CAPÍTULO VII. QUE NÃO EXISTE UM REGIME ECLESIÁSTICO EM PODER DOS PRÍNCIPES SECULARES.

A outra proposição que nega pertencer aos príncipes seculares o regime da Igreja combate os dois erros de Brento. O primeiro erro de Brento é que os melhores da Igreja são os príncipes seculares. Deprecia, porém, de tal maneira os bispos que ele quer que eles sejam escravos dos príncipes. O segundo erro é que a estes melhores pertencem principalmente o cuidado e o governo da Igreja. Estes erros também os teve Henrique VIII, rei da Inglaterra. Ele, de fato, se constituiu cabeça da Igreja Anglicana. E do mesmo modo considerou nos seus ditos deverem ser os demais príncipes cabeças supremas da Igreja.

E o primeiro desses erros facilmente é refutado. Em primeiro lugar, a partir daquelas palavras proféticas do salmo 44: "Em favor dos teus pais nasceram para ti filhos, faze-os príncipes sobre toda terra".

Assim, de fato, o bem-aventurado Agostinho interpreta esta passagem: "em favor dos pais, isto é, dos apóstolos, nasceram filhos, isto é, muitos fiéis, que Deus fez bispos e, deste modo, príncipes sobre toda terra." E Santo Hierão, quanto à mesma passagem, diz: "Foram, ó Igreja, teus pais os apóstolos, porque eles te geraram; agora, porém, porque aqueles deixaram o mundo, tens a favor deles filhos, que são os bispos". E logo a seguir: "Os príncipes da Igreja, isto é, os bispos, foram constituídos". Nem muito diversamente expõem os padres gregos, Crisóstomo e Teodoreto: que os príncipes entendem por pais os patriarcas; por filhos os apóstolos. A mesma coisa diz o Apóstolo na I Epístola aos Coríntios, cap. 2 e na epístola aos Efésios, cap. 4: "Deus colocou em primeiro lugar, na Igreja, os apóstolos; em segundo, os profetas; e em terceiro, os doutores".

Se os primeiros são os apóstolos, que foram bispos e aos quais os bispos sucedem, certamente os primeiros não são reis e príncipes seculares. Ao contrário, como corretamente observou S. João Damasceno no segundo Sermão a favor das imagens, o Apóstolos não somente não colocou os reis em primeiro lugar, mas em nenhum outro lugar, para indicar que os reis não são magistrados da Igreja, mas são apenas magistrados do mundo.

O segundo erro é refutado pelos Santos Padres. Inácio, no capítulo 7 da Epístola aos Esmirnenses, dia que nada é mais honorável do que o bispo na Igreja.

E acrescenta: "A primeira honra deve ser dada a Deus; a segunda, ao bispo; a terceira, ao rei". E Gregório Nazianzeno, no Sermão para os cidadãos abatidos pelo temor; João Crisóstomo, no livro 3 sobre o sacerdócio e na homilia 4 sobore o capítulo 6 de Isaías, e Ambrósio no livro sobre a dignidade do sacerdócio, cap. 2, antepõem clarissimamente o bispo ao rei.

E também João Crisóstomo, na homilia 83 sobre o evangelho de Mateus: não somente submete os reis aos bispos, mas também aos diáconos. Assim, de fato, fala ao seu diácono: "Se o governante, qualquer que ele seja, cônsul ou qualquer que esteja ornamentado com o diadema, indignamente se aproximar, coíbe-o o ordena-lhe. Tu, efeito, tens maior poder do que ele." E Agostinho, na homilia sobre o salmo 98, prova que Moisés foi sacerdote pelo fato de ser o maior, e nada é maior do que o sacerdote. E Gelásio, na Epístola a Atanásio, diz: "Fica sabendo, filho clementíssimo, que ainda que te seja lícito presidir o gênero humano pela dignidade das coisas terrenas, todavia aos que administram as coisas divinas submete o teu pescoço devotamente." E, mais adiante: "Fica sabendo que tu mais deves submeter-te à ordem da religião do que presidi-la. Fica sabendo também que deles depende o julgamento sobre ti, que eles não podem ser conduzidos pela tua vontade."

Gregório, no 13º livro das Moralia, cap. 19, sustenta que os primeiros membros no corpo do Senhor são os sacerdotes. E, no livro 4 da Epístola 31 a Maurício, ensina que os sacerdotes são como deuses entre os homens, e por causa disto devem ser honrados por todos, inclusive pelos reis; o que também ensina e prova Nicolau I, na Epístola a Miguel.

O terceiro responde-se pelos gestos dos bispos e dos reis. Pois o papa Fabiano excluiu o primeiro imperador cristão, Felipe, da comunhão do Sacramento do altar no dia de Páscoa, por causa de certos pecados públicos de sua parte. E nem o admitiu antes que ele tivesse se purgado dos pecados pela confissão e pela penitência. Escreve isto Eusébio no livro 6, capítulo 25 da história da Igreja. Também Constantino abertamente professou que não poderiam julgar os bispos como se fossem verdadeiramente deuses; mas, ao contrário, que ele de prefrência se submeteria ao julgamento deles. Escreve Rufino no livro 1, cap. 2 da História da Igreja.

O bem-aventurado Ambrósio expulsou Teodósio, o Velho, do limite da Igreja, e o obrigou a submeter-se a uma penitência pública; depois, querendo o imperador subir na Igreja até o lugar dos sacerdotes e sentar-se junto com eles, ordenou-lhe Ambrósio que descesse, e permanecesse com o povo; o que ele fez de boa vontade. Escreve isto Teodoreto no 5º livro da História da Igreja, capítulo 17.

Finalmente, sentando-se o imperador Máximo num banquete no qual se sentava também o bem aventurado Martinho, e o copeiro querendo oferecer o primeiro cálice ao imperador como ao mais nobre entre todos os demais, ele o enviou ao bispo, que não recusou, mas bebeu primeiro, e depois não entregou o cálice ao imperador, mas ao seu presbítero, não considerando que houvesse alguém mais digno que este presbítero, a saber, que pudesse beber depois dele próprio; e nem teria sido íntegro se ele tivesse dado precedência ao rei ou àqueles que eram próximos ao rei, como escreve Sulpício na vida de S. Martinho.

Finalmente, refuta-se o mesmo erro por uma dupla razão. Em primeiro lugar, o bispo unge o rei, ensina-o, liga-o, absolve-o e o abençoa, diz o apóstolo na Epístola aos Hebreus, cap. 7. Sem contradição, é o menor que é abençoado pelo melhor.

Ademais, o principado secular é instituído pelos homens e é do direito dos gentios, mas o principado eclesiástico é instituído somente por Deus e é de direito divino. Aquele rege os homens na medida em que são homens, e mais em razão dos corpos do que em razão das almas. Este, porém, rege os homens na medida em que são cristãos, e mais em razão das almas do que em razão dos corpos. Aquele tem por finalidade a paz temporal e o bem-estar do povo. Este tem por objetivo a felicidade eterna. Aquele usa das leis naturais e das instituições humanas. Este usa das leis divinas e dos sacramentos devidamente instituídos. Aquele administra as guerras com poucos inimigos e visíveis. Este administra as guerras com inimigos invisíveis e infinitos.

Contrariamente, porém, objeta Brento. Os bispos são servos da Igreja, conforme diz II Coríntios, cap. 4: "Nós não pregamos a nós mesmos, mas a Jesus Cristo. Nós, porém, somos vossos servos por Jesus". Portanto, quanto mais os bispos serão servos dos reis, principalmente se dos reis diz o bem-aventurado Pedro na I Epístola, cap. 2: "Estais sujeitos a toda criatura humana por causa de Deus, ou ao rei, na medida em que ele tem maior excelência, ou aos governadores, na medida em que são enviados por ele".

Respondo: há um duplo gênero de servidão. Todos, de fato, que trabalham para a comodidade de outro são ditos que servem a este outro. Mas alguns trabalham e servem ao outro governando-o e presidindo sobre ele. Alguns, porém, trabalham e servem obedecendo e se sujeitando. Esses tais são propriamente escravos. Os bispos, porém, são servos da Igreja, mas do primeiro modo. Assim como também o magistrado serve à República e o rei serve ao povo, se ele for rei e não um tirano. E o pai serve aos filhos, e o mestre serve aos discípulos.

Pelo que o bem-aventurado Paulo, em I Coríntios, cap. 4, dos que se dissera servo, diz que deles é pai: "Pelo Evangelho eu vos gerei." E acrescenta: "Que quereis? Que eu venha com um chicote ou que eu venha na caridade e no espírito de mansidão?" E, em Hebreus 13: "Obedecei aos vossos prelados e submetei-vos a eles." E no cap. 20 dos Atos dos Apóstolos: "O Espírito Santo colocou os bispos para reger a Igreja de Deus." Por essa razão, o bem-aventurado Gregório se chamava a si mesmo de servo dos servos de Deus. E o bem-aventurado Agostinho, no livro 9 das Confissões, no último capítulo, diz: "Inspira, Senhor, aos teus servos, meus irmãos, aos teus filhos, meus senhores, aos quais pela voz., pelo coração e pelos escritos eu sirvo." E o bem aventurado Bernardo, no segundo livro das Considerações diz que tendo sido Eugenio elevado ao pontificado, foi elevado acima dos povos e dos reinos, mas para servir e não para dominar.

E dizes: os reis são reis também na Igreja e a eles os cristãos devem estar submetidos como a pessoas mais excelentes. Isto é verdade, de fato, mas nas coisas somente que pertencem ao estado político. Os reis cristão estão acima dos homens cristãos, porém não como cristãos, mas na medida em que são homens; assim como, também, estão acima dos judeus e dos turcos enquanto presidem, mas como a homens políticos, porque como cristãos são ovelhas submetidas aos bispos pastores. Como S. Gregório Nazianzeno ensina no livro aos cidadãos percutidos pelo temor. E como diz S. Ambrósio na oração das coisas a serem entregues a Basílio, nada mais honorável pode ser dito do que dizer que o imperador seja filho da Igreja. O imperador bom de fato está dentro da Igreja, e não acima da Igreja.

Depois disso, o erro de Brento, a partir das coisas que foram ditas, é facilmente refutado. Se, com efeito, os príncipes não são os melhores da Igreja, a eles não pertence a Aristocracia da Igreja. Mas podem acrescentar-se, ademais, os seguintes argumentos: primeiramente, o regime da Igreja é sobrenatural. A ninguém, de fato convém, a não ser àquele a quem Deus confiou. Lemos, porém, nas Escrituras que é confiado aos apóstolos e aos bispos, seus sucessores . Pois a Pedro apóstolo foi dito: "apascenta as minhas ovelhas". Isto está no último capítulo de João. E dos bispos está escrito, no 20º cap. dos Atos: "Àqueles que Deus colocou bispos compete reger a Igreja de Deus." Dos reis, entretanto, nada desse tipo nunca se lê.

Finalmente, até os anos 300, não houve na Igreja nenhum príncipe secular, exceto apenas o imperador Felipe, que sobreviveu por um brevíssimo tempo, e talvez algum outro nas Províncias não submetidas ao império Romano. E, todavia, foi a mesma Igreja que agora é, e que tinha a mesma forma de regime. Portanto, não pode ser que os príncipes do século rejam a Igreja de Cristo.

Ademais, aqueles que têm o sumo poder na república podem tudo o que os magistrados inferiores podem. Quem, de fato, poderia proibir o rei se quisesse reconhecer e julgar aquelas causas que são atribuídas aos vice-reis, e aos pretores, e aos juízes menores? E, no entanto, não podem os reis usurpar para si o ofício dos bispos, dos presbíteros e dos diáconos, qual seja: pregar a palavra de Deus, batizar, consagrar etc.. Portanto, não são os reis os supremos magistrados da Igreja.

Assim provamos que os reis não podem invadir os ofícios dos sacerdotes. Em primeiro lugar os reis não apenas são homens. Mas também podem ser mulheres. E às mulheres o apóstolo proíbe ensinar publicamente, em I Coríntios, cap.14 e I Timóteo, cap. 2. Pepucita de Epifânio, cap. 49 e Agostinho no cap. 27 de Contra os Hereges enumeram entre os heréticos aqueles que confiam o sacerdócio entre as mulheres.

Finalmente, em no Segundo Livro dos Paralipômenos, verso 19, Josafá, o melhor rei, diz: "Amarias, sacerdote e pontífice, presidriá sobre as coisas que pertencem a Deus: mas Zabadias presidirá sobre os negócios que pertencem ao ofício do rei." E no segundo livro dos Paralipômenos, cap. 26, quando o rei Osias queria ofertar incenso, o pontífice o proibiu, dizendo: "Não é teu ofício, Osias, que ofereças incenso ao Senhor, mas dos sacerdotes". Como ele insistisse, em seguida ele foi atacado divinamente por uma gravíssima lepra. Ora, se no Velho Testamento não poda o rei exercer o ofício de sacerdotes, muito menos no Novo, onde os ofícios sacerdotais são muito mais augustos.

Também no Sínodo Matisconense, no cânone 9, no Concílio Milevitano, cânone19, e no Concílio Toledano, cap. 3, Cen.13, são punidos gravissimamente os clérigos que levam a causa da Igreja ao juiz secular. E Ambrósio, na Epístola 33 à irmã, diz ter dito a Valentiniano: "Não queiras manchar-te, imperador, considerando que algum direito imperial tenhas nas coisas que são divinas. Foi-te confiado o direito das muralhas públicas, não das sagradas". Da mesma maneira, o mesmo Ambrósio teria dito ao imperador Teodósio: "A púrpura não faz os imperadores sacerdotes". Refere Teodoreto, no livro 5, cap. 18 da sua história da Igreja, que também escreve, no livro 4, cap, 18 que um certo Eulógio, quando Modesto, prefeito do imperador Valente Ariano, disse: "Une-te ao imperador", teria respondido: "Por acaso ele, ao alcançar o império, também alcançou o pontificado?"

Atanásio também, na Epístola aos que vivem uma vida solitária, repreendeu Constâncio por ele ter se imiscuído nas coisas eclesiásticas. E acrescenta que Osio, bispo de Córdoba, teria dito ao mesmo: "Não nos ordene neste tipo de coisa, mas preferivelmente aprende-as de nós. A ti, de fato, Deus concedeu o império, a nós entregou as coisas que são da Igreja." Coisas semelhantes o mesmo Constâncio disse ao bispo Leôncio, conforme atesta Esvidas na voz de Leôncio. Sulpício, no livro 2 da história sagrada ,refere que São Martinho disse ao maior imperador: "Que as causas da Igreja sejam julgadas pelo juiz secular é uma coisa ímpia, nova e inédita nunca ouvida".

O bem aventurado Agostinho, nas cartas 48, 50 e 165, ensina que a função dos reis piedosos é defender a Igreja, obrigar os blasfemos, os sacrílegos e os heréticos condenados pela Igreja, mas no mesmo lugar repreende os Donatistas que tinham entregado a causa episcopal não aos demais bispos, mas ao rei terreno para ser julgada. S. Gregório, no livro 5, Epístola 123, falando do imperador Maurício, diz: "É sabido que os mais piedosos senhores amam a disciplina, observam a ordem, veneram os cânones e não se misturam às causas sacerdotais". O mesmo prolixamente ensina João Damasceno, na I e II oração pelas imagens. E, finalmente, Basílio, o imperador, no 8º sínodo pelo continente, assevera que nem a si nem a nenhum leigo é lícito tratar de negócio sacerdotais. A mesma coisa professou Valentiniano, o Velho, conforme é atestado por Sozomeno no livro 6, cap. 7.

Os argumentos de Brento são tomados dos exemplos do Velho Testamento, onde lemos que Moisés, Josué, Davi, Salomão, Josias, que eram governadores ou reis, frequentemente se misturavam nos negócios da religião. Acrescenta também Brento, na confirmação do argumento, que aos reis é confiado por Deus a custódia da lei divina e, por isso, pertence a eles o cuidado da Igreja. Assim, de fato, diz o apóstolo no cap. 13 da Epístola aos Romanos: "Não sem causa possui a espada. É, de fato, ministro de Deus e vingador na ira para aquele que age mal."

Respondemos: Moisés não somente foi chefe, mas também foi sumo sacerdote, como está demonstrado na questão das controvérsias do juiz, no livro3 da palavra de Deus. Os demais, porém, às vezes agiram por uma autoridade extraordinária, não tanto como reis, mas como profetas. Mas não por causa disso deveria ser destruída aquela lei do Deuteronômio segundo a qual ordinariamente, nas dúvidas de religião, os homens se voltavam não para o rei, mas para o sacerdote do gênero dos levitas,como está escrito no Deut. Cap.17. Acerca do que, acima dizíamos, o rei Osias foi punido pela lepra porque tomou para si o serviço do sacerdote.

Para a confirmação, porém, respondemos: Os reis devem ser guardas das leis divinas, mas não intérpretes; pertence a eles, de fato, através de editos e das penas, impedir as blasfêmias, as heresias e os sacrilégios. Quais são porem os hereges, e contra os quais, e qual a fé ortodoxa, isto eles devem aprender dos bispos, o que fizeram os imperadores piedosos, como Constantino, Valentiniano, Graciano, Teodósio, Marciano e que pode ser conhecido pelo próprio códice no livro I para todos os povos com o tíitulo De Sumna Trinitate et Fidei Catholica, e em todo o titulo sobre os hereges. Veja mais coisas na questão sobre as controvérsias do juiz e na questão sobre quem deve presidir o Concílio Geral.