar familiarmente com o Senhor para receber raios e luz do céu, e na oração e na meditação penetrar os altíssimos mistérios da teologia. E costumava dizer, pela graça, aos seus amigos, que o pouco que sabia das Sagradas Escrituras, o havia aprendido meditando e orando nos campos, sem ter outro mestre que não as musgo e faias. Mas esta ciência da Sagrada Escritura, que ele dizia que era pouca, foi um dos raros e eminentes dons que recebeu; porque tinha tão assimiladas todas as palavras e sentenças dos livros sagrados que, quando falava, escrevia ou pregava, era a Sagrada Escritura, não como quem a cita, mas como quem a havia ruminado, digerido e convertido em si. E o próprio santo confessou algumas vezes que, orando, havia visto a Sagrada Escritura como declarada e exposta diante de si. Mesmo assim, não por isto deixava de ler e de estudar com grande cuidado as interpretações dos padres e santos doutores, sem igualar- se com eles e fazendo-se de mestre, mas sim, como humilde discípulo, sujeitando-se com modéstia ao que eles haviam escrito e seguindo com grande acerto o exemplo que eles nos deixaram, como em suas devotíssimas obras se pode ver.


III


Tendo, pois, estado algum tempo esta luz divina e resplandecente escondida, quis o Senhor colocá-la no candelabro para que iluminasse a todos os de sua casa, e inspirou o abade Estevão para que edificasse um mosteiro em Claraval e que o seu abade fosse São Bernardo, que era ainda jovem e de pouca saúde e não acostumado a tratar com seculares em semelhantes ocupações.

Claraval era um lugar próximo ao rio Alba, no território de Langres, antigo covil de ladrões e de salteadores. Chamavam-no de Vale dos Absintos, seja porque ali havia muitos, seja pela amargura dos que caiam nas mãos dos ladrões. Aqui se fez o novo mosteiro, que foi como que a primeira colônia e povoação que saiu de Cister.

São Bernardo procurou o quanto pode não ser superior de ninguém, mas sujeito a todos; no fim, porém, curvou a cabeça à obediência, considerando especialmente que para lá não se dirigia a passeio, mas a trabalho. O mosteiro não tinha fundação, a casa era muito fria, estreita e mal acondicionada, de modo que os padres que à fundaram passaram por grandes necessidades, fome, sede, frio e falta de roupas. A comida era de folhas de faia cozidas; o pão, de cevada e milho; tão áspero, que um religioso que foi hóspede levou consigo um daqueles pães para mostrá-lo como milagre, julgando como tal que os que o comessem pudessem viver.

O procurador da casa era Gerardo, irmão do santo, o qual, vendo a extrema pobreza que os religiosos padeciam e não encontrando maneira de remediá-la, foi até são Bernardo e lhe expos as necessidades do convento e que, pelo menos, seriam necessárias onze libras de soldo para sustentar o convento e não perecessem os monges. Animou o santo ao procurador, seu irmão, e feita a oração, logo bateu à porta uma mulher que, deitando-se aos seus pés, entregou-lhes uma esmola de doze libras, suplicando que encomendassem seu marido à Deus, por estar gravemente doente. Agradeceu o santo a esmola e disse à mulher que, voltando para casa, encontraria curado o seu marido, como realmente o achou ao chegar. Aproveitando-se deste fato, o abade repreendeu suavemente a pusilanimidade do procurador e aqueles religiosas aprenderam a confiar em Deus, que nunca desampara aos que realmente O servem.

Tinha-se São Bernardo por indigno de que Deus se servisse dele para a salvação das almas, mas a grande caridade que ardia em seu peito o fazia esquecer-se de sua indignidade e dava-lhe grandes ânsias de buscar e procurar a salvação de seus próximos. Pôs-se uma noite a considerar isto na oração, e teve uma visão em que parecia- lhe que de todas as partes, por aqueles montes, vinha um grandíssimo número de homens, de diversos estados e hábitos, e que baixavam ao vale onde estava seu mosteiro, de modo que não caberia toda aquela gente naquele lugar. O significado da visão foi manifestado pelos fatos na multiplicação dos religiosos que militaram sob este grande patriarca e dos muitos e ricos mosteiros que em tantos lugares se fundaram pela sua mão. Entre os que vieram tomar o hábito, para maior consolação de São Bernardo, um dos primeiros foi Tescelin, seu pai, que fazendo-se filho e irmão em espírito daquele que havia engendrado segundo a carne, entrou no mosteiro e concluíu santamente sua peregrinação. A irmã, a única que permanecia no mundo, casada com um homem rico e entregue às galas e pompas da terra, tendo chegado ao mosteiro muito enfeitada e acompanhada para ver seus irmãos, ficou confusa quando soube que não a queriam ver; ouvindo as palavras de vida que lhe disse São Bernardo que, vencido pelos prantos e lágrimas que derramava, acabou saindo para vê-la, transformou-se e de tal maneira que converteu todo o cuidado que antes punha em embelezar e enfeitar seu corpo para embelezar a sua alma e enriquece-la com obras de penitência e de piedade, e isto com tão grande fervor que seu próprio marido, ao fim de dois anos, concedeu-lhe licença para entrar no convento das monjas de Villeto e consagrar-se ao Senhor, onde perseverou santamente e entregou seu espirito a Deus.

Mas não deve causar tanta admiração que Deus Nosso Senhor trouxesse tantos homens de tão diferentes estados e condições para que O servissem em um gênero de vida tão rigoroso e perfeito sob a regra e instituição de São Bernardo, quanto o modo raro e maravilhoso com que os trazia pela intercessão e pelas orações do próprio santo.

Certa vez veio uma quadrilha de jovens cavaleiros, bizarros e galhardos, para ver o santo abade, de quem a fama publicava grandes coisas. Era tempo de Quaresma, e eles, com o ardor da juventude, buscaram um lugar ali, próximo à igreja, para correrem, exercitarem-se nas armas e se entreterem. Pediu-lhes o santo que não o fizessem, mas não quiseram. Mandou então que lhes levassem cerveja e, abençoando-a primeiro, deu-a para que bebessem. Mal haviam saído do mosteiro quando, movidos por um novo espírito que vinha do céu, começaram a tratar entre si sobre a vaidade do mundo, seus enganos e perigos, e de tal maneira se inflamaram no desejo da perfeição que logo, sem demora, todos juntos, com um só ânimo e uma só vontade, voltaram ao mosteiro e com muita humildade pediram para que nele fossem admitidos, onde com grande fortaleza e paciência, passando por muitos trabalhos, perseveraram gloriosamente na religião.

Foi esta mudança verdadeiramente proveniente da destra do Altíssimo, mas não o foram menos outras, entre as quais a de um clérigo chamado Marcelino que, indo em nome do arcebispo, seu senhor, receber São Bernardo que vinha a Mogúncia, dizendo-lhe quem era e quem o enviava, o santo parou e, pondo os olhos nele, disse-lhe:

"Outro Senhor maior vos enviou
e quer se servir de vós".

E ainda que a princípio o clérigo contradissesse e estivesse alheio e muito além de tal pensamento, no fim se rendeu e em companhia de muitos homens doutos e honrados veio até o mosteiro de Claraval para pedir o hábito.

E não é de menor admiração o que sucedeu com Henrique, irmão carnal do rei de França; antes, é tão maior quanto mais alta era a dignidade da pessoa com quem ocorreu. Havia vindo este príncipe a Claraval para tratar com o santo abade de alguns negócios de importância. Quando os havia terminado, pediu para que se juntassem todos os monges para despedir-se deles e encomendar-se às suas orações. Assim se fez, e logo disse-lhe o santo que tinha esperança de que não morreria no estado em que estava no presente, senão que rapidamente entenderia por experiência o quanto era eficaz a intercessão que havia pedido àqueles servos de Deus. Cumpriu-se aquela profecia, de maneira que no próprio dia determinou-se Henrique a seguir as pegadas de Cristo Nosso senhor e morrer na cruz da santa religião. Sentiu a mudança de seu senhor toda a sua família, que o chorava em vida por morto. Porém, entre os demais criados, havia um que se chamava André, o qual teve tão estranho sentimento, que saiu como que fora de si e, frenético com a cólera, começou a dizer blasfêmias e graves injúrias contra o santo abade, como se se tratasse de um charlatão ou de um falso profeta. Rogou o príncipe ao santo que o acalmasse e que e pusesse nele maior cuidado do que nos outros para convertê-lo ao Senhor, ao que São Bernardo lhe disse:

"Deixai-o agora,
pois está muito amargo
e cego com a paixão,
e considerai-o como vosso".

E como a Henrique, com esta nova esperança, lhe crescesse mais o desejo e tornasse a pedir ao bem-aventurado padre que lhe falasse, o santo lhe respondeu com um rosto severo:

"Não já vos disse que é vosso?"

Ouviram esta argumentação todos os presentes e o próprio André, o qual, mais obstinado e furioso do que antes, balançando a cabeça, dizia dentro de si, como depois o confessou:

"Agora sim conheço que és falso profeta,
porque jamais acontecerá o que dizes".

Partiu no dia seguinte muito furioso, lançando maldições ao abade e suplicando a Deus que se abrisse a terra para que tragasse aquele mosteiro. Mas naquela mesma noite, estando na pousada, sentiu tão grandes aguilhões ou impulsos e movimentos interiores, que logo levantou-se da cama sem esperar o dia e voltou a Claraval para pedir com grande humildade que lhe fosse concedido receber o hábito, para admiração e consolo dos que ali estavam e sabiam sobre o que havia se passado.

Em outro caminho que fez São Bernardo a Flandres, ganhou para o Senhor alguns nobres e letrados flamengos, que o seguiram e voltaram com ele para a Borgonha. E em Chalons, cidade da Champanhe de França, estendendo as redes da pregação, colheu uma grande quantidade de excelentes homens, e cada dia se via entrar pelas portas de seu mosteiro muitos que, movidos pela fama do santo e desenganados da vaidade e dos embustes do mundo, vinham para imitar a Cristo sob tão valoroso capitão.


IV


No principio de seu governo, medindo a seus súditos pelo seu próprio espírito e fervor, foi mais severo e rigoroso do que convinha; porque primeiramente, quando recebia algum noviço, entre outras coisas, avisava-o que deixasse o corpo fora do convento e que somente entrasse com o espírito.

Quando confessava a seus monges, qualquer que fosse a falta, por leve que fosse, parecia-lhe grave, e pedia a todos tão grande perfeição, que a muitos tirava a esperança de alcançá-la e até a vontade de procurá-la. Daqui nascia uma certa tristeza nos corações dos súditos, que lhes tirava o ânimo, a devoção e aquele fervor que costuma ser grande espora para aproveitar e correr na virtude. Mas era tão grande a opinião que todos tinham sobre a santidade do seu bom padre, que punham toda a culpa em sua fraqueza ou em sua pouca capacidade, sem queixarem-se dele nem contradizendo-o nas coisas que mandava. E esta humildade dos súditos, pela vontade de Deus, abriu os olhos ao superior; porque, vendo São Bernardo a humildade e modéstia de seus religiosos, começou a jogar sobre si a culpa, e determinou-se a não carregá-los, nem afligi-los, nem dizer-lhes nada, senão cuidar de a si até que Deus lhe revelasse outra coisa. Estando a considerar estas coisas, certa noite apareceu-lhe um menino vestido de uma luz celestial e mandou-lhe expressamente que não deixasse de dizer a seus filhos tudo o que sentia, porque não seria ele que falaria, mas o Espirito Santo que falaria nele. E, juntamente com este preceito, infundiu-lhe o Senhor uma nova graça e um singular dom de suavidade e doçura, com a qual aprendeu e compadecer-se dos fracos e a ajustar-se e acomodar-se à capacidade dos rudes e e tirar de cada um o que, salva a disciplina religiosa, bondosamente pudesse. E assim veio a mudar-se de tal maneira que pareceu outro homem, e começou com extraordinária ternura e solicitude a prever e prevenir as necessidades não apenas da alma, como também do corpo de todos os seus súditos. E porque alguns chegassem a ver que debaixo de seus hábitos velhos e remendados trazia um áspero cilício, o deixou, com medo de que outros, com graves enfermidades, o quisessem imitar e seguir aquele rigor vendo que ele, estando enfermo e fraco, não o deixava, tanto foi o cuidado que depois que o Senhor o ensinou teve o santo padre com a saúde de seus filhos. Com esta brandura do santo abade cresceu mais o fervor de seus filhos, com uma santa contenda; quanto mais o padre era amoroso com eles, tanto eles eram mais rigorosos para consigo mesmos, mais obedientes aos seus preceitos e com mais cuidado e ânsia aspiravam à perfeição e à observância de sua regra. Rezavam o ofício divino com suma atenção e devoção, alegravam- se muito com a santa pobreza, a qual era extrema; trabalhavam e ocupavam-se nas suas devidas horas em trabalhos manuais com grande alegria; guardavam naquele mosteiro um recolhimento e um silêncio tão raro que simultaneamente podia ver-se uma multidão de gente e um silêncio de eremitério e solidão. Esmeravam-se em todas as virtudes e cada um procurava ir adiante de todos e não ficar para trás, vendo que o seu santo pastor e prelado era possuído de tão grande fervor que só o vê-lo os compunha, inflamava e arrebatava ao céu. Observava, entre outros, um aviso muito importante para os que governam religiosos: que suas repreensões fossem modestas e suaves, e se o que era repreendido não o aceitasse com brandura e humildade, irritando- se e levantando a voz, o santo dissimulava e guardava o castigo para outro tempo. Pois dizia que, quando o que repreende e que o que é repreendido estão ambos irritados, mais parece esgrima ou contenda do que correção.


V


Mas ainda que São Bernardo se tivesse modificado para com os demais, não se modificou, todavia, para consigo mesmo, porque sempre guardou aquela integridade e rigor de vida que dissemos; por onde veio a enfraquecer-se muito em a ver-se curvado diante do peso de grandes enfermidades, os próprios médicos maravilhando-se como, estando tão fraco e exausto, podia ainda ocupar-se de qualquer tarefa. O próprio santo padre afinal o reconheceu e acusou-se de ter- se excedido tanto na penitências e estragado sua constituição física com execessivas austeridades, enfraquecendo seus membros e impedindo de sua parte a maior glória do Senhor. Porque, certamente, foi maravilhosa e extraordinária a austeridade de que este santo se utilizou em sua vida, e parece que humanamente não poderia viver se o Senhor não o sustentasse sobrenaturalmente. Mas estava tão inflamado e abrasado no amor de Deus que não pensava em outra coisa, de dia ou de noite, a não ser como poderia aumentar mais a sua glória e aproveitar as almas, e procurava estas duas coisas com grande ânsia e solicitude. A este alvo se dirigiam todas as suas ações e sua conversação, mais divina do que humana; sua oração, o escrever tantas cartas sobre tão importantes assuntos, o interpretar das divinas Escrituras, as argumentações com pessoas particulares e os negócios públicos que tratava; e acrescentando-lhe o Senhor uma eloqüência tão admirável e uma sagacidade e prudência maravilhosa com a qual se acomodava à condição, capacidade e costumes de cada um com os quais tratava. Com os lavradores falava como se tivesse sido criado no campo; com os cavaleiros, como cortesão; com os idiotas usava comparações de coisas materiais e grosseiras; com os letrados e sofistas disputava sobre questões sutis com grande engenho e agudeza. E, finalmente, como excelente pescador, tinha diferentes iscas e anzóis para pescar, adaptados ao gosto e ao natural de cada um; e tudo isto nascia de sua grande caridade e do desejo que tinha de ganhar almas para o Senhor. Era também efeito desta caridade a compaixão e a dor que sentia pelos pecados e faltas de seus próximos, e especialmente dos que tinha aos seus cuidados. Porque, ainda que fosse tão amoroso conforme dissemos, não deixava de admoestar e repreender como pai, secreta e publicamente, ao que cometia alguma falta, e de adotar todos os meios possíveis para corrigí-lo. E quando isto não bastava, cortava-o como um membro podre e o afastava de sua congregação. Porém quando a isto o obrigava a necessidade, ficava tão afligido e transpassado pela dor, que não haverá mãe alguma que assim sinta a morte corporal de seu filho como ele sentia a espiritual de qualquer um dos seus. Tais eram as entranhas do verdadeiro imitador de Cristo poque era muito compassivo e muito brando, e sofria-lhe o coração ver quem quer que fosse triste ou desconsolado.

Não é para admirar-se que com os homens fosse tão brando aquele que com os próprios animais era tão humano, porque algumas vezes, indo pela estrada, acontecia-lhe ver alguma lebre sendo perseguida pelos cães ou alguma ave que fugia do gavião, e ele, movido de compaixão, os abençoava para livrá-los, declarando aos caçadores, como de fato sucedia, que em vão os seguiriam. Deste forno tão inflamado de caridade saía o ouro fino da paciência firme e constante que teve São Bernardo, a qual manifestou claramente nas continuas tribulações e enfermidades que padeceu desde o principio de sua bem-aventurada conversão até o ultimo momento de sua vida, que não foi senão uma morte prolixa. Mas também pode-se ver que a mesma caridade e amor do Senhor dava-lhe forças para que, quando surgia uma grave necessidade ou coisa de seu serviço, estando como estava fraco, debilitado e consumido, pela divina providência parecia que recobrava novas forças e novo vigor para trabalhar e nela ocupar-se.

Também também sua paciência em algumas coisas graves de honra, de bens e de sua pessoa que se lhe ofereceram. Escreveu certa vez o servo do Senhor a um bispo, que era conselheiro do rei, pedindo-lhe que o avisasse sobre certas coisas que iam mal encaminhadas. Respondeu-lhe o bispo com irritação, tratando-o de néscio e atrevido, e o santo abade voltou a escrever-lhe com tanta submissão e humildade que o confundiu e fêz com que se tornasse grande amigo.

Enviou-lhe um rico abade seiscentos marcos de prata como esmola para que os gastasse em beneficio de sua Ordem. Foram roubados no caminho, e quando o soube, disse:

"Bendito seja Deus,
que nos livrou de tão grande peso".

Tendo-se-lhe tirado, por engano ou por força, dez mosteiros ou os lugares onde haviam de ser construídos, permaneceu muito sereno, sem querer jamais pleitear com os que lhe haviam feito aquele agravo. Um religioso de outra religião, pouco estável em sua vocação, havendo lido algumas obras muito espirituais de São Bernardo, foi a Claraval e pediu com grande urgência que o recebesse entre seus monges; e como o santo não o concedesse, julgando que era melhor que perseverasse onde havia começado, saindo o pobre homem de si, levantou a mão e deu um bofetão ao santo abade com tanta força, que logo se inchou sua bochecha; e ele o defendeu e o ajudou para que não lhe fizessem mal algum, antes, para que o acomodassem e o tratassem bem.


VI


Teve muitos adversários e perseguidores, pelos quais fazia fervorosa oração, e procurava com humildade e submissão abrandá-los e devolver-lhes o bem pelo mal, benefícios por injúrias e honra e reverência por desprezos e afrontas. Mas que há de tão admirável em ser tão paciente quem era tão humilde? Porque o verdadeiro humilde nunca pensa que lhe fazem injúrias; e, como o santo dizia, não queria parecer humilde, senão vil. Foi tão admirável a humildade deste glorioso santo e estava tão enraizado nesta virtude e tão dentro e submerso no abismo de seu nada, que nada o podia envaidecer ou elevar. Ofereceram-lhe muitas vezes grandes dignidades e bispados, dos quais não quis aceitar nenhum, julgando-se indigno de todos. E era tanta sua autoridade e o respeito em que os seus próprios superiores o tinham, que não se atreviam forçá-lo, porque sabiam o quanto era contrário à sua vontade. Mas não há por que gastar muitas palavras para enumerar o catálogo de suas virtudes, pois a todas abraçou, e foi tão excelente em cada uma como se não tivesse mais do que aquela. Era sereno em seu rosto, modesto no hábito, circunspecto nas palavras, temeroso em suas obras, assíduo na meditação, contínuo na oração, na qual confiava mais do que no próprio engenho ou no seu trabalho. Era magnânimo na fé, longânime na esperança, perfeito na caridade, providente e lúcido em seus conselhos; eficiente nos negócios e nunca menos ocioso que quando estava ocioso; alegre nas injurias, envergonhado nos louvores, suavíssimo em seus costumes, santo em seus merecimentos, glorioso em seus milagres; e ele próprio foi o primeiro e maior de todos os seus milagres. Em seus sermões teve uma virtude mais divina do que humana para quebrantar os corações mais duros que as pedras a inflamar os tíbios e débeis no amor do Senhor. E vendo isto o demônio, procurava distraí-lo e atrapalhá-lo para que não repartisse com os ouvintes os dons de Deus ou se reputasse em alguma vanglória por havê-los bem repartidos. Uma vez, pregando, apresentou-se-lhe um lindo pensamento, mas achou melhor guarda-lo para outro sermão; o Senhor, porém, interiormente lhe disse:

"Enquanto guardares isto,
não te darão outra coisa para que digas".

E assim a disse logo.

Outra vez, ouvindo-o muita gente com grandes aplausos e admiração, veio-lhe uma tentação de vanglória, parecendo-lhe que lhe diziam:

"Admira quanta gente te ouve,
e com quanta atenção".

Parou um pouco, refletindo sobre se deveria deixar o sermão; mas, entendendo que esta era a voz do demônio, voltou a cabeça para trás e disse:

"Não foi por ti que comecei
e não será por ti que terminarei",

e prosseguiu adiante com o seu sermão.

E por ser São Bernardo tão ornado com todas as virtudes e um prodígio celestial no mundo, estando certa vez muito mal e oprimido por uma grande quantidade de catarro que o afogava e lhe dificultava a respiração, foi arrebatado e, estando como em êxtase, pareceu-lhe que o conduziam diante do tribunal do Senhor, onde também estava o inimigo do gênero humano para acusá-lo e, havendo o maligno concluído sua acusação e o carregado de culpas, tendo-se-lhe concedido tempo para que se defendesse, ele, sem perturbação nenhuma, respondeu desta maneira:

"Eu confesso que não sou digno
da glória eterna;
mas meu Senhor a possui por dois títulos,
por ser Unigênito do Pai Eterno
e herdeiro do real reino celeste,
e por tê-la comprado com seu sangue.
Ele, porém se contenta com o primeiro
destes dois títulos,
e só este lhe basta.
Quanto ao segundo,
concede-o a mim em doação e,
em virtude disto,
tenho eu direito ao céu".

Ficou o perverso acusador confuso e aquela forma de julgamento e de tribunal desapareceu e o santo varão voltou a si; para que se veja quão diversos são os julgamentos dos pecadores e dos santos.

Continuemos, porém, o curso de nossa narração.