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E a primeira razão, de fato, pela qual esta pode ser provada, pode
ser deduzida das coisas que foram ditas. Porque, se três são as
formas de regime, monarquia, aristocracia e democracia, e já foi
provado que o governo da Igreja não deve ser democrático nem
aristocrático, o que mais resta senão que seja monárquico?
Finalmente, se a monarquia é o melhor e o mais elevado dos regimes,
como acima ensinamos, é certo que a Igreja de Deus, instituída
pelo sapientíssimo príncipe Cristo, deve ser governada otimamente.
Quem poderá desmentir que o seu regime deverá ser monárquico?
Mas sucede que Calvino, no livro 4 das Institutas, cap.6, par.
9, nega que, se a monarquia é o melhor regime, daí deva se seguir
que a Igreja tem que ser governada por um só homem, já que consta
que seu rei monarca é o Cristo.
Isto, porém, facilmente se refuta porque, posto que ainda que
Cristo seja um só e o próprio rei e monarca da Igreja Católica, e
que a governe e modere espiritualmente e invisivelmente, todavia
necessita a Igreja, que é corporal e é visível, de, algum único
juiz sumo e visível, pelo qual os conflitos que se originam da
religião sejam decididos e que mantenha todos os prefeitos inferiores
no oficio e na unidade. De outra maneira, não somente o sumo
pontífice, mas também os bispos, os pastores, os doutores e os
ministros todos seriam supérfluos: "Cristo, com efeito, é o
pastor e o bispo de nossas almas", conforme I Pedro, cap. 2.
Ele é o único mestre que o Pai celeste manda ouvir, conforme.
Mateus, cap.17. Ele é "quem batiza no Espírito Santo",
segundo João, cap. 1.
De maneira que, portanto, os bispos, os pastores, os doutores e os
demais ministros não são supérfluos, ainda que eles façam como
ministros o que Cristo faz de modo principal. Assim também não se
deve remover aquele que faz as vezes de sumo ecônomo e que tem o
cuidado de toda Igreja, embora este mesmo cuidado seja administrado
principalmente por Cristo.
A segunda razão pode ser tirada daquela semelhança que a Igreja dos
homens mortais tem com a Igreja dos anjos imortais. Razão essa que
é utilizada também por S. Gregório no livro 4 da Epístola
52. Posto que é certo que esta é o modelo daquela e como que uma
certa idéia dela, conforme o apostolo parece indicar no 8º cap. da
Epístola aos Hebreus e S. Bernardo claramente afirma no livro 3
das Considerações ao Papa Eugênio, onde diz que a Igreja
militante é chamada a nova Jerusalém que desce do céu, no
Apocalipse, razão pela qual foi instituída e conformada ao modelo
daquela cidade celeste.
Nem foi menos certo e reconhecido, entre os anjos, que Deus, além
de sumo rei de todos, é o único que preside a todos. No inicio, de
fato, essa dignidade foi dada àquele que agora é chamado de diabo.
São testemunhas Tertuliano, no livro 2 contra os marcianistas,
Gregório, na homilia 34 do Evengelho e no livro 32 das
Moralia, cap. 24, Jerônimo, ou melhor, Beda, no cap. 40
de Jó, e Isidoro, no livro 1 sobre o Sumo Bem, cap. 12, e o
mesmo pode se deduzir das Sagradas Escrituras, no livro de Jô,
cap. 40, onde Behemot, isto é o diabo, é dito princípio dos
caminhos do Senhor, e em Isaías, cap. 14, onde é comparado a
Lúcifer, isto é, a mais bela e a maior de todas estrelas, pelo
menos em relação à aparência e à opinião do vulgo, à qual as
Escrituras costumam se acomodar. Este Lucífer é o diabo, ensinam
S. Jerônimo e S. Cirilo nesse lugar; e Agostinho, no livro
11 da Cidade de Deus, cap.15, bem como Ezequiel no cap.
28, onde está escrito: "Toda pedra preciosa será teu
ornamento", e imediatamente são enumeradas nove pedras, pelas quais
são significados, como S. Gregório expõe no livro 32 dos
Moralia, cap. 25, os nove coros de anjos, que estão em volta
deste anjo, como seu príncipe.
Depois da queda, porém, do diabo, S Miguel é príncipe de todos
os anjos, o que pode ser depreendido do 12º capítulo do
Apocalipse, onde está escrito: "Miguel e seus anjos". Com
efeito, o que significa "Miguel e os seus anjos" a não ser Miguel
e o seu exército? Assim como, de fato, no mesmo lugar, se diz "o
diabo e os seus anjos" e entendemos que todos os anjos maus estão
submetidos ao diabo como os soldados ao imperador, da mesma maneira,
quando se diz "Miguel e os seus anjos", devemos entender que todos
os anjos bons reconhecem a Miguel como seu príncipe, pelo que
corretamente, no ofício eclesiástico, S. Miguel é nomeado
preposto do paraíso e príncipe da milícia celeste.
No livro 4 das Institutas, cap. 6, par. 10, Calvino nada
responde a isto a não ser o quanto
importa falar das coisas celestes muito prudentemente, e que não se
deve buscar outro tipo de Igreja que não seja aquele que está
expresso no Evangelho e nas Epístolas dos santos Apóstolos. Na
verdade, de forma prudente, quase não fala quem nada diz da sua
cabeça, mas segue o apóstolo e os Santos Padres.
A terceira razão é tomada da Igreja do Velho Testamento. Consta, de fato,
que o Velho Testamento tenha sido figura do Novo, ao dizer o Apóstolo na
Epistola I aos Coríntios, cap. 10: "Todas essas coisas
aconteciam a eles em figura". No tempo do Velho Testamento, porém, sempre
houve um só que a todos presidia naquelas coisas que pertenciam à Lei
e à religião, e principalmente a partir daquele tempo em que os
judeus começaram a ser reduzidos a forma de povo e a ser governados por
leis e por magistrados, que foi depois da saída do Egito. Então,
de fato, Moises ordenou a república dos judeus, escreveu para eles
leis que tinha recebido de Deus, consagrou a Aarão pontífice, e
submeteu a ele só todos os sacerdotes e levitas. E finalmente, até
o tempo de Cristo, nunca faltou um só príncipe dos sacerdotes que
governasse todas as sinagogas de todo mundo. O que facilmente poderia
ser provado caso fosse concedido pelos nossos adversários. Assim, de
fato, falam os magdeburguenses na 1ª Centúria, livro1, cap.7,
coluna 257: "Na Igreja do povo judeu, um só era o sumo
sacerdote por lei divina, que todos eram obrigados a reconhecer, e a
ele obedecer". O mesmo confessa Calvino no livro 4 das
Institutas, cap. 6 par. 2.
Portanto, como a Igreja daquele tempo era figura da Igreja deste
tempo, a razão exige totalmente que, assim como aquela teve diante de
Deus, reitor invisível, um só reitor visível, assim também esta
o tenha, pois que não deve ser encontrada na figura nenhuma
perfeição que não se encontre, e de certo mais exatamente, no
modelo.
João Calvino, no livro 4, cap.6 das Institutas, levanta duas
soluções para esse argumento. A primeira é que a razão de um só
pequeno povo judeu não é a mesma de todo o mundo cristão. Diz,
"De fato", diz, "um único povo dos judeus, cercado em toda a
volta por idólatras, foi obrigado a ter um só príncipe que
mantivesse a todos na unidade, para que não se esparramasse pelas
diversas religiões. Mas ao povo cristão, esparramado por todo o
mundo, querer dar uma só cabeça é a coisa mais absurda." E
acrescenta uma semelhança: "Assim como", diz, "não deve todo
mundo ser confiado a um só homem pelo fato de que um único campo é
cultivado por um único homem".
Na verdade, esta primeira solução a mim parece não tanto resolver
quanto mostrar mais e mais o nó do argumento. Porque se a razão pela
qual o povo dos judeus teria tido uma só cabeça foi, como Calvino
diz, para que estivesse contido na unidade e não descambasse para a
idolatria que o cercava, com maior razão deverá ter uma só cabeça a
Igreja dos cristãos. Porque mais se requer uma só cabeça ali onde
mais dificilmente se conserva a unidade e onde o perigo é maior, para
que o povo não se esparrame por várias religiões: mais dificilmente
se conserva a unidade numa multidão maior do que na menor, e o perigo
é maior onde são muitos os inimigos da fé do que onde são menos
numerosos. E muito maior é o povo dos cristãos do que nunca foi o
número dos judeus, e mais inimigos têm os cristãos, que não só
são cercados pelos turcos, pelos tártaros, mouros, pelos judeus e
pelos outros infiéis, como também se voltam constantemente para
inúmeras seitas de heréticos. Portanto, entre os cristãos mais
dificilmente a unidade se conserva e é iminente um perigo maior dos
inimigos da religião do que outrora para os judeus, ou mais
dificilmente a unidade se conserva, ou o perigo é mais manifestamente
iminente.
Pelo que, pela mesma razão com que Calvino atribui uma só cabeça
ao povo dos judeus, pela mesma ou maior razão deve atribuir uma só
cabeça ao povo dos cristãos. Quanto àquela similitude do campo,
nada daqui resulta, pois de fato não queremos que um só prefeito
governe todo o mundo universal dos cristãos do mesmo modo que um só
agricultor por si mesmo cultiva um só campo. Mas assim confiamos a um
único sumo pastor todo o mundo dos cristãos para governar de maneira
tal que por muitos outros pastores menores ele seja regido; do mesmo
modo que um só pai de família rico cultiva muitos campos através de
muitos agricultores e um só rei administra muitas cidades e províncias
através de muitos pró-reis e presidentes.
Acrescenta, então, Calvino uma outra solução e diz que Aarão
fazia a figura não do pontífice do Novo Testamento, mas de Cristo. Portanto,
como Cristo já cumpriu em si mesmo esta figura, o Papa nada poderia
dela reivindicar para si mesmo.
E nós não insistimos tanto na figura de Aarão, quanto na de todo o
Velho Testamento. Porque já que o Velho Testamento é figura do Novo,
assim como no Velho houve um regime monárquico,
assim dizemos que deve haver no Novo.
Acrescento, ademais, que também o próprio Aarão não somente
fazia a figura de Cristo, mas também a de Pedro e de seus sucessores:
de fato, assim como os sacrifícios da
velha Lei não só significavam o sacrifício da cruz, mas
simultaneamente eram tipos deste sacrifício que agora é oferecido na
Igreja, assim também o sumo sacerdote do Velho Testamento não só
se referia ao Cristo sumo sacerdote, como também simultaneamente era
o tipo deste sacerdócio que agora vemos existir na Igreja; com
efeito, a razão para o sacrifício e para o sacerdócio é a mesma.
Negarão, talvez, que os sacrifícios antigos representassem a
paixão de Cristo e simultaneamente a nossa oblação. Como ensina o
Bem-Aventurado Agostinho, no livro 20 contra Fausto, cap.
18: "Os hebreus", diz, "nas vítimas das ovelhas que ofereciam
a Deus, de muitos e vários modos, como coisa de tamanha dignidade,
celebravam a profecia da futura vitima que Cristo ofereceu. De onde
que os cristãos celebram a memória deste sacrifício já feito por uma
sacrossanta oblação e participação do corpo e sangue do Senhor."
E no livro 1º Contra os Adversários da Lei e dos Profetas,
cap. 18, diz: "Tudo isto os fiéis da Igreja o conhecem pelo
sacrifício, cujas sombras foram todos os primeiros gêneros de
sacrifícios". E no livro 3 sobre o Batismo, cap. 19: "O
próprio Senhor enviou aos sacerdotes os que curou da lepra para os
mesmos sacramentos, para que oferecessem em favor de si um
sacrifício, porque ainda não havia sucedido a estes um sacrifício
que depois, na Igreja, o próprio Senhor quis que fosse celebrado por todos
aqueles, porque a todos aqueles ele mesmo prenunciava."
E não é outra a razão pela qual o bem-aventurado Gregório, no
livro sobre os Cuidados Pastorais, parte 2,
cap. 4, diz que todas as coisas que são ditas das vestes e dos
ornamentos de Aarão ele interpreta das mesmas virtudes que se requerem
dos pontífices cristãos; e Cipriano, no livro 1, Epístola 7,
expõe sobre os nossos sacerdotes as coisas que são ditas no Velho
Testamento dos sacerdotes de Aarão, o que frequentemente todos os outros padres
fazem. Isto não é senão porque o sacerdócio do Novo Testamento
sucedeu ao sacerdócio do Velho Testamento, e os pontífices
cristãos sucederam aos pontífices judaicos, como a certos tipos e
sombras suas.
A quarta razão é tomada das mesmas semelhanças pelas quais na
Sagrada Escritura é descrita a Igreja: todas, de fato, mostram
que deve haver necessariamente na Igreja uma só cabeça. A Igreja
é comparada a um exército ordenado, nos Cânticos, cap. 6, ao
corpo humano ou a uma bela mulher, nos Cânticos, cap. 7 ao reino,
em Daniel, cap. 2, ao redil, em João, cap. 1, à casa, em I
Timóteo, à nave ou à arca de Noé, em I Pedro, 3. Ora,
não existem acampamentos ordenados onde não haja um único imperador,
muitos tribunos, muitos centuriões etc. Jerônimo, na Epístola ao
Monge Rústico, diz: "Em qualquer grande exército espera-se um
único sinal". Portanto, assim como a Igreja é um exercito
ordenado, se todos os bispos, ou melhor, todos os presbíteros são
iguais, pela mesma razão em qualquer corpo humano há uma só
cabeça.
E para que, talvez, não digas: a Igreja tem Cristo como sua
cabeça, por causa disso não comparamos, neste lugar, a Igreja com
Cristo como os membros à sua cabeça, mas como a esposa com o
esposo: semelhança que as Escrituras usam no Apocalipse,
cap.21, e na II aos Coríntios, cap.11, na Epístola aos
Efésios, cap.5, e no Cântico dos Cânticos muito
frequentemente. E se realmente a Igreja que está em terra,
separadamente de Cristo, não é inadequadamente comparada à esposa,
também separadamente de Cristo uma só cabeça deve ter,
principalmente quando claramente em Cânticos, cap.7, entre outros
dos seus membros, também enumera a cabeça: "A tua cabeça", diz
o esposo à esposa, "é assim como o Carmelo", e a esposa diz sobre o
esposo que "a tua cabeça é o melhor ouro", em Cântico 5. E o
esposo certamente compara a cabeça da esposa ao monte Carmelo, porque
ainda que o sumo pontífice seja um monte muito alto, todavia nada mais
é do que terra, isto é, um homem. A esposa compara também a
cabeça do esposo ao melhor ouro porque a cabeça de Cristo é Deus.
E de fato, já que sempre foi reino, porque não seria regido por um
só? E posto que Cristo é rei da Igreja, disto, enfim, deduzimos
que a Igreja deve ter, além de Cristo, alguma outra única pessoa
pela qual seja regida, porque os reinos sempre são administrados
regiamente, isto é, por um só que preside a todos. E contanto que
o rei esteja presente, ele o faz por si mesmo; se está ausente, ele
o faz por outro, que é chamado de vice-rei. Frequentemente
também, mesmo estando o rei presente, constitui alguém como seu
vigário geral.
Que, porém, num só redil também se requeira um só pastor, isso
se depreende a partir do Evangelho: "Será um só rebanho", diz o
Senhor, "e um só pastor". De onde que se deve, de passagem,
anotar que se pode entender este "um só pastor" do pastor
secundário, isto é, de Pedro e de seus sucessores, como expõe
S. Cipriano. Pois quando o Senhor "diz que ele tem outras ovelhas
que não são deste rebanho", ele se refere ao povo judeu e ao povo
gentio. E ensina que tem entre os gentios muitos eleitos que ou já
são fiéis, ou que certamente o serão. E, todavia, a esses
eleitos aquele povo judeu não pertence.
Embora, porém, se tratamos de Deus como pastor, sempre foram o
povo dos judeus e o povo dos gentios um só rebanho, e Deus seu único
pastor; todavia, não foram um só rebanho e um só pastor em
relação ao governo humano; nem, de fato, os gentios, ou aqueles
entre eles que pertenciam à Igreja, eram regidos pelo pontífice dos
judeus. E Cristo quis, depois do seu advento, que de ambos os povos
se fizesse um só rebanho e todos os homens fossem governados por um só
pastor. Daqui Cipriano, no livro 1, na Epístola 6 para Magno,
falando sobre Novaciano, que quis ser feito bispo de Roma, já tendo
sido empossado e tomando assento Cornélio, diz o seguinte: "Por
isso o Senhor, que nos insinua a unidade proveniente da divina
autoridade, coloca e diz: Eu e o Pai somos um; unidade à qual
reduz sua Igreja dizendo, finalmente : 'E haverá um só rebanho e
um só pastor'."
Como pode ser acrescentado ao número do rebanho aquele que não está
no número do rebanho? Ou como pode ter-se um pastor que,
permanecendo verdadeiro pastor e presidente na Igreja de Deus por uma
ordenação sucedânea, a ninguém sucede e, iniciando por si mesmo,
é estranho e profano?
Resta a casa e o navio. E, de fato, toda casa possui um só senhor
e um só ecônomo, de acordo com aquela passagem de S. Lucas, cap.
12: "Quem consideras que seja o dispensador fiel e prudente que
constituiu o Senhor sobre a sua família?" Palavras que são ditas a
Pedro e do próprio Pedro porque, pouco antes, quando o Senhor
teria dito: "Bem aventurados aqueles servos que o Senhor encontrar
vigilantes quando vier", Pedro perguntou: "Senhor, dizes esta
parábola a nós ou a todos?" Respondeu o Senhor a Pedro: "Quem
consideras que seja o dispensador fiel e prudente que constituiu o
Senhor sobre a sua família?" Como se dissesse: "A ti, ó
Pedro, em primeiro lugar eu o digo, a ti de fato cabe cogitar o que
se requer ao ecônomo fiel e prudente, a quem o Senhor constituiu
sobre a sua família".
E pouco depois, para mostrar que estava falando de um único que
preside a todos os conservos e que se submete apenas ao Senhor,
acrescentou que, se dissesse aquele servo no seu coração: "Meu
Senhor demora para vir" e começasse a percutir os servos e as
criadas, e a comer e a beber e inebriar-se, virá o Senhor daquele
servo no dia em que não espera e na hora em que não sabe, e o
dividirá e colocará a sua parte com os infiéis. Palavras pelas
quais o Senhor abertamente indica que ele colocaria para si um só
servo á frente de toda a sua casa, o qual somente por si poderia ser
julgado. Por certo Crisóstomo explica amplamente essa passagem de
sobre Pedro e seus sucessores no Livro 2 do Sacerdócio, com a qual
Ambrósio concorda, ou qualquer que seja o autor daquele comentário
do cap. 3 a Timóteo: "A casa de Deus", diz,
"é a Igreja, cujo reitor hoje é Damásio".
Finalmente sobre o navio, Jerônimo diz na Epístola a Rústico:
"no navio há um só governador". E Cipriano, no Livro 1,
Epístola 6, depois de ter ensinado que a Arca de Noé tinha sido
um tipo de Igreja, daqui prova que Novaciano não poderia ser feito
governador desta arca, porque já Cornélio o era, e um só navio
postula um só reitor e não vários.
A quinta razão é tirada dos primórdios do governo da Igreja.
Consta, de fato, que a Igreja congregada por Cristo tinha começado
desde o início a ter um regime externo visível e monárquico. Não
aristocrático, nem democrático. De fato, quando vivia na terra,
Cristo a administrava visivelmente como o seu sumo pastor e reitor.
Como também confessam os magdeburguenses na Centúria 1, Livro
1, cap. 7, col. 268, e nos textos que se seguem. Portanto,
também agora deve ter a Igreja um regime monárquico externo e
visível. De outra maneira, não seria a Igreja que agora existe, a
mesma cidade de Deus com ela. Como, de fato, o Filósofo ensina no
livro 3 da Política, cap. 2, a cidade é dita da mesma espécie
enquanto permanece a mesma forma de república, isto é, o mesmo modo
comum de governo que, quando modificado, exige que também se
modifique a cidade.
A sexta razão é tirada do semelhante. Corretamente, em cada lugar
singular, são constituídos bispos singulares, que daquele lugar
presidem a todos os outros como ministros e pastores. Coisa que
Calvino, no livro 4 das Instituições, cap. 6, par. 7, confessa nestas
palavras: "Quem discutirá diversamente
que cada uma das Igrejas deverá ter atribuído a si os seus bispos?"
De novo nas províncias singulares corretamente são constituídos
metropolitanos singulares que presidem aos bispos de sua província. E
nas cidades maiores são constituídos primários ou patriarcas que,
como é dito por S. Leão Magno, na Epístola a Anastásio,
arcebispo de Tessalônica, recebem um cuidado maior. O que nem
Calvino ousou negar também. Pois assim ele fala, de fato, no cap.
4, par. 4 das Instituições: "as províncias singulares" diz,
"tinham entre os bispos um só arcebispo. E também, no Sínodo de
Nicéia, foram constituídos patriarcas que fossem pela ordem e pela
dignidade superiores aos arcebispos. E isto pertencia à conservação
da disciplina." Portanto, conclui-se daqui que é correto que
também exista uma só pessoa que presida a toda Igreja e ao qual os
primários e os patriarcas também se submetam. Pois se o principado
monárquico convém a uma só cidade, a uma só província, a uma só
nação, por que também não a toda a Igreja universal? Aquilo que
a razão postula monarquicamente para as partes exigiria que o seu todo
fosse governado aristocraticamente?
Finalmente, pelas mesmas razões pelas quais se prova que um só bispo
deve presidir aos párocos, um arcebispo presidir aos bispos, um
patriarca aos arcebispos, por elas mesmas pode-se provar que um único
sumo pontífice deve presidir aos patriarcas. Por que é necessário
existir em cada uma das igrejas um só bispo, a não ser pelo fato de
que uma cidade não pode ser bem governada senão por meio de uma só
pessoa? E também uma só é a Igreja universal. Novamente, por
que se requer um só arcebispo, a não ser para que se contenham os
bispos na unidade, para que se dissolvam os seus litígios, para que
sejam convocados aos Sínodos, para que sejam obrigados a exercer o
seu múnus? E por causa das mesmas razões requer-se que um só
presida aos arcebispos e a todos os patriarcas.
Responderá Calvino que os bispos aos presbíteros, e aos demais
bispos os arcebispos, e a estes o primário, é maior em honra e
dignidade, não porém em autoridade e poder. Assim, de fato, ele
ensina no livro 4 das Instituições, cap. 4, par. 2.
Mas com certeza engana-se ou engana porque, omitindo outras
passagens, a primeira Epístola a Timóteo, cap. 5, diz na
palavra do apóstolo: "Não queiras receber uma acusação contra o
presbítero a não ser mediante duas ou três testemunhas". Ele faz o
bispo juiz dos presbíteros. Ora, o juiz sem poder é nulo.
Ademais, no Concílio Antioqueno, no cânone 16, estabelece-se
que, se algum presbítero ou diácono for condenado pelo próprio bispo
e, privado de honra, se aproximar de outro bispo, de nenhum modo seja
recebido. Pode, portanto, um bispo condenar um presbítero e
privá-lo da honra, o que certamente será do seu poder e de sua
jurisdição.
Ademais, no terceiro Concílio de Cartago, cap. 45, afirmam os
padres ser lícito aos primazes tomar os clérigos dos bispos de
qualquer diocese e ordená-los bispos onde for necessária a obra,
mesmo contra a vontade do bispo ao qual aquele clérigo estava
submetido. E não vemos aqui abertamente que o primaz, pelo poder,
é maior que os demais bispos? Finalmente, S. Leão Magno, na
Epístola a Anastásio, bispo de Tessalônica, e Gregório, no
Livro 4, Epístola 52, abertamente ensinam que todos os bispos
não são iguais pelo poder, mas alguns são verdadeiramente submetidos
a outros. E daqui S. Leão Magno retamente deduz que o regime de
toda a Igreja pertence a uma única sede de Pedro.
A sétima razão pode ser tirada da propagação da Igreja. Porque a
Igreja sempre cresceu e deve crescer até que o Evangelho seja pregado
em todo mundo, como é evidente pelo cap. 24 de S Mateus: "Este
Evangelho do reino será pregado em todo o mundo e, então, virá a
consumação". Ora, não pode isto fazer-se a não ser que haja um
só governante de toda a Igreja, ao qual incumba a solicitude de
conservar e propagar todo esse corpo. Porque ninguém deve pregar, a
não ser que seja enviado. Como diz a Epístola aos Romanos,
cap. 10: "Como pregarão, a não ser que sejam enviados?" Ora,
enviar às províncias alheias não pertence aos bispos particulares;
eles têm, de fato, os seus limites certos do seu episcopado, além
dos quais não possuem nenhum direito, nem a eles pertence o cuidado,
a não ser dos rebanhos que lhes foram confiados.
Acerca do que, nas histórias dos magdeburgenses, dificilmente
encontramos a Igreja propagada, depois do tempo dos apóstolos, por
outros que não aqueles que enviaram os romanos pontífices como obra de
Deus. S. Bonifácio converteu os alemães enviado pelo papa
Gregório II. Os Francos foram convertidos por S. Quiliano,
enviado pelo papa Conon. Os ingleses, por Agostinho, enviado pelo
papa Gregório I. Inocêncio I, porém, na Epístola IV,
constantemente afirma que por toda a Espanha, a Gália, a África,
as Igrejas foram fundadas por aqueles que Pedro ou os seus sucessores
enviaram para essa obra.
A oitava razão é tirada da unidade da fé. É necessário que todos
os fiéis sintam inteiramente o mesmo nas coisas da fé. De fato,
"há um só Deus, uma só fé, um só batismo", Efésios 4. E
não pode existir uma só fé na Igreja, a não ser que haja um sumo
juiz, com o qual todos são obrigados a aquiescer. O que, por
certo, ensina abertamente, quando não houvesse nenhuma outra razão,
aquela própria dissensão dos Luteranos, que vemos que não possuem
um único ao qual todos são obrigados a submeter o seu julgamento, e
que se dividiram em milhares de seitas, apesar de que todos tenham
descendido de um único Lutero. E nem ainda conseguiram fazer um só
Concílio no qual todos se reunissem. Mas a mais aberta razão disto
os convence. Quando, de fato, há muitos que são iguais,
dificilmente pode acontecer que, nas coisas obscuras e difíceis, um
queira antepor o seu julgamento ao julgamento do outro.
Respondem os magdeburgences na Centúria I, livro 2, cap.7,
col. 522 e seguintes, que pode-se conservar a unidade da fé pelo
consórcio de muitas Igrejas que se ajuntam umas às outras, e pelas
letras tratem entre si das questões da fé. Verdadeiramente,
porém, isto com certeza não é suficiente. Porque para conservar a
unidade da fé não é suficiente o conselho, requer-se um império.
Com efeito, o que acontecerá se o bispo que erra não quiser escrever
aos outros ou, depois que tiver escrito, não quiser seguir o conselho
dos outros? Por acaso o próprio Ilírico, advertido pelos colegas
do erro maniqueu sobre a origem do pecado, novamente excitado pelos
inferiores, retratou-se, ou pôde ser conduzido a que pelo menos
pacientemente os ouvisse? E se esta associação é tão eficaz,
porque não promoveu precisamente a paz e a concórdia, algumas vezes,
entre os luteranos suaves e os rígidos?
Dirás: terminarão todas estas questões por um Concílio geral.
Todos, de fato, concordarão com a maior parte dos bispos. Por
outro lado, no Concílio Geral a maior parte pode, de fato, errar,
se faltar a autoridade do sumo pastor, como a experiência comprovou
com os Arminenses e os Efésios no segundo Concílio. Acrescente
que nem sempre se podem promover os Concílios gerais. Nos primeiros
300 anos, nunca pôde ser estabelecido o concílio geral e
existiram, todavia, muitas heresias, então.
Resta que discutamos as objeções deles. E primeiro objeta Calvino
no livro 4 das Institutas, cap. 20, par. 7, naquela passagem
do Evangelho de S Lucas do cap. 22, onde lemos o seguinte:
"Ocorreu uma contenda entre eles: qual deles
seria maior? Disse, porém, a eles: os reis dos gentios os dominam; entre vós,
porém, não seja assim". De onde Calvino deduz: "como o Senhor
admoestasse esta ambição diversa deles, ensinou que o seu ministério
não seria semelhante aos reinos, nos quais um é mais eminente do que
outros".
Respondo: Tanto nesta passagem, como no cap.20 de S Mateus, o
Senhor não retirou a monarquia da Igreja mas, ao contrário, a
instituiu. E advertiu que deveria ser diversa da monarquia dos
gentios. Com efeito, primeiramente não disse o Senhor: "Vós
não presidireis de nenhum modo", mas "não assim como os reis dos
gentios".
Quem diz, de fato, "Tu não presidirás como aquele", significa
"presidirás num certo sentido, mas diversamente daquele".
Finalmente, não se acrescenta claramente nesta passagem que "aquele
que é o maior entre vós faça-se como o mais jovem, e aquele que
preside, que em grego se diz 'egumenos', isto é, condutor e
príncipe, faça-se como aquele que serve"? Um só, portanto, era
o condutor designado pelo Senhor.
Finalmente, ele declarou esta passagem pelo seu próprio exemplo, ao
dizer "assim como eu não vim ser servido, mas servir" e "eu estou
no meio de vós como aquele que serve". E, todavia, ele diz de si
no cap. 3 do Evangelho de S. João: "Vós me chamais de mestre e
de Senhor, e o dizeis bem porque de fato sou". Portanto, assim
como Cristo não dominava nem presidia do mesmo modo dos reis dos
gentios, mas servia e trabalhava, e ainda assim verdadeiramente
presidia, pois, ao contrário, ele era o Senhor; assim também quer
que um dos seus verdadeiramente presida, mas sem a paixão do domínio
tal qual está nos reis dos gentios, que são na sua maior parte
tiranos e imperam sobre os súditos como servos, e reportam todas as
coisas à sua comodidade e glória. Quer, de fato, que o seu vigário
presida a Igreja como pastor e pai, que não busque o lucro e a
honra, mas a comodidade dos súditos e, por isso, trabalhe mais do
que os outros e sirva à utilidade de todos.
Além disso, os reis dos gentios, inclusive aqueles que não são
tiranos, administram os seus reinos de tal maneira que deixem a sua
herança aos seus filhos. Por outro lado, os prelados da Igreja não
são assim. De fato, não são reis, mas são vigários. Não são
pais de família, mas são ecônomos. Decorre daí que S.
Bernardo, no livro 3 das Considerações, diz: "Qual
negas não presidir e proíbes dominar? É evidente que não preside
bem aquele que preside na solicitude. Preside para que provejas, para
que aconselhes, para que busques e para que sirvas; preside para que
sejas útil; preside para que sejas como o servo fiel e prudente que o
senhor constituiu sobre a sua família."
A segunda objeção de Calvino no livro 4 das Institutas, cap.6,
par. 1, é a seguinte: no cap. 4 da Epístola aos Efésios
o Apóstolo delineou para nós toda a hierarquia eclesiástica que
Cristo depois de sua ascensão deixou na Terra. Ali, porém, nunca
há menção de uma só cabeça, mas é trazido o regime da Igreja de
muitos em comum. Assim, de fato, diz: "E ele deu alguns como
apóstolos, outros como profetas, outros como evangelistas, outros
como pastores e doutores". E não disse: "Primeiro um só sumo
pontífice, depois os bispos, os párocos etc."
Do mesmo modo: "Sejais solícitos ao observar a unidade do espírito
no vínculo da paz, um só corpo e um só espírito, assim como fostes
chamados numa só esperança da vossa vocação, um só Senhor, uma
só fé". E não disse: "um só pontífice máximo que mantenha a
Igreja na unidade". E na mesma passagem: "A cada um de nós foi
dada a graça de acordo com a medida da doação de Cristo". E não
disse "a um único foi dada a plenitude do poder para que exerça o
ofício de vigário de Cristo, mas foi dada", diz, "a cada um a
sua porção".
Respondo que o sumo pontificado claramente foi colocado pelo apóstolo
nestas palavras: "Ele deu alguns como apóstolos"; e mais
claramente na I a Coríntios, cap. 12: "E ele mesmo colocou,
na Igreja, primeiro os apóstolos, depois os profetas". Com
efeito, se o sumo poder eclesiástico não somente foi dado a Pedro,
mas também aos outros apóstolos, todos de fato puderam dizer aquela
passagem de Paulo: "Minha preocupação cotidiana é a solicitude de
todas as Igrejas", na Segunda Epístola aos Coríntios,
cap.11. Mas a Pedro foi dada como ao pastor ordinário, ao qual
perpetuamente haveria sucessão; aos outros, porém, como a pastores
delegados, aos quais não haveria sucessão. Foi necessário, de
fato, naqueles primórdios da Igreja, para que a fé fosse
disseminada rapidamente por todo o orbe da Terra, que aos primeiros
pregadores e aos fundadores eclesiásticos fosse dado o sumo poder e
liberdade. Mortos, porém, os apóstolos, a autoridade apostólica
permaneceu apenas ao sucessor de Pedro. Nenhum dos bispos, além do
romano, jamais teve solicitude para com todas as Igrejas. E somente
ele foi chamado por todos como pontífice apostólico e sua sede
simplesmente apostólica e, por antonomásia, seu múnus,
apostolado. Coisa sobre a qual passarei a expor alguns poucos
testemunhos.
Jerônimo, na Epístola segunda a Damásio, sobre o nome das
hipóstases, diz: "Os apóstolos que segues pela honra, sigas
também pelo mérito". E no livro 2 contra Rufino, diz:
"Admiro-me como os bispos receberam aquilo que a Sé apostólica
condenou". E na Epístola a muitos bispos da Gália, escrita para
S. Leão Magno, que está entre as epístolas de S. Leão,
cap. 52, ele diz: "Conceda o vosso apostolado perdão à nossa
preguiça". E no fim da epístola: "Roga por mim, beatíssimo
senhor, venerável papa, por mérito e honra apostólica". Do mesmo
modo: "Venero e saúdo o vosso apostolado no Senhor". E
Agostinho, na epístola 162: "Na Igreja Romana, sempre
vigorou o principado da cátedra apostólica".
Finalmente (para que se omitam uma infinidade de passagens
semelhantes), o Concílio de Calcedônia na Epístola a S.
Leão, que se encontra depois da terceira ata, diz: "E depois de
todas estas coisas, além e contra aquele a quem a custódia da vinha
foi encarregada pelo senhor, estendeu a loucura, isto é, também
contra tua santidade apostólica". Daqui, S. Bernardo, no livro
3 das Considerações, próximo do início, falando sobre todos os
apóstolos dos quais está escrito no salmo 44: "Tu os
constituirás príncipes sobre toda a terra", diz ao
papa Eugênio: "A eles tu sucedeste na herança; assim como tu
estás unido, a herança da terra também". E mais adiante, "e ele
deu alguns como apóstolos", S. Bernardo interpreta esta mesma
passagem como relativa à autoridade pontifícia.
Pode-se também responder que o Apóstolo, nesta passagem, não
traçou a hierarquia da Igreja, mas apenas enumerou vários dons que
estão na Igreja. Primeiramente, de fato, colocou os Apóstolos,
isto é, aqueles primeiros que foram enviados por Deus. Depois os
Profetas, isto é, aqueles que predizem o futuro, como explicam
Crisóstomo, Ecumênio, Teofilato. Em terceiro lugar, os
Evangelistas, isto é, aqueles que escreveram os Evangelhos, como
expõem Ecumênio e Teofilato. Ppor último, os Pastores e
Doutores que por uma só palavra significou confusamente toda a
hierarquia dos ministros da Igreja. E em I Coríntios, cap.
12, acrescenta os gêneros das línguas, as curas e outras coisas
que não pertencem aos ministérios eclesiásticos, mas são carismas
do Espírito Santo.
Porém, naquela passagem sobre um só corpo, um só espírito, uma
só fé, um só Deus, onde não está enumerado um só papa,
respondo: que "um só papa" está subentendido naquelas palavras,
quando se diz "um só corpo" e "um só espírito"; para que, de
fato, no corpo natural se conserve, por isso, a unidade dos membros,
porque todos eles obedecem à cabeça. Assim também, então, se
observa na Igreja a unidade quando todos obedecem a um só.
E embora a cabeça de toda a Igreja seja Cristo, todavia porque Ele
está ausente da Igreja militante segundo a presença visível,
exige-se como necessário um único alguém em lugar de Cristo, que
mantenha esta Igreja visível na unidade. Pelo que Optatus, no
livro 2, chama a Pedro de "cabeça", e nele coloca a unidade da
Igreja, para que todos se unam a essa cabeça. Também João
Crisóstomo, na Homilia 55 do Evangelho de S, Mateu, assim
fala da Igreja: "Cujo pastor e cabeça era um homem pescador e
ignorante" etc..
Quanto à objeção sobre a plenitude do poder, respondo: o sumo
pontífice, se comparado com Cristo, não possui a plenitude do
poder, mas somente uma certa proporção, segundo a medida da doação
de Cristo. Cristo, de fato, rege toda a Igreja que está no céu,
no purgatório, na Terra, e que existiu desde o início do mundo, e
que existirá até o fim. E, além disso, pode, pelo arbítrio,
criar leis, instituir sacramentos e atribuir a graça mesmo sem os
sacramentos.
Mas o Papa somente rege aquela parte da Igreja que está na Terra,
enquanto ele vive, não pode mudar as leis de Cristo nem instituir
outros sacramentos e nem perdoar os pecados sem os sacramentos. Se,
todavia, o Sumo Pontífice for comparado com os bispos, com mérito é
dito possuir a plenitude do poder, porque os outros possuem regiões
definidas, sobre as quais presidem, e também poder definido. Ele,
porém, se antepõe a todo o mundo cristão e possui todo aquele pleno
poder que Cristo deixou para a utilidade da Igreja na Terra.
A terceira objeção de Calvino está no livro 4 das Institutas,
cap. 6, par. 9, onde usa este argumento: "Cristo é cabeça da
Igreja", conforme cap. 4 da Epístola aos Efésios; portanto,
faz injúria a Cristo quem nomeia uma outra cabeça.
Respondo que não se faz nenhuma injúria a Cristo pelo fato de o papa
ser cabeça da Igreja, antes aumenta-se, com isto, sua glória.
De fato, não estabelecemos que o papa é cabeça da Igreja com
Cristo, mas abaixo de Cristo, como seu ministro e seu vigário.
Não se faz injúria ao rei, além disso, se se diz que há um
vice-rei como cabeça do seu reino abaixo do rei; ao contrário, mais
aumenta sua glória. Todos, de fato, que ouvem existir um vice-rei
que é cabeça do reino abaixo do rei imediatamente pensam que esse rei
é cabeça de um modo mais nobre.
Acrescente-se aquilo que, na Escritura, o próprio Cristo fala de
si: "Eu sou a luz do mundo" no capítulo 8 de João. O mesmo
diz, no capítulo 5 de Mateus, aos apóstolos: "Vós sois a luz
do mundo". Nem por isso, todavia, Cristo fez injúria a si mesmo.
E o apóstolo que disse: "Ninguém pode pôr outro fundamento além
daquele que foi posto, que é Cristo", conforme está em I
Coríntios, cap.3; o mesmo disse: "Edificados fostes sobre o
fundamento dos apóstolos e dos profetas", no cap. 2 da Epístola
aos Efésios, e sendo "Cristo pastor e bispo de nossas almas",
conforme cap. 2 da I epístola de S. Pedro, "e apóstolo de
nossa confissão", no cap. 3 da Epístola aos Hebreus,
e "homem profeta", no último capítulo de
Lucas, e "doutor da justiça", no cap. 2 de Joel, todavia
Paulo não lhe fez uma injúria quando escreveu, no cap. 4 da Epístola
aos Efésios, que na Igreja há apóstolos, profetas, pastores e
doutores. Finalmente, que nome é mais augusto do que o de Deus?
E, todavia, nas Escrituras, não uma única vez os homens se dizem
deuses sem nenhuma injúria ao verdadeiro Deus. No salmo 81, está
escrito: "Eu disse, vós sois deuses". Por que, portanto, será
injúria para Cristo, como cabeça da Igreja, se algum outro abaixo
dele também for dito cabeça?
Mas dizem também: "Nunca a Igreja é chamada de corpo de Pedro,
ou de corpo do papa, mas de corpo de Cristo". Respondo: a causa
desta coisa é que somente Cristo é cabeça principal e perpétua de
toda igreja. De tal maneira o reino não é dito ser do pró-rei mas
do rei, e a casa não é dita do ecônomo mas do Senhor, e a Igreja
também não é corpo de Pedro ou do papa, que somente por um tempo,
e no lugar de outro a governa, mas de Cristo, que
por própria autoridade, e perpetuamente a rege.
Ademais, ao se dizer que a Igreja é o corpo de Cristo, aquela
palavra de Cristo convenientemente pode se referir não tanto a Cristo
como cabeça, quanto ao mesmo Cristo como hipóstase do seu corpo, de
maneira tal que, quando dizemos aqui jaz o corpo de Pedro, ali o de
Paulo, não significamos Pedro ou Paulo ser corpos, mas pessoas
cujos corpos são aqueles. Cristo, de fato, nesse sentido, não é
cabeça da Igreja, mas ele próprio é como um certo corpo muito
grande, composto de muitos e variados membros. Comentou isso S.
Agostinho no livro 1 sobre os méritos e a remissão dos pecados,
cap. 31, a partir daquilo que disse o apóstolo na I Cor.
cap. 12, quando diz: "Assim como há, de fato, um só corpo,
que tem muitos membros, todos os membros, porém, sendo muitos, são
um só corpo"; não acrescentou: "assim também o corpo de
Cristo", mas, "assim também Cristo". Portanto, a Igreja é
já corpo de Cristo e não de Pedro, porque Cristo sustenta como
hypóstase deste corpo todos os membros. E opera todas as coisas em
todos: pelo olho vê, pelos ouvidos ouve; ele é de fato quem ensina
pelo doutor, batiza pelo ministro, faz, finalmente, todas as
coisas por todos; coisa que, certamente, não
convém nem a Pedro nem a nenhum outro homem.
A quarta objeção é de Teodoro de Beda que, nas Confissões,
cap. 5, art. 5, diz: "Somente a Deus pode-se atribuir o peso
de reger toda a Igreja"; de tal maneira que é uma coisa inteiramente
impossível de ser afirmada por nós quando atribuímos o regime de toda
Igreja ao sumo pontífice. Coisa que igualmente deixou perante
Lutero, no livro escrito sobre o poder do papa, e um opúsculo sobre
o primado do papa, escrito no Sínodo de Esmalcadica, lhe deu
assentimento.
Respondo: não pode acontecer, sem que haja um milagre, que um só
homem governe toda Igreja por si mesmo e nem nunca foi isso que os
católicos ensinaram: que, porém, uma só pessoa faça isto por meio
de muitos ministros e pastores submetidos a si, isto não só é
possível como também reputamos ser útil e conveniente. Porque em
relação às primeiras coisas, não diz o apóstolo na II Ep.
Cor. cap. 11 que ele tinha "a solicitude de todas as Igrejas"?
E não falava somente de todas as Igrejas que ele mesmo havia
plantado, mas de todas as Igrejas simplesmente. Pois Crisóstomo,
neste lugar, escreveu comentando: "Paulo tinha o cuidado de toda a
orbe da Terra". O que pode ser provado pelas suas próprias
epístolas, aos Romanos, aos Colossenses e aos Hebreus, pois
escrevia àqueles que não havia pregado, mas que julgava pertencerem
aos seus cuidados.
E embora os apóstolos distribuíssem entre si o trabalho de pregar a
palavra de Deus a alguns em particular, não por isso, todavia,
fechavam a sua solicitude dentro dos limites de uma só província, mas
cada um deles administrava os cuidados de toda Igreja de maneira tal
como se apenas a si mesmo pertencesse apenas esses cuidados.
Finalmente, muitos príncipes seculares tiveram de Deus reinos
amplíssimos, e certamente maiores do que agora é a extensão da orbe
cristã, os quais, a não ser que pudessem administrá-los, nunca
lhes teriam sido dados por Deus.
Temos exemplos em Nabucodonosor, sobre o qual lemos em Daniel,
cap. 2, deste modo: "Tu és rei dos reis, e Deus que é rei do
céu, deu a ti o império, a fortaleza e todas as coisas nas quais
habitam os filhos dos homens, e sob o teu comando constituiu todas as
coisas". Também sobre Ciro diz, em Isaías, 45: "Isto diz o
Senhor a Ciro, meu Ungido, cuja destra tomei para que submeta
diante da sua face as gentes e dobre as costas dos reis".
Quanto mais amplo, porém, terá sido este reino é evidente pelo
capítulo 1 de Ester, onde está dito ter reinado o rei Assuero,
rei dos Persas, sobre 127 províncias desde a Índia até a
Etiópia. De Augusto lemos, no cap. 2 de Lucas, que saiu um
edito de César Augusto para que fosse contada toda a extensão do
mundo. E certamente nunca foi administrada mais felizmente a extensão
da terra do que nos tempos de Augusto. Que, todavia, seu reino foi
preparado por Deus para que mais facilmente o Evangelho fosse
derramado por todo mundo, escreve Eusébio, no livro 3, cap. 9
sobre a demonstração evangélica, e S. Leão, no sermão I sobre
S. Pedro e S. Paulo.
Como, portanto, Deus quis submeter toda a extensão da terra a um
só homem pelo império, porque não pode também toda a Igreja a um
só homem atribuir a sua prudência e solicitude? Principalmente
porque o governo eclesiástico é mais fácil do que o governo político
e os reis da terra não têm outros meios de governar além da
prudência humana e da providência geral de Deus. Enquanto que o
nosso pontífice possui a luz sobrenatural da fé, as Sagradas
Escrituras, os sacramentos celestes e a particular assistência do
divino Espírito Santo.
Acrescente-se que é muito mais difícil a democracia ou a
aristocracia na Igreja do que a monarquia. Porque a democracia na
Igreja não seria tal qual a dos romanos e dos atenienses, onde
somente dominavam os homens de uma só cidade, que não dificilmente
podiam se reunir em um só lugar e estabelecer sufrágios para muitas
coisas no que quisessem. Na Igreja, de fato, se houvesse um governo
popular, todos os cristãos de todo o mundo teriam direito ao
sufrágio. E quem poderia congregar todos os cristãos para
estabelecer algo comum para toda Igreja?
Por uma idêntica razão, a aristocracia da Igreja não seria tal
qual agora ela existe entre os Venezianos, na qual dominam somente os
patrícios de uma só cidade, que facilmente podem ser congregados e
podem discernir aquilo que querem. Mas seria tal qual nunca existiu,
ou seja, uma aristocracia na qual todos os magistrados de todo o
mundo, isto é, todos os bispos e todos os presbíteros de toda a orbe
cristã teriam igual direito de governo, e congregá-los seria também
ou dificílimo, ou impossível sem um milagre.
A quinta objeção é deste opúsculo que os luteranos publicaram sobre
o primado do papa no sínodo Esmalcaldaico. Paulo, dizem, no Cap.
3 da Ep. aos Coríntios, iguala todos os ministros, e ensina que a
Igreja está acima dos ministros, quando diz: "Todas as coisas são
vossas, seja Paulo, seja Apolo, seja Cefas".
Respondo que a mim não me parece ser tão claro esse argumento que
consiga perceber qual seja sua força porque, se os ministros são
considerados iguais por serem numerados simultaneamente, ao dizer seja
Paulo, seja Apolo, seja Cefas, iguais também seriam os líderes,
os cônsules, os imperadores, porque Crisóstomo, na homilia 83 em
Mateus, diz: "Se algum líder, se algum cônsul, se aquele que é
ornamentado com o diadema indignamente o tomar, coíbe-o e obriga-o"
etc. Nem se segue, por causa disto, que a Igreja, pela autoridade
e pelo poder, esteja acima dos ministros, porque são instituídos por
causa da utilidade Igreja, que Paulo significou por aquelas
palavras: "Todas as coisas são vossas". De outra forma, também
as crianças governariam os pedagogos, e os povos dirigiriam os reis
pela autoridade, porque os pedagogos existem por causa das crianças e
os reis, por causa dos povos, e não ao contrário.
A sexta objeção está no mesmo livro. Cristo enviou todos os
apóstolos de modo igual, quando diz, no capítulo 20 de S.
João: "Eis que vos envio". Não antepôs, portanto, um aos
outros.
Respondo que por estas palavras, um não seria anteposto aos outros,
mas não faltariam outros lugares, nos quais um é anteposto ao outro.
Em João 21, certamente, é dito a um só: "Apascenta as minhas
ovelhas".
A última objeção é esta: se o mundo devesse ser governado por um
só nas coisas que pertencem à religião, útil também seria que
fosse governado por um só nas coisas que dizem respeito à ordem
política, e isto nunca foi feito, nem é conveniente como, de fato,
ensina S. Agostinho no livro 4 da Cidade de Deus, cap.15:
"Seria mais feliz para as coisas humanas que todos os reinos fossem
pequenos e concordes na alegria da vizinhança".
Respondo que a natureza do regime eclesiástico não é a mesma do
político. Posto que a orbe da Terra não deve ser necessariamente um
só reino, daí que não necessariamente postula um único homem que
presida a todos. Mas a Igreja toda é um único reino, uma só
cidade, uma só casa e, por isso, deve ser regida toda ela por um
só. A razão desta diferença é que, para a conservação dos
reinos políticos, não se requer necessariamente que todas as
províncias observem as mesmas leis e os mesmos ritos. Podem, de
fato, de acordo com os lugares e as pessoas, usar de uma variedade de
leis e instituições diversas; e, portanto, não se requer um só
que mantenha todos na unidade. Para a conservação da Igreja,
porém, é necessário que todos convenham na mesma fé, nos mesmos
sacramentos, nos mesmos preceitos transmitidos divinamente: o que não
pode ser feito corretamente, a não ser que sejam um só povo e sejam
mantidos por um só na unidade.
Se, porém, fosse conveniente que todas as províncias do mundo
fossem governadas nas coisas políticas por um só e único rei, embora
isto não seja necessário, isto pode ser discutido. Para mim,
todavia, parece ser totalmente conveniente se isto pudesse ser
alcançado sem a injustiça e sem as pelejas bélicas. Principalmente
se o sumo monarca, debaixo de si, tivesse não vigários e
pró-reis, mas verdadeiros príncipes, assim como o sumo pontífice
possui abaixo de si aos bispos.
Porque, todavia, não parece que seja possível construir-se
semelhante monarquia a não ser que se use uma grandíssima força e
muitas e gigantescas guerras. Por isso, corretamente o bem aventurado
Agostinho diz que talvez fossem mais felizes as coisas humanas se
existissem em todos os lugares pequenos reinos concordes entre si pela
alegria da vizinhança, do que se cada reino, pelo certo e pelo
errado, se esforçasse por estender o seu império e propagá-lo de
todos os modos. Acrescente-se que S. Agostinho aprova,
certamente, os reinos pequenos, mas não nega que há de ser útil se
algum único grande imperador presidir a esses pequenos reinos; mais
ainda, parece afirmar isto de preferência quando diz que aqueles
pequenos reinos devem estar em harmonia e alegrar-se na vizinhança,
do mesmo modo que ocorre com as muitas casas numa cidade. Consta, de
fato, que existe um só líder ao qual todas estas casas obedecem,
embora cada uma delas possua o seu próprio pai de família.
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